Na ponta dos cascos

Por Andréa Estevam

O TRIMARÃ CHAMADO SOPRA ESTAVA UM POUCO À NOSSA FRENTE, com as velas ainda frouxas conforme deslizava sem pressa para fora do terminal náutico de Salvador. Nós da imprensa seguíamos numa lancha, ansiosos para ver de perto os veleiros mais espetaculares do mundo, capazes de acelerar a até 47 nós (85 km/h) usando somente a força do vento.

Sopra e os outros quatro trimarãs de 60 pés da classe Orma que participaram da Transat Jacques Vabre já haviam finalizado a regata. Orma é a sigla para Ocean Racing Multihull Association, a entidade que rege as competições oceânicas em barcos multicasco (catamarãs e trimarãs), a classe mais veloz da vela. Outras classes, como os multicascos de 50 pés e os monocascos (veleiros normais) de 60 e 40 pés continuariam chegando no terminal nos próximos 17 dias. Isso depois de terem saído juntos, nos dias 3 e 4 de novembro, do porto de Havre, na França, e velejado 4.335 milhas (cerca de 8 mil quilômetros) até o terminal náutico de Salvador. O percurso foi cruzado pelo trimarã Groupama, primeiro colocado na regata, em 10 dias, 38 minutos e 43 segundos (recorde da prova, aliás) – nove horas antes do segundo colocado, Gitana, e seis dias mais rápido que a segunda classe mais veloz, os multicascos de 50. Sopra foi o quinto colocado, com um tempo de 11 dias, 11 horas e 23 minutos (dez horas a menos que o 4o colocado, Brossard).

Construídos inteiramente em fibra de carbono, com três cascos unidos por braços futuristas, os barcos Orma parecem uma nave saída da prancheta de Niemeyer. Existem 10 barcos como esse no mundo, cada um valendo cerca de 3 milhões de euros. São obras de arte da engenharia náutica – lindas de olhar e verdadeiras máquinas de velejar, com quase 20 metros de comprimento, 30 metros de mastro e três velas que somam 500 m2 – pouco mais de três quadras de vôlei. Quando embalam, os trimarãs literalmente voam baixo: inclinam-se a 45º e descolam da água até o ponto em que todo o peso do barco apóia-se no mar apenas por uma de suas bananas e pela ponta da quilha principal, em formato de Y. Foi desses barcos que Laird Hamilton tirou a idéia de sua prancha foil, em que ele surfa com a prancha totalmente descolada da onda, apoiada só na quilha.

Na hora que o trimarã que seguíamos resolveu subir suas velas e mostrar do que é capaz, foi como se alguém a bordo houvesse apertado o botão de turbo do carro do Batman. O kevlar das velas se esticou, as cordas e cabos se retesaram, o mastro de carbono rangeu e o barco saiu zunindo. Na nossa lancha de 32 pés, o motor de 250 hp gritava, no máximo de sua potência, mas mesmo assim o Orma se distanciava. Derrotados, tivemos que chamar o veleiro pelo rádio e pedir, timidamente, que eles desacelerassem para que conseguíssemos acompanhá-los e tirar fotos. Ele murchou as velas, fez pose ao nosso lado e depois de alguns minutos saiu levitando novamente.

Naqueles passeios pós-regata, os trimarãs deixavam o porto com até 10 pessoas a bordo, entre amigos e patrocinadores. Mas, durante a regata, cada um desses barcos é tripulado por apenas duas pessoas – o skipper (chefão do barco) e um co-skipper – que se revezam no comando, já que a prova é non-stop. Dentro do casco principal fica a minúscula cabine, com espaço suficiente apenas para equipamentos (de manutenção, navegação e comunicação), mantimentos (água e comida liofilizada em quantidades cuidadosamente planejadas), uma cama de lona minúscula e lugar para cozinhar e comer.

Na parte de trás, entre o casco principal e cada uma das bananas, ficam dois cockpits e dois lemes, para que o “motorista” consiga enxergar à frente e dirigir o barco independentemente da posição em que esteja a vela. Enquanto um navega, o outro faz pequenos consertos e ajustes, come, dorme em turnos. É uma corrida de aventura: nenhum conforto, pouco sono e muito preparo técnico, físico e psicológico para conseguir tirar o melhor proveito das forças da natureza e do potencial do barco.

ESTA FOI A 8ª EDIÇÃO DA JACQUES VABRE, regata transatlântica que acontece a cada dois anos, sempre em anos ímpares. Desta vez, somente cinco trimarãs participaram da prova: Sopra, Groupama, Banque Populaire, Gitana e Brossard. Todos conseguiram chegar à capital baiana, mas só quatro chegaram inteiros: o Banque Populaire, campeão de 2005, perdeu a ponta de sua popa a 50 milhas náuticas (92 quilômetros) do fim da regata, mas deu um jeito de velejar o que faltava do percurso. Em 2005, na sétima edição, somente quatro dos 12 Ormas alcançaram Salvador. Numa regata em que se veleja no limite da velocidade e da performance do barco, erros no leme ou nas velas causam capotagens feias e problemas técnicos tiram barcos da disputa.

Groupama 2, o vencedor de 2007 e tricampeão da prova, bateu o recorde que ele mesmo havia estabelecido ajudado pelas boas condições climáticas e por uma pequena redução no trajeto, que deixou de passar pela ilha de Ascension, no Atlântico sul, a 1.600 quilômetros da costa da África. Agora os barcos saem de Havre, cruzam o canal da Mancha, passam pela baía de Biscay e seguem direto rumo à linha do Equador – trecho crítico da travessia, com ventos e correntes marítimas fortíssimas. “Cruzar o Equador é a maior dificuldade da travessia. Depois de vencê-lo comemoramos com três brindes: um para o barco, um para o mar e o vento, outro para nós”, conta Gregory Gendron, 24 anos, co-skipper do Sopra e velejador mais novo da história da regata. A dois terços do caminho, uma última zona de tempo complicado: os Doldrums, uma área de ventos imprevisíveis e tempestades violentas. Depois, é colocar bermuda e protetor solar e aproveitar os ventos mais calmos e o calor do litoral brasileiro, num percurso que refaz, em sentido contrário, a rota que o café brasileiro seguia para chegar à Europa há centenas de anos.

Foi só no trecho final que o Groupama conseguiu abrir vantagem em cima do Gitana, que chegou a liderar a prova. “Foi uma disputa acirrada desde a largada. Mas o Gitana teve que parar para reparos e abrimos distância. Foi ótimo, porque depois disso pudemos vir com mais cautela. Esse é um barco muito rápido e perigoso”, diz Steve Ravussin, co-skipper do Groupama. “Geralmente os primeiros dias são muito difíceis, mas pegamos boas condições. E a zona do Equador foi o pesadelo de sempre: muito vento, muitas ondas, chuva”, completa. “Esta foi a primeira vez em que tivemos uma boa vantagem antes do fim da regata e pudemos relaxar. E ainda assim quebramos o recorde, graças ao bom tempo e à sorte de não termos tido grandes problemas. Numa das noites tocamos alguma coisa, talvez um peixe grande, mas felizmente não aconteceu nada com os cascos”, diz Frank Cammas, o skipper do Groupama.

Cammas e Steve velejam juntos há quase uma década, um entrosamento que com certeza é um dos segredos dos ótimos resultados do barco. “Somos uma boa dupla. Nunca tivemos uma briga a bordo, porque somos bons parceiros e porque não passamos muito tempo juntos, já que nos revezamos no leme. Trocamos algumas palavras e cada um vai fazer sua parte”, conta Steve. Outro segredo para a vitória nesta Jacques Vabre, segundo ele, foi a boa comida: “Um amigo meu é chef três estrelas de Michelin e preparou comida desidratada para nós. Comer bem é importante para a cabeça e para o corpo”, diz.

A FRANÇA É INDUBITAVELMENTE O MAIOR CELEIRO DE TALENTOS da vela quando o assunto são as travessias, principalmente as solos. Dos 10 homens que tripulavam os cinco Ormas, sete são franceses. Nas outras classes, a hegemonia se repete: dos cerca de 110 velejadores, 75 são franceses. E se o Orma é a Fórmula 1 da vela, Frank Cammas, 34 anos, é o Ayrton Senna com biquinho. Um dos skippers mais experientes da categoria multicasco, ele venceu três das cinco últimas edições da Jacques Vabre, foi quatro vezes campeão mundial da Orma e ainda manda bem nos esportes de neve, especialmente o esqui. Das 56 regatas em que participou com os trimarãs Groupama, venceu 28 e em quase todas as outras subiu no pódio.

Depois de ganhar tudo o que podia na classe Orma, Cammas agora se prepara para bater o grande recorde: o de volta ao mundo. A bordo de um maxi-trimarã, o Groupama 3, ele e uma tripulação de nove dos melhores velejadores do mundo esperam em Lorient, no noroeste da França, desde o começo de dezembro uma janela de tempo para lançar-se ao mar, velejar até a pontinha da África do Sul, dar a volta no círculo antártico e subir novamente pelo Atlântico. “Uma das forças de Cammas é conseguir reunir os melhores velejadores. Todos querem velejar com ele. Ele é muito técnico e sabe delegar”, diz Vincent Border, 47, diretor de comunicação do Groupama, o banco que patrocina a equipe. A empresa investiu em 2007 8 milhões de euros nos dois barcos. “E isso inclui a champanhe!”, brinca.

O Groupama 3 é uma utopia que se tornou realidade: um trimarã de 105 pés (31,5 metros), 42 metros de mastro e uma área vélica de 1.000 m2, projetado e construído para quebrar recordes. O melhor tempo desse trajeto de volta ao mundo, conhecido como troféu Jules Verne, é de 50 dias, 16 horas e 20 minutos e pertence ao (adivinhem!) francês Bruno Peyron. Cammas e sua trupe esperam baixar essa marca em dois dias. Como treinamento, eles passaram parte de 2007 quebrando todos os recordes que tentaram, mesmo sem condições climáticas ideais: Miami-Nova York, travessia do Atlântico Norte, rota de Colombo e maior distância coberta em 24 horas. “Estou ansioso pela volta ao mundo. O barco é muito rápido, o maior desafio é conseguir mantê-lo em boas condições. A parte mais difícil será o extremo sul. Se não tivermos problemas lá, o recorde pode ser quebrado”, diz Cammas. Bons ventos os levem.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de janeiro de 2008)







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