A história da criação


A PRIMEIRA NINGUÉM ESQUECE: Lance veste pela primeira vez a camiseta amarela, no pódio de prólogo do 86º Tour de France
(Foto: Pascal Pavani)

Por John Bradley

QUASE QUE NÃO ACONTECE. Embora tenha sido campeão mundial de ciclismo aos 21 anos, Lance Armstrong era, em 1998, aos 26 anos, um sobrevivente do câncer cuja melhor colocação no Tour de France tinha sido 36º, e que estava tentando voltar ao ciclismo profissional. As grandes equipes não o queriam, e nem ele tinha certeza se queria voltar ao esporte. Sua primeira corrida nesse retorno foi a Ruta Del Sol, um aquecimento de cinco dias em fevereiro para a longa temporada que começava. Sua colocação foi um encorajador 14º, mas duas semanas depois, enquanto competia na bem mais difícil Paris-Nice, parou no meio do frio e do vento da segunda etapa e desmontou da bicicleta, sem acreditar que voltaria a ela um dia.

Nas páginas a seguir, treinadores, colegas e melhores amigos de Lance relembram os esforços para convencê-lo a voltar ao esporte, as transformações mentais e fisiológicas que se seguiram, e o milagroso Tour de France que acabou há exatos dez anos com mais um herói do ciclismo.

Muito forte, muito rápido

Março-abril de 2008

PAUL SHERWEN (comentarista de ciclismo e ex-ciclista profissional): Lembro do resultado de Lance na Ruta del Sol. Para mim, isso já tinha sido um tremendo sucesso. Mas a Ruta Del Sol é uma corrida de abertura. A Paris-Nice é a primeira corrida dura da temporada.

LANCE ARMSTRONG: Eu não sentia vontade de estar lá, por isso parei e disse “Chega”. Foi uma reação instintiva, totalmente irracional.

BART KNAGGS (amigo de longa data de Lance e colega ciclista da época das categorias juvenis, agora sócio na firma de gerenciamento de Lance): Ele tinha grandes expectativas, e de repente era só mais um cara apanhando na chuva, com cascalho nos dentes. Ele dizia, “Não preciso disso. Talvez eu faça faculdade, talvez arranje um emprego”. Começamos a falar com as pessoas sobre o que ele poderia fazer – trabalhar como corretor de imóveis, ou talvez no setor financeiro. Mas, ao mesmo tempo, a gente chegou a um consenso: Lance nasceu para o ciclismo. Vamos reacender a paixão nele.

CHRIS CARMICHAEL (treinador de longa data de Armstrong): Eu lembro bem de uma discussão. Eu disse, “Olha, você está dizendo que já provou o que queria para a comunidade do câncer porque voltou a correr profissionalmente e continua competitivo. Mas, cara, você parou e desistiu. E é disso que as pessoas vão lembrar”. Ele não gostou dessa idéia, me ligou e falou “Tá legal, vamos encarar mais uma corrida”, a U.S. Pro. “Mas preciso sair de Austin. Lá eu só jogo golfe e bebo cerveja. Se vou mesmo fazer isso, tenho que ir com tudo”.

Assim começamos a falar sobre Boone, uma cidadezinha hippie descolada na Carolina do Norte [EUA]. Ótima atmosfera e um monte de subidas. Depois, ele precisava de um parceiro de treino, e eu me lembro de dizer, “Que tal o [veterano do Tour de France] Bob Roll? Ele seria perfeito”. O cara é engraçado para diabo e ainda corria de mountain bike na época. E Bob tinha um jeito de fazer as pessoas entrarem numa onda pensativa, introspectiva, sem forçar a barra.

PHIL LIGGETT (jornalista e comentarista de ciclismo): Bob e Chris estavam tentando endireitar a cabeça dele mais que o corpo, já que ele levou um belo nabo na Paris-Nice. Por isso foram para Boone em abril e pedalaram forte nas estradas, sete horas por dia, naquele clima atroz.

LANCE: Era só Chris, Bob, e eu numa cabana, treinando horas a fio e comendo em casa. Era uma vida de monge que acabamos seguindo por dez anos depois disso. O clima era realmente péssimo, mas a gente estava determinado e pedalou todos os dias. Provei para mim mesmo que adorava o que estava fazendo.

