Doze segundos


ALADO: Shane McConkey sobrevoa o México de wingsuit. Ao lado, ele em terra firme, na Suíça

Por Tim Sohn
Fotos Nate Abbott

“DETONAMOS A PISTA SASSONGHER HOJE!”, alardeava o título do post de 25 de março no blog de Shane McConkey.

Embora McConkey, 39 anos, fosse mais conhecido como um dos esquiadores mais inovadores nos últimos 20 anos, esta pista em particular o interessava por razões que iam além do esqui. Há mais de uma década ele já era um ávido BASE jumper, e aqui nas montanhas Dolomitas, nos alpes italianos, em uma ladeira de gelo de 45 graus na montanha Sassongher, de 2.625 metros de altura, ele encontrou o local perfeito para juntar suas duas maiores paixões num pitoresco ski-BASE. Ele havia chegado alguns dias antes com o esquiador profissional e colega BASE jumper J.T. Holmes, 29, e uma equipe de filmagem de quatro pessoas da MSP Films (Matchstick Productions). O grupo seguiu para o couloir Val Scura, em Sassongher, para explorar uma paisagem que só poderia deixar animado alguém como McConkey. “A aproximadamente um terço do caminho de descida, tem uma rampa que sobe e vira para a direita, e leve para um belo campo de neve acima de um penhasco de uns 300 metros”, ele escreveu.

McConkey foi na frente, ziguezagueando umas três ou quarto vezes pela neve firme antes de se jogar do penhasco com um flip frontal, despencando em queda-livre por alguns segundos até que abriu seu para-quedas, pousando suavemente no vale coberto de neve. Trinta segundos depois que ele pousou, Holmes, que desceu pelo campo de neve acima, em linha reta, saltou penhasco afora, eventualmente se juntando ao amigo. “Hoje foi um bom dia”, blogou McConkey.

Atraído pelo paraquedismo por um inato amor pelo vôo, McConkey começou a praticar a modalidade em 1995 e fez seu primeiro BASE jump no final de 1996. Ele e um de seus melhores amigos, Miles Daisher, estavam sendo treinados pelo pioneiro do esporte, Frank Gambalie, quando, em 1999, Gambalie se afogou após concluir com sucesso um salto ilegal no El Capitan, no Parque Nacional de Yosemite, e tentar atravessar a nado o agitado Merced River para fugir dos guardas florestais. Após a interrupção da tutelagem, McConkey e Daisher concluíram o aprendizado juntos, preenchendo as lacunas no conhecimento um do outro. McConkey acabou realizando mais de 700 saltos e adorava levar o esporte a novos territórios. Apresentou seu amigo Holmes ao BASE jump em 2002; no inverno do ano seguinte, inspirado pela cena de perseguição com esquis no filme do James Bond, O Espião que Me Amava, que termina com um dublê saltando do penhasco e abrindo seu para-quedas, McConkey e Holmes realizaram seu primeiro ski-BASE juntos em um penhasco de 120 metros em Lover’s Leap, perto de Lake Tahoe, na Califórnia.

Conforme suas ambições no ski-BASE jump progrediam e eles usavam suas novas habilidades para explorar pistas antes inexploráveis – os dois chegaram a fazer ski-BASE no Eiger (uma das montanhas mais lendárias e perigosas da Suíça), em 2004 –, as limitações que os esquis impunham aos saltos começavam a incomodá-los. “Chegamos a um platô com nossas manobras e nossa habilidade na queda-livre com os esquis”, conta Holmes, “e alcançamos um ponto onde a gente disse: ‘Vamos saltar de esquis, dar uns flips, mas então a gente faz o quê?”.

É aí que entra o wingsuit, um macacão com abas debaixo dos braços e entre as pernas. No ar, a roupa inteira se infla, transformando o saltador em uma asa-delta humana. Em fevereiro de 2007, de um penhasco de mil metros de altura na Noruega, McConkey e Holmes realizaram com sucesso três saltos de ski-BASE com wingsuits, nos quais esquiavam penhasco afora, soltavam seus esquis e voavam por cerca de 40 segundos antes de abrirem seus para-quedas. Foi a primeira vez que algo assim foi sequer tentado. Convencidos que estavam no caminho certo, voltaram para a Noruega no mesmo verão, junto com Daisher e uma equipe de filmagem da MSP, para aprimorar suas habilidades de voo. “O wingsuit é o mais perto que se pode chegar do voo humano não-motorizado”, explicou McConkey no programa que a MSP montou, o Focused.

