Chá poderoso


GENTE QUE FAZ: Dan Martin toma um chazinho energético

Por Felipe Mortara

SE A MÁXIMA “O SER HUMANO É FRUTO DO MEIO” ESTIVESSE CORRETA, os britânicos seriam cinzas, monótonos e isolados do mundo, já que estão plantados numa ilha onde o tempo é tipicamente feio, as paisagens são melancólicas e a comida é ruim. Mas alguma coisa acontece naquela terra que acaba atraindo olhares, no mínimo curiosos, para além do ônibus de dois andares, do Big Ben, do peixe com batatas e do vagaroso Tamisa.

Turbinada por sua Revolução Industrial, a Inglaterra foi a maior potência do século 19, conhecida como “o império onde o sol nunca se põe”, porque seus territórios eram tão extensos que, em algum ponto, o sol estava sempre brilhando. Suas conquistas foram tão vastas que ultrapassaram a Europa e se estenderam pelo Oriente, África e Caribe. Nesta saga exploratória, o processo de assimilação cultural dos povos conquistados foi uma evolução natural. Os ingleses aprenderam a tomar chá na Índia e, em troca, lhe deram a mão inglesa na direção dos automóveis, por exemplo. Carlos Alberto Zeron, professor de História Moderna e da América Colonial da Universidade de São Paulo (USP), afirma que o caráter explorador do povo britânico é um fator importante na construção da ideia de que eles são mais atirados. “As explicações não devem ser buscadas no sangue, no clima ou na geografia. Eles tinham uma prática de navegação, além de um estado apoiador e de uma indústria sofisticada para a época”.

Feitos como os do cientista Charles Darwin (ver box), dos navegadores James Cook, Robert Scott e Ernest Shackleton, e do médico e explorador Dr. David Livingstone foram tão extraordinários que ganharam ares de lenda. Além do Estado e da indústria, eles tinham outro aspecto em comum: a organização. Cada expedição ultramarina era planejada em termos de resultados, ou seja, agregar mais terras, conhecimento (e mais poder, claro) à Coroa. Esta característica prevaleceu ao longo dos séculos e é hoje quase um clichê no que se refere a este povo.

Em suas últimas férias, o paulistano Daniel Gasparetti, consultor de tendências em comportamento, esteve no Tibete com um grupo de britânicos por três semanas e chegou à seguinte conclusão: inglês não tem frescura. “Muita gente pensa: ‘ah, seria legal subir o Himalaia de bike’, mas um inglês planeja, vai lá e faz. São racionais, mas têm sucesso ao juntar organização com objetividade”, resume.

Ao que tudo indica, a ilha é sim pródiga em produzir gente que busca a felicidade além do Canal da Mancha. É o caso de Dan Martin, que aos 29 anos pretende partir para uma inédita travessia ao redor do mundo. Global Triathlon é o nome do projeto que pretende sair no dia 8 de maio de 2011 para dar a volta ao mundo nadando, pedalando e correndo. A primeira etapa é simplesinha: cruzar o Atlântico a nado. E, pasmem, sem nadadeira ou roupa de neoprene! Além de pedalar da França até o extremo da Ásia, Dan ainda vai atravessar da Sibéria ao Alasca nadando do jeito que der, e correr de lá até Nova York. Istvan de Abreu Dobránszky, professor de Psicologia do Esporte da PUC de Campinas afirma que a mente precisa de muito treino para aguentar. “Não se pode realizar um objetivo deste sem uma intensa preparação psicológica. O treinamento tem que se focar nos prováveis e imprevisíveis problemas que devem surgir”, resume. Alguém aí se habilita a atravessar mares gelados só de sunga?

Tudo começou em agosto de 2005, quando após uma conversa de bêbado em um pub na região de Cambridge, Dan decidiu sair de Londres pedalando até a Cidade do Cabo, na África do Sul. Retornou para casa quase um ano depois, cansado da bike e da rotina nômade. Mas não aguentou muito tempo e, em 2007, voou para a Coréia do Sul, onde foi ensinar inglês voluntariamente e, como bom inglês, assimilar a cultura estrangeira. Entediado com a temporada no Oriente, resolveu pedalar mais uma vez até a Cidade do Cabo. “Infelizmente eu abri a ‘Caixa de Pandora’ e agora é difícil voltar para uma vida normal. Eu tenho uma chama dentro de mim que me deixa faminto para conhecer meus limites”, conta com certo romantismo.