CHRIS CARMICHAEL: No ultimo dia foram 190 quilômetros de pedal e os caras queriam terminar na montanha Beech, que era uma bela subida. Lá em cima eu ia colocar as bikes no carro e dirigir os 50 quilômetros de volta até a cabana. Assim que chegamos na subida, Lance disparou na frente do Bob. Eu estava seguindo Lance e ele ficava levantando do selim e socando os pedais. Não estava mais chovendo – estava nevando! Não tinha ninguém lá, só uma vaca do lado da estrada e eu. Parei no acostamento, abaixei a janela, buzinei e gritei com ele, batendo do lado do carro, dizendo, “É, vamos lá!”, como se ele estivesse competindo. Não sei por que fiz isso.

Chegamos no topo, e até hoje lembro o que ele disse: “Me dá minha capa de chuva. Vou voltar pedalando.” Era quinta-feira, e tinha uma corrida em Atlanta no domingo. Na hora em que chegamos na cabana, ele disse “tenho que ir para essa corrida”. Lembro dele discutindo com o chefe da equipe porque não tinham rodas de competição para ele. Isso deixou o Lance puto da vida. Eu estava dando pulos de alegria, porque o Lance é melhor quando está puto. E assim voltamos ao jogo.

De volta à bike

Abril 1998 a junho 1999

Naquela primavera, Lance não só voltou ao mundo das corridas; ele passou voando por ele. Chegou em quarto no U.S. Pro, depois ganhou três provas menores em etapas, uma atrás da outra. Em 98, ele não participou do Tour de France, mas entrou na Vuelta a España, que dura três semanas, em setembro, e chegou em 4º na classificação geral. Depois disso, faturou mais um 4º lugar no campeonato mundial, tanto nos contra-relógios como na prova de estrada. “De julho a setembro, quem pedalava melhor que ele?”, conta Bart. “Acho que não tinha ninguém”. Depois dessa temporada, Lance e seus associados tiveram a primeira conversa séria sobre o Tour de France, uma prova onde ele nunca tinha tido grandes chances. O plano decolou quando recrutaram o ciclista profissional Johan Bruyneel para ser chefe de equipe. Johan colocou o Tour como prioridade e, junto com Lance, fez uma meticulosa preparação para cada etapa da corrida. Sua abordagem revolucionária acabaria servindo de modelo para todos que queriam ganhar o Tour.

JIM OCHOWICZ (mentor de longa data de Lance, ex-ciclista olímpico e treinador, e fundador da equipe de ciclismo profissional 7-Eleven): Lance tinha levado uma bela surra da quimioterapia e estava voltado a parecer um ciclista, mas um pouco menor, com pernas mais finas.

PAUL: 4º lugar na Vuelta, 4º nos contra-relógios e 4º no mundial. E depois ele comprova tudo, e ainda por cima no mundial, que foi a cereja no bolo. Se o final da temporada é bom, o começo da temporada seguinte provavelmente vai ser bom também. Por isso achamos que Lance tinha chances de chegar entre os cinco primeiros no Tour.

CHRIS CARMICHAEL: E ele ainda tinha só 26 anos.

LANCE: Eu nem pensei no que a Vuelta significava em relação ao Tour de France até que Johan e eu nos juntamos e ele disse, “Cara, você tem chance de ganhar”.

JOHAN BRUYNEEL (ex-ciclista profissional e diretor de equipe em todas as sete vitórias de Lance no Tour de France): Era tudo novo para mim, porque eu ainda tinha a mentalidade de um ciclista. Por isso pensei: se eu pudesse decidir o meu próprio calendário para me preparar para o Tour de France, sem qualquer outra obrigação, como seria ele? Por “obrigações” quero dizer ter que provar algo a mim mesmo ou ter que satisfazer os patrocinadores que querem que a gente corra nesse ou naquele país. Peguei um papel em branco, marquei tudo para trás a partir do Tour e fiz o calendário dos meus sonhos. Por sorte, nosso patrocinador [o Correio dos EUA] era dos Estados Unidos e não estava interessado em outras corridas além do Tour. Acho que foi bom a gente ser meio ingênuo, porque essa não era a escolha mais lógica.

