Duro na queda

Por Ben Stookesberry

CONHECI O IMENSO POTENCIAL de cachoeiras da região central do Brasil em 2008, quando fui convidado por Ryan McPherson para me juntar à sua busca pelas 50 primeiras descidas deste país. Verdadeiro guru em águas brancas brasileiras, este californiano de português fluente já trouxera eu e Jesse Coombs para conhecer as impressionantes cataratas e cachoeiras da região Sudeste em 2006, quando filmamos o Hotel Charley, filme sobre caiaque. Quando retornou ao Brasil em 2008, Ryan optou por visitar a região onde fica a maior fonte de água doce do mundo: o ponto em que o imenso rio Paraná (terceiro maior do mundo) inicia sua jornada para o sul, separando-se dos rios que marcham para o norte, em direção à Amazônia e ao Atlântico equatorial.

A topografia de planaltos e montes do Brasil central se parece com a do sudoeste dos Estados Unidos, só que vestida de florestas verde escuras. As tempestades torrenciais que ocorrem durante quatro a sete meses por ano chegam a precipitar até 15 centímetros de água em uma hora. Não há montanhas altas o suficiente para enviar grandes cargas de sedimento para dentro dos rios, então a erosão é estável e os rios podem meandrar de 80 a 160 quilômetros, até desabarem numa queda de 20 a 100 metros.

Após encontrar o que parecia uma sucessão infinita de quedas remáveis de caiaque, descobrimos que essas fabulosas chapadas são o melhor lugar do mundo para o caiaque em grandes quedas. Na viagem de 2008 descemos inúmeras cachoeiras de mais de 15 metros e observamos várias outras, lindas, de mais de 40 metros. Com experiência em quedas entre 25 e 27 metros, progredimos gradualmente, até eu descer a Anaconda, de 30 metros. Esta cachoeira foi batizada assim após uma família local alertar a respeito da presença de uma grande sucuri (a anaconda amarela) na base da queda.

Apesar das inconveniências do Brasil selvagem, nos divertimos muito. A zona de chapadas hospeda uma incrível gama de plantas e animais – desde enormes cactus de 12 metros em flor a tucanos e grandes roedores aquáticos – nos espaços de mata remanescentes. Infelizmente, vastas porções do Brasil central já foram desmatadas, dando lugar a planícies de soja e milho. Por sorte, cânions inóspitos e outras áreas incompatíveis com a agricultura ainda permanecem. Entretanto, muitos desses cânions ainda selvagens correm marrons, com resíduos das plantações: minerais, fertilizantes e pesticidas necessários para manter a soja onde antes seria uma paisagem verdejante.

A cachoeira em que Pedro Oliva quebrou o recorde – a salto Belo, no rio Sacre, Campos Novos (MT) – está logo abaixo da interface do mundo da agricultura industrial e do Brasil ancestral. Perto das maiores plantações de soja do mundo, a cachoeira é produto das terras indígenas que protegeram um enorme rio com 140 metros cúbicos por segundo de água de chuva morna e cristalina. Isto, em conjunto com uma equipe de remadores de caiaque profissionais e focados, deram ao Pedro a oportunidade de fazer história num rio cujo destino está certamente ameaçado.

Eu tinha conhecido Pedro Oliva rapidamente no campeonato de caiaque freestyle no rio Ottawa (Canadá), na primavera de 2007, e no ano seguinte remei com ele pela primeira vez no Brasil. Com um inglês mínimo e meu português idem, rapidamente aprendemos a nos comunicar em espanhol, e descobrimos um objetivo comum: buscar as maiores e mais descíveis cachoeiras, capturando as imagens com uma câmera HD.

No Brasil, Pedro já é conhecido como atleta de caiaque extremo. O energético paulista de 26 anos firmou sua intenção de tentar um recorde de queda livre num caiaque em 2008, quando se preparou para descer duas quedas de mais de 40 metros. O projeto não chegou a ser realizado. Mas este ano, em salto Belo, chegou a hora de Pedrinho dropar 38,7 metros de cachoeira.

