Dá-lhe tetra!


MONTANHA ARRIBA: Largada da 22ª edição do Tetratlón Chapelco, na Argentina

Por Caco Alzugaray

PENSE: QUE COMPETIÇÃO MULTIESPORTIVA de aventura é praticada há mais de 20 anos no Brasil? A corrida de aventura acaba de completar dez anos no país. As provas multiesporte – competições solo sem navegação que combinam mountain bike, canoagem e corrida em trilha – estão em seu terceiro ano em terras brasileiras. Não parece inacreditável que nossos vizinhos rivais de peleja, os argentinos, possam estar à nossa frente nesta praia? Ou melhor, nesta montanha? Pois estão, e muito. Foi isso que eu e dois amigos corredores de aventura fomos conferir no 22º Tetratlón de Chapelco (sim, eu disse vigésimo segundo), uma prova de endurance em montanha que combina 15 quilômetros de esqui na neve, 42 de mountain bike, 12 de canoagem e 16 de corrida de montanha.

Chapelco é o centro de esqui de San Martin de los Andes, Argentina, que recebe anualmente o (disparado) mais tradicional e importante tetratlon de montanha do país. Além de San Martin, as cidades de Bariloche e Esquel, ambas no norte da Patagônia, sediam, há menos de cinco anos, provas da modalidade. Aliás, o que vim a descobrir é que o Tetratlon de Chapelco não apenas é o mais importante de seu gênero na Argentina, mas é também a competição mais ambicionada e importante para esportistas de aventura do país. O ganhador é definitivamente “o cara” da aventura argentina, o rei (e a rainha) da montanha que certamente farão de tudo para não perder o trono no ano seguinte. Pode-se fazer um paralelo – sem medo de exagerar – com a importância e a tradição que a prova multiesportes Coast to Coast tem para a Nova Zelândia.

PERSIGO O TETRALON DE CHAPELCO há vários anos. Acho que há uns dez. A princípio, faltava-me preparo técnico e físico para me arriscar. Com o passar dos anos, me faltava a gota final de disposição para me inscrever. E, nos últimos dois ou três anos, me faltaram ossos e/ou músculos inteiros para encarar a prova (coincidentemente e infelizmente, eu estava sempre lesionado

por alguma outra prova ou treino).Este ano, eu não tinha desculpas.

“Buenos días, San Martín! Agora são sete da manhã deste sábado de Tetra. Faz 2 graus, chove muito na cidade e neva muito na montanha. Se alguém sabe a previsão do tempo para o dia, por favor, ligue e nos conte, porque nós não temos idéia”, anunciava a principal rádio da cidade, enquanto eu, José Caputo e André Iervolino nos dirigíamos para a largada com nossa caminhoneta alugada.

Uma hora antes da largada, a excitação era igual e enorme para nós três – mas, nossos frios na barriga tinham causas diferentes.

A minha principal preocupação era a etapa de canoagem no lago Lacar, pois não sou dono de uma muita técnica de canoagem e as embarcações que alugamos eram desenhadas para serem mais rápidas e terem menos arrasto na superfície da água, o que conseqüentemente as tornava mais instáveis. Se nesta etapa entrasse um vento forte no vale (o que era bem provável), minha chance de virar no gélido lago não era nada remota. O André tinha um barco igual ao meu e o Caputo foi ainda mais ousado, alugando uma embarcação técnica e veloz (e mais instável), igual à dos corredores que brigavam pelos top 10. Por sua vez, a maior preocupação do Zé e do André era a primeira etapa, o esqui na neve. Não pela tempestade que cobria todo o Cerro Chapelco, mas pelo fato deles terem aprendido a esquiar dias antes da prova. Logo após terminarmos, o Zé nos confessou que quase não largou, por causa da enorme preocupação que tinha com a etapa. Porém a tempestade trouxe uma boa notícia aos dois: a etapa de esqui sofreu grandes cortes nos trechos mais difíceis.

A LARGADA FOI SURREAL. Aproximadamente 600 corredores explodiam montanha acima com as botas de esqui nos pés e carregando os esquis nos ombros. Já na primeira das muitas subidas nesse estilo, os atletas andinos mostraram sua enorme diferença técnica e de condicionamento específico para a modalidade – como africanos em maratonas, seus numerais nas costas pareciam nos dar um “tchau, nos vemos na chegada”.

A enorme falação característica dos segundos que antecedem a largada foi substituída pelo abismal silêncio causado pela altíssima freqüência cardíaca que os corredores alcançavam poucos segundos após iniciarem o uphill. No momento em que os corredores se calavam, era a hora de nossas vozes interiores entrarem em ação, para só descansarem ao final da competição. Na largada, a minha berrava: “Vamu emboooooooooooooooooooooraaaaaaaaaaaa!”