GEORGE HINCAPIE (colega de longa data de Lance): Johan organizou as coisas. A gente não tinha uma equipe propriamente dita para o Tour de France. Era só um bando de americanos – sete caras dos Estados Unidos e dois estrangeiros. Mas a gente penou para deixá-los tão preparados quanto possível, mostramos as etapas montanhosas, trabalhamos no contra-relógio e, basicamente, deixamos todo mundo pilhado.

CHRIS CARMICHAEL: Eu gostaria de dizer que foi uma abordagem científica, mas, na verdade, muito daquilo foi pura dedicação. Antes, Lance se dedicava por algumas semanas, e depois perdia o foco. Dessa vez, ele tinha um compromisso maior. Ele sabia que tinha ganhado uma segunda chance.

JOHAN: Passamos um tempão treinando nas etapas do Tour, algo que nunca tinha sido feito antes. Algumas pessoas davam uma olhada nas etapas mais importantes, mas nunca com tanta profundidade quanto a gente.

BILL STAPLETON (agente do Lance): Eu não percebi o quanto ele estava dedicado até visitá-lo em maio. Ele queria saber o que eu poderia ganhar para ele, em termos de bônus, pela vitória. Lembro de sair da reunião pensando: esse cara acha mesmo que vai ganhar o Tour de France.

Quedas

3 de julho, 1999

Lance terminou várias corridas famosas por sua brutalidade na primavera de 1999 – incluindo a Paris-Nice – e chegou em um emocionante 2º lugar na corrida de um dia Amstel Gold, em abril. E também sofreu várias quedas, uma das quais o tirou da bike por duas semanas. E então, quando o Tour já estava próximo, sua dedicação quase estragou seu retorno.

HINCAPIE: Estávamos no percurso do prólogo algumas horas antes da largada, tentando memorizar as curvas, e Lance quis ver se conseguíamos cruzar o último morro com a coroa maior. Estávamos descendo por uma reta, e ele estava olhando sua engrenagem. Eu estava atrás dele, quando um carro apareceu bem na frente dele. Eu gritei “Lance!” e ele desviou no último instante, mas não conseguiu escapar de bater no retrovisor e cair, mas foi de leve comparado com o que podia ter sido. É até engraçado: toda sua história no Tour poderia ter acabado naquele momento.

A 1ª camiseta amarela

3 de julho

Um prólogo é um contra-relógio rápido no começo de uma corrida em etapas, usado para definir quem vai usar a camiseta de líder na primeira etapa. Lance percorreu o percurso de 6,7 quilômetros em 8min02s, sete segundos – uma eternidade em um evento tão curto – na frente do 2º lugar, o suíço Alex Zülle (favorito de muitos na corrida).

JOHAN: Isso confirmou que Lance estava em excelente forma. E, claro, foi um belo estímulo para o moral – a primeira camiseta amarela.

LANCE: Eu nunca esperei estar nessa posição. Eu achava que, em um dia bom, estaria entre os dez melhores, cinco talvez. Foi surreal.

BART: Eram 9 da manhã em Austin, Texas. Falei umas duas horas com Bill e Chris naquele dia. Não pus as calças até as 2 da tarde.

Quer dizer, caramba, ele tinha acabado de ganhar o prólogo do Tour de France! Ele estava com a camiseta. Tem gente que passa anos atrás dessa camiseta. E não são palermas – são caras bons!

BILL: A gente estava negociando com a Bristol-Myers Squibb desde 1997 –eram eles que fabricavam a droga da quimioterapia – mas nunca tínhamos fechado um acordo. Quando Lance ganhou o prólogo, lembro de atender o telefone e era um cara com quem tinha conversado umas 11 vezes. Ele disse, “Fico com vergonha de fazer essa ligação agora, mas estamos prontos para assinar o contrato”. Página inteira no USA Today, no New York Times e no Wall Street Journal: “Este milagre foi trazido a vocês pela Bristol-Myers Squibb”.