FIZ O PAPEL DE LÍDER da expedição, mas todos tinham sua especialidade. A minha era procurar rios usando mapas, fotos de internet, Google Earth, e, às vezes, informações duvidosas de segunda mão. A cachoeira recordista foi encontrada na 32º página de uma busca no Google, que nos levou a 12 horas a nordeste de Campos Novos do Pareceis, onde começamos a ouvir falar de enormes quedas ao norte dali.

Após ter uma idéia do tamanho da queda, fui atrás da medida mais precisa da cachoeira. Amarrei uma bolsa estanque na ponta de uma corda estática e fiz uma medida desde a borda até umas pedras logo na superfície da piscina da base. Usando uma envergadura conhecida de 1,83 metros, medimos 21 dessas envergaduras e mais 30 centímetros da bolsa. Total: 38,7 metros (quase os 40 indicados pelos nossos guias) – 5,5 metros a mais que o recorde da época, que era 33,1. Assim soubemos que nossa medida poderia ter um erro de 5,6 metros, e ainda assim bateríamos o recorde.

Dias antes do recorde ficamos sem dois membros de nossa equipe: o mexicano Rafael Ortiz, de 21 anos – o mais jovem membro da nossa equipe e atleta Red Bull residente no Brasil –, que tivera que voltar ao seu país; e Jesse Coombs, veterano em transportes e logística e nosso McGyver, que também precisou retornar aos EUA. Sem Jesse e Rafa, o nativo do estado de Oregon (EUA), Chris Korbulic, era o único da equipe em pé na base da cachoeira no dia da descida. Nos últimos três dias, Chris havia feito três primeiras descidas de mais de 20 metros. Mas no dia da descida de Pedro, Chris assumiu o papel de equipe de apoio e, com a ajuda de guias locais e entusiastas do canionismo, rapelou quase 40 metros no vazio até a base das cacheiras, com um caiaque pendurado para uso em caso de resgate.

O SALTO BELO É GRANDE não só por sua altura, mas também por seus quase 400 metros de largura, oferecendo várias opções de linha de descida. Inicialmente, Pedro e Chris subiram bastante acima das quedas para ter uma visão do outro lado. Desde o começo, Pedro estava de olho numa grande língua de água convergindo do lado esquerdo, mas queria analisar todos os ângulos possíveis. Isso o fez caminhar centímetro por centímetro, com água na cintura, na borda da cachoeira, para ter uma visão igual àquela que teria do seu caiaque, menos de uma hora mais tarde. Eu o segui com uma câmera enquanto Pedro se inclinava sobre a borda observando a piscina nebulosa abaixo.

Após três horas de reconhecimento, Pedro deu dois apitos rápidos e atacou a borda ligeiramente inclinada com seu caiaque Jackson Kayak Rocker (o mesmo barco que usei na Anaconda, um ano antes). Depois dos primeiros 13 metros de queda livre, Pedro começou a rodar demais, ficando quase de cabeça para baixo. Do alto da margem esquerda do rio, perdemos a visão dele após aproximadamente 2,8 segundos. Sem um som sequer, Pedro desapareceu dentro dos 3 ou 4,5 metros de spray que emanavam da base da queda. Mais um minuto se passou sem sinal de Pedro ou de seu equipamento.

Depois de uns 15 segundos, comecei a suspeitar que ele poderia ter sido empurrado para trás das quedas. Aos 45 segundos, Chris entrou em ação para procurar Pedro, decidido a encarar o furacão que esbofeteava a caverna por trás da queda. Naquele ponto, dentro da minha cabeça, cada segundo se enchia de cenários das piores e das melhores das hipóteses. Com Chris fora de vista, eu comecei a procurar Nenê, nosso guia local, para saber notícias. Quando eu e nosso guia-chefe Toco começamos a nos posicionar para rapelar até a base da cachoeira, Toco começou a gritar descontroladamente, enquanto Nenê mostrava dois dedões enormes para cima. Pedro havia emergido por trás da queda.