Para o alívio do André e principalmente do Zé, o corte do esqui foi realmente significativo: as descidas se resumiram aos poucos caminitos de dificílima ultrapassagem. Além da etapa ter sido curta (durou pouco mais de uma hora), passamos bem mais da metade desse tempo subindo com os esquis nos ombros ou mesmo em uma ascensão de cadeirinha (ski-lift) que a organização encaixou no meio do prova.

Quando cheguei na transição para o mountain bike, minha impressão era que só havia pouco mais da metade das bikes esperando seus corredores – visão que confesso ter sido um pouco desoladora, pois como corredor de aventura no Brasil me acostumei a correr pelo pódio, sempre disputando com o primeiro pelotão da prova. Mas a frustração passou rápido. A cada metro corrido eu me convencia que aquele esporte – suas técnicas, manhas e até o condicionamento físico – são muito, muito específicos e dominados pelos famosos corredores andinos.

Apesar do frio desumano causado pela chuva, quase neve, que molhava até os ossos, e do meu receio e conservadorismo na etapa de mountain bike (conseqüência de um tombão que levei há quatro meses, que destruiu minha clavícula e me obrigou a ficar quase três meses de molho pós-cirúrgico), esta modalidade foi incrível: visuais épicos, trechos de neve nas trilhas, muita lama e algumas estradas mais rápidas, de terra e asfalto – um mix de terrenos que tornou a etapa bem dinâmica. O filho da mãe do Zé, que terminara o esqui 12 minutos depois de mim, me buscou no final do pedal e chegamos juntos na transição para a canoagem. “Dios”, (não sei por que, eu invocava-O em espanhol, talvez para facilitar o contato naquela região, ou talvez porque eu já estava zoado), “onde catso está minha saia do caiaque?”

Bobeei geral: confiei cegamente no cara que me alugou o caiaque quando ele me disse que deixaria a saia dentro do cockpit. E não conferi! Bom, não vou detalhar o drama que vivi nessa hora, quando me vi saindo e depois, graças a Dios, voltando para a prova. Só digo que, depois de muito tempo perdido, finalmente caí no lago.

Mas Él ouviu mesmo o meu chamado e resolveu compensar o perrengue me presenteando com um lago em condição absolutamente improvável: de tão liso, parecia uma gelatina. No final das contas, a etapa que eu tanto temia acabou sendo um prêmio, quase um descanso.

O André não pôde dizer o mesmo. Ele não conseguia mexer os braços, pois colocou a camisa de mangas compridas de neoprene em cima de sua roupa. Isso mesmo: por cima do fleece e do corta-vento que ele usava. Acho que ele queria competir comigo em bisonhice de principiante.

DALE TETRA! Desta forma, o simpático povo local nos saudava, gritando, assim que saíamos correndo da transição da canoagem para os 16 quilômetros de trilhas nas montanhas que cobrem o vale da cidade. Com o “Dale”, eles queriam dizer “força aí, ô!” e com o “Tetra”, “corredor do Tetratlon”. Legais, não? A trilha de corrida era realmente linda, com muito desnível, subindo e descendo montanhas de bosques centenários de arrayanes. Mas da mesma forma que a etapa foi linda, foi duríssima, pois praticamente não havia trechos planos. Ou você corria subindo, o que judiava as coxas e os pulmões, ou descendo, que maltratava os joelhos.

A chegada, como em qualquer prova em que passamos mais de seis horas competindo com nós mesmos, brigando (no bom sentido) com nossas fraquezas físicas e mentais, foi muito emocionante. O perrengue do inacreditável frio, em especial, valorizou este momento e foi impossível evitar que os olhos marejassem. Assim que o André chegou, notei que seus olhos também sentiram o baque da emoção e ao darmos um abraço parecíamos falar um pro outro, sem abrir a boca: “foi f., né?”

Depois de 6h30min de suor congelando no corpo, chegamos os três a pouquíssimos minutos de distância: apenas 13 nos separavam. O Zé Caputo foi o campeão da categoria “lá em casa” e à noite pagamos para ele uma rodada de Lacar Âmbar, a artesanal cerveja local que elegemos como nosso repositor energético. Dale Tetra sem bafômetro!

Os vencedores chegaram 1h30min antes de nós e deixaram claro que os corredores andinos estão à nossa frente em esportes de montanha – para muitos, os verdadeiros esportes de aventura. Mesmo assim, não desanimarei: entre uma Lacar e outra, decidi que volto ano que vem (e, se possível, todos os outros) para o Tetra.


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de novembro de 2008)







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