VELOCIDADE MÁXIMA: Em ação no contra-relógio do prólogo ao redor de Le Puy Du Fou, durante o Tour 1999
(Foto: Getty Images)

Um golpe tático

5 de julho

A 1ª etapa levou os ciclistas até a Passage du Gois, uma rota cheia de pedras na costa ocidental da França que só pode ser atravessada na maré baixa. Escorregadia, estreita e com água nos dois lados, era um trecho onde ultrapassar era quase impossível. A equipe de Lance batalhou para mantê-lo na liderança quando entraram nesse trecho. Embora tenha perdido a camiseta amarela naquele dia, ele terminou vários minutos na frente da maioria dos competidores, incluindo Zülle e o espanhol Fernando Escartin, outro favorito, que ficaram presos atrás, numa série de acidentes.

JOHAN: Eu estava mais preocupado em ter a camiseta e ter o controle da corrida. Com o devido respeito, não éramos uma equipe forte. Tínhamos três ou quatro ciclistas bons e mais três ou quatro que estavam lá só porque a gente precisava de nove ciclistas.

GEORGE HINCAPIE: Quando tem um monte de gente tentando passar por uma estrada da largura de uma pista de bicicleta, eu estou no meio, 99,9% do tempo. Essa é uma das razões por que Lance me queria ali – ele sabia que eu podia ajudá-lo naquele momento. Entramos [na Passage] em terceiro ou quarto e fomos dois dos dez caras que saíram de lá sem se envolver em acidentes. Alguns ciclistas perderam o Tour naquele dia.

LANCE: As imagens do helicóptero são incríveis. Foi um verdadeiro massacre lá atrás. Tinha carinha caindo no mar.

BART: Volte para 1999 e tire a Passage du Gois, e você tem uma corrida completamente diferente.

Recuperando a amarelinha

11 de julho

O primeiro teste de verdade para os competidores foi o contra-relógio individual da 8ª etapa, na cidade de Metz. Com 56 quilômetros, ela levaria os corredores mais fortes para a frente antes do Tour chegar nas montanhas. Os ciclistas partiram em intervalos de dois minutos, e Lance alcançou os três que largaram antes dele, incluindo o campeão mundial de contra-relógio, o colombiano Abraham Olano. No final do dia, ele estava vestindo amarelo de novo.

GEORGE: O Lance detonou naquele contra-relógio. Ele passou o Olano! Ele até me alcançou, e olha que eu tinha saído quatro minutos na frente dele.

JIM: Ele estava mostrando para todos – e com “todos” quero dizer os diretores e competidores do esporte – como é que se faz, e todos estavam de olho nele. Todos os diretores que tentei convencer a recrutar o Lance no ano anterior estavam querendo morrer.

PAUL: A vitória de Lance em Metz confirmou que o prólogo tinha sido uma boa corrida, mas não confirmava que ele ia conseguir atravessar as montanhas. Seus piores tempos na Vuelta tinham sido nas etapas de subida.

JOHAN: As coisas que vi do Lance em alguns dos nossos treinos me deixaram impressionado com sua velocidade nas montanhas. Lembro de falar para o mecânico no carro, Julien, “Se é assim que ele vai pedalar em julho, então temos um vencedor para o Tour”.

BART: Eles não achavam que Lance ia conseguir subir as ladeiras. Mas ele tinha treinado muito nas montanhas, e estava só esperando o primeiro dia.

Sestrière


13 de julho

A 9ª etapa marcou o primeiro dia nas montanhas, com uma rota que incluía o monstruoso Col du Galibier e terminava com uma subida dura até a estação de esqui italiana de Sestrière. Seria ali, acreditava a maioria, que Lance perderia as forças.

PHIL: Ele detonou todo mundo na estrada: Zülle, Escartin. Ultrapassou todo mundo que já estava atrás dele na classificação geral e foi sozinho até a linha de chegada. Ele poderia ter ido com eles até o final e ainda ter uma bela folga na dianteira, mas detonou tudo o que tinha para cima deles. A cara do Zülle foi impagável: “Onde diabos eu estou? Esse cara é uma máquina”. Foi a mesma coisa com Escartin, um ótimo ciclista em subidas. Lance acabou com ele.

LANCE: Minha natureza sempre foi, e provavelmente ainda é, atacar, ser agressivo e aberto na corrida. Nem sempre é a coisa mais inteligente a se fazer; houve vezes em que paguei o preço por isso. Mas eu sentia que estava tendo um bom dia, e seria uma boa ter uma vantagem para os dias seguintes.

THOM WEISEL (financiador que apoiou a equipe dos Correios e deu a Lance seu primeiro contrato profissional depois do câncer): Eu estava no carro de apoio com Johan, logo atrás do Lance, e a gente estava pirando, histéricos. Lance ficava gritando no ponto eletrônico que usava, “Tá gostando do show?” Foi o melhor momento que já tive em qualquer Tour de France.

PAUL: Depois que alguém domina um contra-relógio daquele jeito e domina uma etapa montanhosa, todo mundo disse, Opa, cometemos um erro.

A equipe

14 de julho

Embora agora Lance tivesse mais de seis minutos de vantagem, o Tour não tinha nem chegado na metade. Com várias etapas de montanha pela frente, seus colegas de equipe teriam que pedalar melhor do que todos acreditavam que poderiam para defender a camiseta amarela até Paris.

GEORGE: Dependia da gente. Assim que os outros viram como Lance estava indo bem, acharam que única chance deles era a nossa equipe ser fraca, por isso tentaram atacar a gente. Ninguém na equipe estava confiante, estávamos recebendo críticas de tudo quanto é lado. Diziam, “É só um bando de americanos, que nunca estiveram aqui antes. Como eles vão proteger a liderança?”

PAUL: Quando não se tem nenhuma responsabilidade para si mesmo, dá para forçar ainda mais. Esses caras pedalaram com mais força do que tinham porque achavam que o cara que estavam defendendo era invencível.

PHIL: [O colega de equipe] Frankie Andreu sempre foi um cara forte; Tyler Hamilton estava bem naqueles dias. Christian Vande Velde não era um grande competidor na época, era jovem demais. Mas George Hincapie daria a vida pelo mestre. Ele é fantástico.

THOM: Kevin Livingston era fundamental. Hamilton era bom em subidas, mas Kevin definitivamente era o cara que podia ficar com Lance nas montanhas.

LANCE: Essa galera toda era formada por ótimos ciclistas, só que ninguém tinha ouvido falar deles ainda. Éramos como a turma do filme “Garotos em Ponto de Bala”, nem tínhamos um ônibus de equipe, só um trailer onde a gente se apertava. E às vezes o melhor jeito de acabar com a pressão é arrotando, peidando e rindo. Tentamos manter tudo leve.



TRABALHO EM EQUIPE: Lance Armstrong lidera a United States Postal Service durante a etapa final do Tour de France 1999, entre Arpajon e Paris
(Foto: Doug Pensinger)

Herói e vilão

15 a 23 de julho

Depois de Sestrière, a imprensa francesa, ainda amarga com os escândalos de doping que estragaram o Tour do ano anterior, começou a sugerir abertamente que o desempenho de Lance era bom demais para ser verdade. Ao mesmo tempo, o público dos Estados Unidos estava aprendendo seu nome.

JIM: Não sei se os franceses entendiam mesmo o que Lance passou com o câncer, a transformação dramática, tanto fisiológica como mental. Acho que os americanos estavam mais abertos para isso. Não consigo pensar em cinco pessoas que conheço na Europa que tenham tido câncer. Eles nunca falam a respeito.

CRAIG NICHOLS (oncologista de Armstrong no Centro Médico da Universidade de Indiana e membro da diretoria da Fundação Lance Armstrong): Comecei a receber um monte de telefonemas, principalmente dos franceses. Acho que, em parte, isso teve a ver com o estigma do câncer. Ver ele voltar daquele jeito parecia paradoxal, e eles ficavam perguntando o que eu tinha feito. De brincadeira, disse que tínhamos colocado mais um pulmão. Não acho que a piada funcionou com a tradução. Só ouvi silêncio do outro lado da linha.

CHRIS CARMICHAEL: A coisa ficou bem feia – muita gente acusando ele de usar drogas, dizendo que o câncer foi uma farsa. Coisa bem doida. E hostil.

PHIL: O cara tinha encarado a morte e não ia voltar para aquilo. Era isso que ele sempre dizia quando eu perguntava se ele estava tomando drogas. “Já estive no meu leito de morte, não vou voltar para lá. A resposta é não, e eles podem falar o que bem entenderem”.

BILL: Lance não sabia o que estava rolando nos Estados Unidos, ele estava fechado na bolha do Tour. Cheguei na França na noite antes do contra-relógio de Futuroscope [na 19ª etapa]. Johan estava focado na corrida, e lá cheguei eu, o agente vindo dos EUA, dizendo, “Ei, assim que isso acabar, precisamos ir para Nova York. A Nike quer fazer alguma coisa, e temos um contrato. Está nos jornais, está na TV. É a maior história de esportes do ano”. E Lance estava tipo, “Tá de brincadeira”. Ele não acreditou em mim.

LANCE: Eu perguntei, “Está no jornal USA Today, por acaso?” E Bill respondeu “Está na primeira página todos os dias”.

O golpe final

24 de julho

Na manhã de 24 de julho, a única coisa entre Lance e a volta da vitória na etapa final cerimonial em Paris era um contra-relógio de 56 quilômetros. Com uma considerável vantagem de 6min15s sobre o segundo lugar, Escartin, ninguém culparia Lance se ele pegasse leve. Mas, mais uma vez, ele detonou o percurso.

BILL: Eu não sou do mundo do ciclismo, por isso nem ligava se ele ganhasse o contra-relógio. Lembro de dizer, “Ei cara, que tal pegar leve? Fique nas duas rodas”. Ele olhou para mim e disse, “Eu vou ganhar essa porra”. “Tá legal, saquei”. Agora eu sei que os contra-relógios são onde os campeões ganham. Você não coloca a marcha em ponto morto; você ganha.

LANCE: O contra-relógio é conhecido como “a corrida da verdade”. Acho que o cara com a camiseta amarela tem obrigação de se mostrar nela.

PHIL: Se você pode fazer isso e ainda está com a camiseta amarela, é fato que você é o melhor ciclista no Tour de France.

A vitória

25 de julho

Na triunfante etapa final, Lance pedalou até o Champs-Élysées sob os aplausos de uma multidão que nunca tinha sido tão pequena. Desse ponto em diante, o ciclismo, o câncer e Lance nunca mais seriam os mesmos.

JIM: devia haver uns 25 amigos e parentes do Lance, no máximo, esperando na chegada, para as premiações e abraços. Nada de guarda-costas, todo mundo abria caminho.

THOM: Alugamos o andar superior do Musée d’Orsay para a festa da vitória. Devia ter uns 200, no máximo.

BART: Estávamos de bobeira depois do jantar, e de repente Lance atende o telefone e sai da sala. Quando volta, ele diz, “Isso foi maneiro. Era o Presidente Clinton”.

LANCE: Foi aí que a ficha caiu para mim, todo aquele lance que o Bill tinha dito.

JIM: Quando voltamos para casa, ele finalmente entendeu porque a gente queria que ele fosse para o Tour de France nas décadas de 1980 e 1990. Aquela corrida cria heróis, e ele agora era um deles.

CRAIG: Cerca de um ano depois do diagnóstico do Lance, quando já estava claro que ele seria curado, conversei com Lance sobre sua obrigação – como alguém que venceu o câncer – de retribuir. Eu tive a mesma conversa com muita gente que dizia que era uma boa ideia, mas acabava não fazendo nada. Mas se Lance assume um compromisso, ele cumpre.

Nos últimos dez anos houve uma notável migração do câncer para a doença em seus estágios iniciais. Ou seja, as pessoas estão procurando o médico mais cedo, o que facilita o tratamento e aumenta a chance de cura. Isso foi chamado de efeito Lance Armstrong.

BILL: Na semana seguinte fomos para Nova York para aparecer no programa de entrevistas do David Letterman e mais um monte de coisas. A Nike até fretou um jatinho. Nunca estivemos num avião particular antes. Lance pegou uma garrafa de vinho tinto e olhou para gente.

LANCE: Eu disse, “Galera, adivinha só em que corrida a gente vai se focar ano que vem”.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2009)







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