Aterrisagens mais do que verticais em água profunda e aerada normalmente têm poucas consequências e são um plano B apenas para uma aterrissagem perfeitamente vertical. Ainda que preferível, ela quase sempre resulta em uma ejeção rápida do barco, cancelando a quebra de recorde. Entretanto, com uma quantidade enorme de água misturada a 38 metros de ar, a aterrissagem foi muito mais como neve fofa do que como a superfície de um lago. Isso jogou Pedro e seu barco em águas profundas, macias e violentas, mas não o ejetou do caiaque. Seu remo quebrou e foi levado enquanto ele era violentamente chacoalhado na base da queda. Pedro agarrou numas pedras para endireitar o caiaque, e depois de retomar sua posição descobriu que adentrara um cenário que poderia ser o pesadelo de um remador de caiaque: emergiu por trás da cachoeira.

Nesse ambiente extremamente hostil, ele fez uma saída rápida de seu barco para a relativa segurança de um platô. Um pouco mais atrás da enorme névoa causada pelas quedas, ele avistou brilhantes cobras verdes e marrom, dormindo entre as rochas. Apesar delas estarem pacificamente adormecidas, digerindo uma recente refeição, Pedro emergiu da caverna como um homem que retorna de um outro mundo: sem um arranhão e detentor de um recorde mundial.

A nossa visão deles

O trio de canoístas visitou a Go Outside depois do recorde

Por Fernanda Franco

ELES CHEGARAM À REDAÇÃO meia hora atrasados. A comemoração na noite anterior pela quebra do recorde mundial aconteceu numa badalada casa noturna de São Paulo, regada à muita champanhe. Pedro Oliva, Ben Stookesberry e Chris Korbulic eram o retrato de campeões depois da festa do título: sorriso no rosto e ressaca no corpo.

Conversamos sobre os 25 dias de expedição entre os estados de Goiás e Mato Grosso, que culminou com o recorde de Pedro no salto Belo. “A viagem seguiu numa crescente. Começamos em cachoeiras de 15 metros, passamos para as de 20 metros, e paramos na de 38 metros”, contou Pedro.

Quem liderou a entrevista foi o matemático Ben, com seu excelente português, explicando como aplicava uma fórmula de derivativa “simples” para calcular o tempo de queda livre do caiaque durante a descida e a velocidade com que ele atingiria a base da cachoeira.

Chris, o mais novo e estreante em território brasileiro, tinha ouvido falar da facilidade de viajar por aqui e, claro, sobre as melhores corredeiras e cachoeiras em água e clima quentes. Tanto que ele trouxe na mala, além do caiaque, do remo e do capacete, apenas duas camisetas e uma bermuda. Enquanto usava uma muda de roupa, a outra secava. O gringo não se abalou quando precisou emprestar roupas de Pedro, nem quando tomou antibióticos para conter a infecção ocasionada pela picada de uma aranha marrom, que deixou seu tornozelo roxo e inchado durante a viagem. Riu das duas situações.

O trio realmente parecia muito entrosado, e a troca de elogios e gentilezas foi constante. Foi justamente a esta sinergia que Pedro creditou ao sucesso. “O recorde não é meu, é do time”, afirmou o brasileiro. Emocionado, Pedrinho contou que os segundos mais felizes de sua vida foram os que antecederam a despencada de 2,9 segundos rumo ao desconhecido. “Era uma mistura de otimismo, com um pouco de pessimismo. Não sabia o que ia acontecer, mas a confiança fazia o lado positivo ser mais forte. Despenquei gritando”, lembra.

Na hora que foram embora, vi o Fiat Doblô usado pelo grupo, ainda com cara de barca da aventura: o rack feito por quatro toras de eucalipto, unidas duas a duas com fitas extensoras. Nos bancos, a bermuda laranja de Chris e suas duas camisas secando. A porta traseira de correr já não fecha mais depois de tantos trancos, e os três batiam cabeça para resolver esse pepino. Antes de irem, Ben me confessou que pensa em morar no Brasil. E lembrando da balada na noite anterior, me perguntou: “Por que as mulheres daqui são tão loucas?”.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2009)







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