Um ano depois, McConkey foi para a Itália para fazer BASE jump nas Dolomitas, e achou que seus picos e pináculos serrados eram o lugar perfeito para dar prosseguimento à evolução do ski-BASE. Em janeiro, mandou um e-mail para a MSP e para um de seus principais patrocinadores, a Red Bull. “Já faz algum tempo que tenho algumas metas pessoais e gostaria de conquistá-las”, escreveu, propondo uma viagem em março e incluindo um roteiro detalhado, fotos dos penhascos em que estava de olho e um resumo de suas metas. A primeira delas era fazer ski-BASE a partir de uma linha clássica que eles tinham esquiado no Sassongher. A segunda era fazer mais saltos de ski-BASE com wingsuits. E a terceira e mais audaciosa de todas era tentar um ski-BASE em dois estágios, no qual ele e Holmes saltariam de ski-BASE de um penhasco, pousariam com seus esquis, e daí esquiariam até um segundo penhasco, usando um segundo para-quedas para chegar ao solo. “O salto de dois estágios era o próximo passo, e Shane vivia para dar sempre esse próximo passo”, lembra Steve Winter, um dos fundadores da MSP e o chefe da equipe de filmagem na Itália. “Ele sempre pensava no futuro”.

Depois de alguns dias de exploração, a realização do salto em Sassongher, e um dia de folga por causa do mal tempo, Holmes, McConkey e seu guia local subiram no bonde de Sass Pordoi na manhã de 26 de março. Passaram uma hora e meia estudando um penhasco que achavam que mais tarde serviria para uma tentativa de um salto em dois estágios. Às 11h30, tomaram café no topo da linha do bonde e decidiram tentar um ski-BASE com wingsuit de um local em Sass Pordoi de onde McConkey tinha saltado no ano anterior e que ele e Winter tinham examinado de helicóptero alguns dias antes.

Da última parada do bonde, esquiaram por parte do caminho até uma passagem estreita entre dois penhascos antes de atravessar por um campo de neve íngreme ladeado por paredões rochosos acima e abaixo. Depois de colocarem os esquis nas costas, vestirem crampons e pegarem piquetes de gelo para a travessia, chegaram ao penhasco escolhido cerca de 13h30, onde encararam o amplo vale 500 metros abaixo.

DEZ DIAS DEPOIS, era uma tarde ensolarada de inverno na estação de esqui em Squaw Valley, na Califórnia. Cerca de 1200 pessoas estavam reunidas em um deck, aos pés do teleférico KT-22, para o velório de Shane McConkey. Ele morava em Squaw desde 1993 e a multidão reunida era composta por um diverso grupo de admiradores e amigos, antigos amantes de esqui assim como jovens, moradores locais e forasteiros, crianças e cachorros, pessoas com corte de cabelo mohawk e carecas, engravatados e gente de camiseta.

Os moradores locais ficaram ombro a ombro com astros dos esportes radicais como Chris Davenport e Tony Hawk, o que fez do memorial uma trágica reunião dos melhores esquiadores livres, BASE jumpers e montanhistas do mundo. McConkey era um líder e um moldador do ecossistema dos esportes de ação – patrocinadores (Red Bull, Oakley), empresas cinematográficas (MSP, Teton Gravity Research) e competições (X Games) –, que permite que atletas como ele ganhem a vida “deslizando pela neve e voando pelo ar”, como ele disse certa vez.

Miles Daisher, agora com 40, que continuou sendo um dos mais frequentes parceiros de salto de McConkey e colega na “Red Bull Air Force”, subiu ao púlpito em frente ao público, alternando entre o tempo passado e o presente enquanto falava de seu amigo. A esposa de McConkey, Sherry, com quem ele se casou em 2004, ficou sentada na fila da frente enquanto a filha de três anos dos dois, Ayla, dançava perto do púlpito. Daisher contou uma conversa que ele e McConkey tiveram algumas semanas antes. McConkey tinha acabado de atualizar seu testamento, e insistiu que Daisher fizesse o mesmo. “Ele disse: ‘Se eu morrer quero que todo mundo fique feliz, celebre a vida, não só a minha, mas a deles’”, lembrou Daisher. “E continuou: ‘e rir e curtir a vida ao máximo, e fazer o que gostam’. E eu só falava é, é, é”.