GENTE QUE FAZ: Dan Martin pedala até a África do Sul

OS DESAFIOS IMPROVÁVEIS SÃO UMA CONSTANTE NESTE UNIVERSO DE DESBRAVADORES, mas ao contrário de Dan, que luta basicamente contra ele mesmo, outros atirados partem numa desenfreada briga contra o relógio e rumo ao Guinness Book. Uma volta ao mundo literal cruzaria mares e rios, mas os editores do tão cobiçado livrinho – em um espasmo de bom senso – consideram que alguém que percorrer 28.970 quilômetros completou um giro de 360º no planeta. Dos últimos cinco recordistas mundiais neste trajeto, quatro são súditos da Rainha Elizabeth. E a disputa pelo recorde continua.

Prova disso é que enquanto essa reportagem era produzida, dois britânicos suavam o shortinho e pedalavam mais de 150 quilômetros por dia, em média. O veterano Alan Bates ignorou seus 45 anos e saiu da Tailândia pedalando, no último dia 31 de março, como um moleque, pelos quatro cantos. E vai tentar completar o percurso em cem dias, quebrando o último recorde – de 165 dias –, do conterrâneo Julian Sayarer, em dezembro de 2009. No começo de junho, Bates passou pelo Brasil e saía de Porto Alegre rumo ao Recife quando conversou com a Go Outside. “Está sendo uma experiência muito maior do que um recorde. Pude me conhecer de verdade durante essa viagem”, desabafou.

Vale ressaltar que, ao longo do trajeto, Alan, que é patrocinado por uma cervejaria tailandesa, conta com uma equipe de apoio de três pessoas, que levam equipamentos e comida em carro, deixando-o livre para só pedalar. Numa empreitada um pouco mais rústica, Vin Cox, 34, nativo do País de Gales, procura bater o recorde praticamente sem infra-estrutura nenhuma. Ao estilo dos velhos conquistadores ingleses, ele vai “na fé e na coragem”. “A princípio estarei sozinho, carregando minha bagagem, acampando quase sempre e contanto apenas comigo e com a gentileza de estranhos para resolver qualquer problema”, diz ele.

Por sinal, problema foi o que não faltou numa das aventuras inglesas em terras tupiniquins. Pelo menos na expedição do Coronel Percy Fawcett, oficial britânico que em 1925 se embrenhou na selva brasileira com seu filho e um amigo, atrás de uma mítica cidade perdida, e nunca mais voltou. Diversas expedições partiram rumo ao Xingu em busca do paradeiro da equipe e algumas também não retornaram. Desde então diversos livros foram escritos, dentre eles O Engima do Coronel Fawcett: o verdadeiro Indiana Jones, de Hermes Leal, e Z – A Cidade Perdida, de David Grann. Este último deve sacramentar de vez a conexão entre Brasil e Inglaterra já que o astro Brad Pitt comprou os direitos e será protagonista de um filme que ele mesmo está pré-produzindo sobre a obra.


MOLEQUE: Alan Bates, 45, pedala ao redor do mundo

INTERCÂMBIO DE ADRENALINA

A Brazilian Adventure Society (BAS) surgiu em 2008, inspirada pela Royal Geographic Society, organização britânica que desde 1830 promove e incentiva empreitadas além-mar atrás de conhecimento e emoção. A ideia nasceu da parceria entre o empresário paulista Sergio Franco e o escocês Eric Henderson. Os dois uniram forças ao perceber que poderiam ajudar mais gente a descobrir esse estilo de vida. Aliar a organização e metodologia dos britânicos ao jogo de cintura para adversidade dos brasileiros é um dos segredos da BAS para incentivar cada vez mais iniciativas brasileiras ao ar livre. “A sociedade britânica olha aventuras e aventureiros com outros olhos. Eles planejam e estudam tanto que algumas vezes chegam sabendo mais que os próprios guias locais. O Brasil ainda tem uma cultura do improviso e é novo nesse negócio”, conta Sergio. Já Eric, que mora por aqui há oito anos, acredita que haja alguma semelhança entre os dois povos. “Percebi que britânicos e brasileiros sabem rir de sim mesmo. Bom humor é fundamental para executar qualquer plano. Além disso, o Brasil tem muitas áreas inexploradas e um forte espírito empreendedor”, opina com sotaque carregado.


TEORIA DA EVOLUÇÃO DA AVENTURA

O inglês Charles Robert Darwin estudou medicina e teologia, mas não foi dentro de uma sala de aula que começou a nascer sua principal obra, A Origem das Espécies (1859), livro que mudou a maneira de se fazer ciência no mundo. Foi após uma das maiores viagens de exploração de todos os tempos, depois de quase cinco anos a bordo do barco Beagle, bem longe do conforto das universidade, que a teoria da evolução a partir de um ancestral comum por meio de seleção natural tomou corpo. Na expedição, que partiu de Plymouth, Inglaterra, em 1831, