Se vira nos -30


NO TOPO: O brasileiro Bernardo Fonseca escalou até o cume de Patriot, depois de chegar em quarto lugar na montanha

Por Debora Rocha

É VERÃO NA ANTÁRTICA. A temperatura oscila entre -18ºC e -20, mas com sensação térmica de -30 por causa do vento. Um clima até que ameno para os inimagináveis -80ºC que os termômetros já marcaram em invernos anteriores. Por causa da movimentação do ar e da neve, a visibilidade é muito baixa e os ventos chegam a 45 km/h. Dormir é um teste de concentração, pois o sol reina forte quase que por 24 horas do dia. Para cair no sono, só colocando uma camiseta preta no rosto e se aninhando em sacos de dormir para baixas temperaturas.

O cenário acima foi o encontrado pelos atletas que toparam correr uma das maratonas mais inóspitas do planeta, em dezembro último: a Antarctic Icemarathon, criada em 2005 pelo corredor Richard Donovan. A prova nasceu como uma alternativa aos corredores que desejavam disputar maratonas em todos os continentes do mundo, inclusive no mais gelado do planeta. Mas são poucos os que enfrentam os 42 quilômetros em meio à neve, vento e frio. Em 2006 apenas 13 malucos se inscreveram e em 2007, 18 maratonistas rumaram próximo ao pólo sul.

Entre os corredores com tendência a pingüim da terceira edição estavam Bernardo Fonseca e Adriano Seabra, os únicos brasileiros do grupo e os primeiros latinos a participarem. Depois de treinarem dentro de frigoríficos para acostumar o corpo ao frio, o resultado até que foi satisfatório, levando em conta que os brasucas não estão acostumados a entrar, literalmente, numa fria: Bernardo chegou em quarto lugar e Adriano em décimo. “Com o tempo de 5h09min, fiquei com o recorde latino-americano. Tudo bem que só tinha eu e o Adriano de latinos, mas como apenas nós tivemos coragem de enfrentar a prova, acho um grande mérito”, comemora Bernando. “Só fiquei triste por não correr a ultramaratona que rolaria a seguir, desmarcada por causa do tempo ruim”, lamenta. A ultramaratona em questão seria a Antarctic 100K Ultra Race, uma competição que rolaria dois dias depois da Icemarathon.

“Tudo na Antártica depende do clima”, explicou Bernardo à nossa reportagem, por e-mail, enquanto aguardava em Punta Arenas, no Chile, o vôo até o sexto continente do planeta. A largada estava prevista para 12 de dezembro e a ultra para o dia 15, mas a organização da competição só contou com uma janela de vôo para a Antártica no dia 18 e a prova largou mesmo apenas dia 21.

O atraso fora provocado por uma nevasca que cobriu, com dois metros de neve, a pista de pouso na Antártica. Era um presságio de que a tão sonhada ultramaratona de 100K, percorrida em 24 horas, pudesse não acontecer. “E não largamos assim que chegamos porque era preciso desenhar uma pista para a prova. Fizeram isso duas vezes, mas a neve cobria tudo de novo. O tempo foi passando e os atletas começaram a ficar impacientes. Queríamos correr logo para voltar pra casa antes do Natal”, conta Bernardo.

No dia 20 de dezembro a organização conseguiu passar um trator na suposta pista para a corrida, mas o ideal era esperar mais 24 horas até a neve do piso ficar dura. Só que os meteorologistas avisaram que fortes ventos estavam a caminho do local. Pressionados pelos atletas, a organização decidiu mesmo assim dar a largada no dia 21, mas se o tempo ficasse muito ruim, os atletas parariam por motivo de segurança. Também para apaziguar os nervos dos corredores, os organizadores decidiram que a prova de 100 aconteceria como uma continuação da maratona de 42 (correndo mais 58 quilômetros), o que no fim também não vingou e ela foi definitivamente cancelada.

“Eu comecei num ritmo moderado porque queria me resguardar para os 100. O piso estava muito ruim, não dava para correr rápido e o pé afundava na neve. Logo de início fiquei com os tornozelos doendo. Não tínhamos treinado para isso. Lá pelo km 15 percebi que seria impossível correr os 100K. Então apertei o passo para buscar o grupo da frente. Passei um norte-americano e um inglês. Em piso normal correria melhor do que os três que chegaram na minha frente, mas os caras eram acostumados ao piso e ao clima”, explicou Bernardo, se referindo principalmente ao belga Marc de Keyser, um metereologista acostumado a trabalhar na Antártica, que havia treinado dois meses antes no local. “Ele estava totalmente aclimatado e sabia como correr ali, por isso ganhou a prova. O segundo e terceiro eram irlandeses e em décimo chegou Adriano, com muita dor no pé”, nos contou Bernardo já no Brasil, depois de superar a frustração por não completar os 100K.

Além da frustração, os competidores tiveram prejuízos financeiros com o cancelamento. A inscrição custou 15 mil dólares, já incluso o vôo de Punta Arenas à região de Patriot Hills, na Antártica, a 80º de latitude e cerca de mil quilômetros do pólo sul. Mais os 60 mil reais gastos em roupas especiais para o frio, estadia no Chile e treinamentos. E nenhum centavo foi devolvido por causa do cancelamento da ultra, pois o contrato condicionava às provas ao clima e o risco também era dos atletas. “Apesar dos imprevistos, fiquei feliz com a minha colocação”, comemora Bernardo. “Perto do pólo sul tudo é diferente. Aproveitei para escalar e até joguei vôlei e futebol vestindo aquelas pesadas roupas. Tivemos palestras sobre as expedições de Shackleton, Scott, Amundsen e outros que desbravaram o continente gelado nos séculos passados. A prova foi um aprendizado e um alerta para nunca subestimarmos a natureza”, analisa o brasileiro.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2008)







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