Desde jovem, McConkey mostrou sinais de gostar de aventuras. Passou seus primeiros anos na região de esqui de Whistler, na Colúmbia Britânica (Canadá), filho de um casal de esquiadores. Sua mãe, Glenn, ganhou vários títulos na categoria Master, e seu pai, Jim, era o diretor da escola de esqui de Whistler e estrelou alguns filmes de esqui profissional nos anos 1960. Acomodado em uma mochila enquanto sua mãe esquiava, McConkey, aos três anos de idade, chacoalhava as barras de suporte da mochila enquanto dizia à sua mãe o que queria: “Salto, mamãe, salto.” Quando começou a esquiar sozinho, Glenn lembrou no velório, ele olhava para trás como se achasse que ela estava indo devagar demais e perguntava, “Mãe, qual é o problema?”.

Seus pais se separaram, e McConkey e sua mãe se mudaram para a Califórnia quando ele tinha três anos de idade. A partir dos 8 até quando foi cursar o ensino médio na Academia de Montanha Burke, de Vermont, ele ia para a cidade de Squaw nos fins de semana e sonhava com o Campeonato Mundial. Com o tempo, chegou ao programa adolescente da equipe de esqui dos EUA antes de ser cortado por ser baixo demais. “Shane se tornou o que era em parte porque foi rejeitado por seu sonho, e teve que criar outro sonho para si mesmo”, disse Glenn no velório.

Depois de desistir das competições e sair da Universidade de Colorado aos 20 anos, McConkey foi entregador de pizzas e chegou até alguns eventos da Pro Mogul Tour. Sua carreira na Mogul não durou muito tempo: ele foi desclassificado por dar um backflip em um evento em Vail, e quando refez o percurso nu – a foto de seu “spread eagle” pelado se tornou um clássico na hora – acabou banido do resort para sempre.

Quando se mudou para Squaw, aos 24, era a época dos esquis estreitos, quando os esquiadores se concentravam em curvas rápidas e um estilo técnico, seco. Então chegou McConkey, dando backflips em penhascos, fazendo curvas enormes e rápidas, e deixando a criatividade correr solta na montanha. “A primeira vez que o vi esquiando, meu queixo caiu”, lembra Scott Gaffney, um cineasta de esqui e amigo de Shane em Squaw.

Gaffney, que logo estava trabalhando para a MSP, citou a participação de McConkey no The Tribe, em 1995, como o momento da virada. “Ele fez um salto duplo reverso de um penhasco, um enorme “spread-eagle” peladão, meio como se dissesse, ‘Eu sou Shane McConkey, e estou aqui para divertir vocês’”. Foi sua performance na nova leva de filmes de esqui (ele estrelou duas dúzias deles) que o colocaram no mapa, cativando o público com suas façanhas e um senso de humor muitas vezes imaturo, baseado em cair de bunda, nudez, peidos e pegadinhas. Tudo isso se juntou na criação, em 1997, de seu alterego nas telas, o Saucer Boy, uma gozação à bitolada indústria do esqui, sempre vestido em neon, bebedor de uísque e que esquiava num disco.

Mas por trás da fachada de brincalhão havia uma ambição bem séria, uma mente enérgica constantemente pensando em inovações. A partir de meados dos anos 1990, onde quer que estivesse a vanguarda do esqui, lá estava McConkey. Depois de ganhar algumas competições de esqui-livre e esqui extremo, ele viu que a modalidade precisava de organização e ajudou a fundar a Associação Internacional dos Esquiadores Livres, em 1996. No início da década de 2000, ele efetivamente reinventou o esqui de grandes montanhas ao criar os esquis para powder, com arqueamento e sidecuts invertidos.

O arqueamento invertido cria um esqui côncavo em vez de convexo, enquanto o sidecut invertido coloca a parte mais rápida do esqui sob os pés, em vez de nas pontas e na parte de trás. O efeito combinado mantém o esquiador flutuando sobre a neve powder em vez de cortando através dela, permitindo que gente como McConkey esquiasse em pistas de esqui de montanhas grandes com mais velocidade e agressividade. Seu patrocinador na época, a Volant, lançou o conceito em 2002, depois de muito lobby por parte de McConkey, com o Spatula, um esqui que foi desprezado no começo por algumas pessoas na indústria por se parecer com um esqui aquático. Quando tornou-se patrocinado da K2, em 2004, “ele levou um par de Spatulas na primeira reunião e nos contou o que eram e porque precisávamos prestar atenção nessa nova tecnologia”, recorda-se Mike Gutt, que era o manager da equipe da K2 na época. Um ano depois, a K2 já tinha seu primeiro protótipo, e, em 2006, o Pontoons da K2 chegou ao mercado. Agora quase todo fabricante de esquis tem um modelo similar em seu catálogo.

“Não acho que seja melodramático chamar o cara de visionário”, opina Gaffney. “Ele via coisas que os outros não viam, sabia como torná-las realidade e queria ser o primeiro a tentar”. A inovação é recompensada em qualquer área, por isso os melhores praticantes estão na dianteira, penetrando no desconhecido. Mas, no mundo de McConkey, os riscos são muito maiores: um erro poderia matá-lo.


PREPARATIVOS: Shane organiza os equipamentos

COMO SEMPRE FAZIAM antes de saltar, McConkey e Holmes passaram por um elaborado processo de preparação. Depois de largarem suas wingsuits no alto da encosta do Sass Pordoi, foram esquiando até a beirada do penhasco. McConkey pegou uma corda e desceu de rapel para checar se não havia qualquer obstáculo no ponto de salto. Um salto livre era essencial, porque começar um voo com uma wingsuit precisa de mais equilíbrio que de um ski-BASE jump normal. Depois, jogaram pedras do alto e contaram os segundos até elas atingirem o solo, de 10 a 12, neste caso, indicando uma queda em linha reta de mais de 300 metros. Planejaram como escapar de uma saliência rochosa no paredão e procuraram por áreas sem rochas ou árvores para aterrissarem. Parecia tudo certo. “A única coisa que não era perfeita era o ponto do salto inicial, mas nós consertamos isso”, conta Holmes.

Os dois juntaram neve na beirada do penhasco para criar uma plataforma de salto. A neve, que parecia açúcar, deixou essa tarefa bem difícil, mas por volta das 15h30, estava tudo quase pronto. Winter, que estava na base do helicóptero esperando o sinal verde de McConkey e Holmes, recebeu um SMS de McConkey logo antes das 16h: “Temos um salto pronto em um penhasco fácil e enorme. Estamos animados, o tempo parece bom. Avisamos quando for a hora”.

Preparar o equipamento era um processo complicado. Primeiro, coloca-se as roupas de esqui, depois os wingsuits, depois as botas. Era, nas palavras de Holmes, “como se preparar para dois ou três esportes ao mesmo tempo”. Meticulosos como sempre, fizeram um “ensaio de figurino completo”, checando a lista de segurança, que incluía examinar as presilhas do parceiro e as suas próprias várias vezes, prendendo-as e soltando-as para ter certeza que estão funcionando direito. Dois dias antes, em Sassongher, McConkey relatou em seu blog que Holmes “quebrou a peça do dedão de suas presilhas velhas e quase caiu para a morte no couloir de gelo lá embaixo”.

Eles estavam usando presilhas Tyrolia 480 dos anos 1980, produtos de segunda mão obtidos em feiras de troca e na internet, como parte de um sistema criado pela necessidade: não dá para voar de wingsuit com os esquis nos pés, por isso tiveram que bolar um jeito simples de soltá-los em pleno voo. A solução que criaram fazia uso de uma característica singular do Tyrolia 480: a presilha do calcanhar é aberta puxando para cima em vez de empurrando para baixo, como na maioria das presilhas. Graças a isso podiam prender correias com alças nelas, depois prendiam as alças na cintura com velcro, podendo assim puxar e arrancar seus esquis no meio do ar sem perder a posição de voo com a barriga para baixo.

Usando uma jaqueta de neve amarelo-clara, calças de esqui largas marrons, seu capacete da Red Bull e óculos de sol com armação envolvente, McConkey estava com seus esquis e pisava em neve solta. Conforme explicou para Winter em uma mensagem por volta das 17h: “Cometemos um erro na nossa plataforma de salto, tivemos que fazer outra. Tudo pronto e pondo o equipamento. A luz está boa, o vento está calmo, aguarde”.

“Estávamos na pilha por causa do penhasco”, recorda Holmes. “Falamos várias vezes: ‘é, isso vai funcionar muito bem’”. Quando Holmes e McConkey estavam satisfeitos com seu ponto de salto e seu equipamento, chamaram Winter e a equipe da MSP para avisar que estavam prontos. “Divirta-se, mano!”, disse Winter para McConkey. Foi a última conversa que tiveram.

HÁ MUITO TEMPO ROLA UMA DISCUSSÃO sobre a culpa dos patrocinadores, cineastas e revistas por forçar os atletas a irem atrás da próxima novidade, assumindo riscos cada vez maiores para continuarem no centro das atenções. O próprio McConkey ajudou a abrir o caminho para o patrocínio, e para o sustento, de atletas radicais extremistas como ele.

Mike Jaquet, colega de dormitório de McConkey na faculdade, criou a revista Freeze, em 1996, para divulgar o mundo do esqui livre que as publicações tradicionais estavam ignorando. “Quando eu cuidava da Freeze, a parte mais dura do meu trabalho era ir a algumas dessas competições e sessões de foto. O desejo de impulsionar esses esportes pode trazer consequências horríveis de tempos em tempos. Já saí desse ramo faz quatro anos, e isso ainda meio que revira meu estômago”, comenta.

Mas embora McConkey fosse bom para entreter a galera e adorasse estar diante de uma plateia, essa dinâmica de patrocínio simplesmente não existia quando ele estava começando. Na faculdade, em Boulder, no Colorado, bem antes de sua carreira como esportista de ação ser concebida, ele já assistia as cenas de ação dos filmes de Bond repetidamente e passava seus fins de semana esquiando para saltar de penhascos cada vez mais altos (chegou aos 30 metros) e apreendendo sozinho como voar de paraglider.

“Eu entendo ambos os lados dessa discussão”, explica Jaquet. “E normalmente fico do lado da cautela. Mas, nesse caso, com esse cara em particular, eu o conhecia quando ele tinha 19 anos, e já estava se arriscando para explorar os limites do esporte naquela época, dez anos antes de se tornar um esquiador livre profissional. Não tem como encaixá-lo nessa discussão típica sobre se o cara deveria estar fazendo isso ou não”.

Era mais comum que McConkey acabasse precisando convencer seus patrocinadores em vez do contrário. “Não vamos deixar ninguém nos forçar a fazer alguma coisa idiota que acabe causando nossa morte”, decreta Daisher. “Tudo que fizemos foi ideia nossa”.

Como Gutt da K2 explica: “No começo não queríamos ter nada a ver com BASE jump”. Mas, depois de dois anos de “encheção de saco” por parte de McConkey, compraram para ele um para-quedas com o logotipo da K2. “Todo mundo tinha suas reservas”, conta Gutt. “Mas elas foram evoluindo aos poucos para ‘OK, esse é o nosso atleta’”.

Nos dias que seguiram à morte de McConkey, conforme tributos espontâneos foram surgindo em locais relacionados com a neve e a internet se encheu com milhares de comentários de admiradores e amigos, os críticos e parte da cobertura da imprensa se focou em outro fato: que esse cara de 39 anos com uma esposa e filha de três anos estivesse sequer tentando tal proeza. “Membros da comunidade dos viciados em adrenalina deveriam se fazer duas perguntas”, sugeriu o escritor Austin Murphy no website da Sports Illustrated: “Quanto eu amo minha esposa e filhos? Por quanto tempo posso continuar imbatível?”

Outras matérias referiram-se a McConkey como um egoísta “daredevil” (um “desafiador do perigo”) que passava seus dias “jogando dados com a morte”. Enquanto quem o apoiava rebatesse com uma frase muito ouvida nas comunidades do alpinismo e outras atividades de alto risco – que ele morreu fazendo aquilo que amava – na seção de comentários de um artigo no site da ESPN, as pessoas culpavam os patrocinadores de McConkey, chamando-o de um pai e marido irresponsável, e disseram que ele causou sua própria desgraça.

Para quem conhecia McConkey, isso foi um enfurecedor caso de gente de fora se metendo a julgar algo que não entendiam e talvez nem tivessem como entender. “É tão frustrante para mim esses comentários que ele era um amante do perigo que deixou sua família sozinha e esse tipo de coisa”, desabafa sua esposa, Sherry, que conheceu Shane em um passeio de mountain-bike em Tahoe, em 1998. Quando se casaram na Tailândia, em 2004, a lua de mel de três semanas incluiu BASE jump, mergulho, escalada e corridas sem roupa. “Ele não tinha uma tendência suicida, não era um daredevil, não era burro”, rebate ela. “Sempre que fazia alguma coisa, calculava tudo além de onde se pode imaginar. Ele era muito preciso”.

O foco e a precisão de McConkey só cresceram conforme ele envelhecia – suas proezas mais recentes podem ser consideradas bem mais seguras que as mal-pensadas que ele realizou quando estava na casa dos 20 –, e ele amadureceu para se tornar um profissional e um homem de família, um marido e pai. Quando achava que algo não era seguro, saía andando ou esquiando, e já estava contemplando a próxima fase de sua carreira, com a intenção de se voltar mais para o design de esquis e seus investimentos imobiliários. Ele ficava ausente um bom tempo, mas, explica Sherry, “quando estava em casa, estava em casa, e era um pai maravilhoso para Ayla. Não consigo entender como as pessoas podem achar que eu ia falar para ele parar de fazer algo que ele amava tanto. Seria como colocar uma águia em uma gaiola”.


TERRA FIRME: Após um base jump, Shane aterrisa em Twin Falls, Idago (EUA)

LOGO ANTES DAS 17H30 DE 26 DE MARÇO, as preparações finalmente estavam completas em Sass Pordoi. Holmes saltou primeiro. Ele executou um backflip duplo, puxou as cordas para liberar os esquis e voou com seu wingsuit por cerca de 18 segundos antes de abrir o seu para-quedas, que se abriu mais baixo do que Holmes esperava (provavelmente a menos de 100 metros do chão), mas o pouso ocorreu sem problemas, em um campo de neve com algumas arvorezinhas por perto. “Me lembro de pensar que parte da razão para o penhasco parecer mais alto era o fato das árvores serem tão pequenas”, lembra-se Holmes. Ele recuperou seu fôlego e tirou seu capacete. Pensando que McConkey ainda iria saltar, ele apontou a câmera de seu capacete para o penhasco, animado com possibilidade de captar uma bela imagem do seu amigo.

Mas McConkey já tinha saltado, esquiando até o ponto de salto e se lançando sem problemas em um backflip duplo. Quando ele puxou as alças para soltar os esquis, a da direita funcionou, mas a da esquerda, não. Para piorar ainda mais as coisas, o esqui que se soltou ficou preso no esqui ainda em seu pé. “Sabíamos que alguma coisa estava errada”, conta Winter, que viu tudo do helicóptero. “Eu e o piloto éramos os únicos que podíamos realmente ver o que estava acontecendo”.

McConkey tentou alcançar a presilha do calcanhar esquerdo com a mão esquerda, mas isso fez ele se virar no ar, o que queria dizer, segundo Holmes que “ele não estava de olho no chão”. E também que ele não tinha como abrir seu para-quedas em segurança sem que seus esquis ficassem quase com certeza presos ao para-quedas. Mas ele nem sequer tentou abri-lo, talvez porque acreditasse que conseguiria consertar o problema em tempo para corrigir sua posição. Seus movimentos pareciam deliberados: conseguiu soltar o esqui, virou-se e assumiu uma posição de voo estável.

“Ele se virou para voar para longe e tudo parecia bem”, detalha Holmes, que assistiu ao vídeo mais tarde. Se ele tivesse mais uns cem metros, teria aberto seu para-quedas e estaria bem. Mas, infelizmente, ele não tinha altitude suficiente e o chão o atingiu na hora”. McConkey morreu instantaneamente.

Winter e o piloto desceram para procurar McConkey. Encontraram Holmes primeiros e, confundindo-o com Shane, ficaram chocados ao vê-lo de pé. Continuaram voando para procurar McConkey e o encontraram. Minutos depois, o helicóptero de resgate que chamaram chegou ao local e uma equipe italiana assumiu o comando da operação. “Não tinha nada o que a gente pudesse fazer”, lamenta Winter.

Rumores sobre a morte de McConkey se espalharam imediatamente e foram finalmente confirmados em uma declaração oficial de Scott Gaffney, da MSP. “Foi o pior telefonema da minha vida”, diz Gaffney, e sua reação ecoou o que muitos dos amigos de McConkey sentiram: primeiro, descrença, pois embora todos soubessem dos riscos, as regras normais não pareciam se aplicar a McConkey; e, depois disso, um vazio. “Não parecia real”.

Daisher recebeu a notícia no México, onde se preparava para fazer um skydive em uma Praça de Touros de touradas. Sua esposa ligou e pediu que ele se sentasse. “Foi como se eu tivesse levado um chute na alma”, ele me disse.

“Quando algo assim acontece, rola um monte de ‘e se’”, opina Holmes. “Você fica pensando nisso o dia todo. É como se fosse um veneno”. Holmes acha que talvez tenham julgado mal a altura do penhasco. Talvez McConkey tenha achado que tinha mais alguns segundos, mas sem olhar no chão não tinha como saber a que altura estava. Ele também, segundo Holmes, deveria saber que quase não tinha chances de conseguir liberar seu para-quedas com os esquis no caminho e seu corpo invertido. No final das contas, Holmes, que está de posse dos equipamentos e planos de McConkey para fazer uma avaliação, completa: “tudo se resumiu ao fato que aqueles esquis não se soltaram quando deveriam”.

AO LONGO DE TODO O FIM DE SEMANA do velório, as centenas de amigos que vieram a Squaw encontraram uma distração para sua tristeza na montanha e em bares. Eles esquiaram, beberam e lembraram os velhos tempos. Bandos de esquiadores profissionais detonaram as neves de primavera. Um grupo fez spread-eagles pelados em uma das pistas favoritas de McConkey, e as passagens do teleférico vieram com um simples tributo impresso: “Obrigado Shane”.

Na noite anterior ao velório, Saisher ficou assistindo aos melhores momentos de uma recente viagem de BASE jump que ele e McConkey fizeram para a Nova Zelândia. Ele vinha tentando seguir o conselho de seu amigo para celebrar sua vida, mas quando tirou os óculos, seus olhos estavam vermelhos e inchados e, conforme assistia ao vídeo, alternava momentos em que ria e mordia os lábios. “Meu plano é estar sentado em uma cadeira de balanço na varanda de casa, aos 80 anos, contando para meus netos o que o vovô deles costumava fazer e colocando um DVD para mostrar para eles”, disse Daisher, que tem três filhos. “Vou continuar sendo cuidadoso como sempre, mas se vou mudar alguma coisa é que vou fazer mais saltos e celebrar a vida dele e a minha”. No dia depois do velório, Daisher esteve entre os 23 amigos de McCOnkey que fizeram um BASE jump de homenagem em um local não divulgado.

O fim de semana teve sua cota de risos, e conforme os amigos contavam histórias, o notório senso de humor de McConkey ajudou a aliviar o golpe. Sua última pegadinha, que Holmes contou no final de seu discurso, acabou dando resultados depois do acidente. Ao tentar voltar da Itália, Holmes descobriu que tinha sido roubado, pois os US$ 650 em sua carteira haviam sumido. “Estava passando os meus equipamentos e os de Shane pela alfândega quando me ocorreu onde meu dinheiro devia estar”, ele disse, fazendo referência a uma das piadas favoritas de McConkey: roubar o dinheiro da carteira de um amigo e esperar até ele tentar pagar alguma coisa para então morrer de rir. “Abri a mochila do Shane e chequei sua carteira e, para surpresa nenhuma, ali estava todo o meu dinheiro. Comecei a rir alto. Essa foi boa, Shane. E esse lance de morrer no meio realmente deixou a piada ainda mais engraçada. Você me pegou direitinho uma última vez. Vou sentir saudades, brother”.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de outubro de 2009)







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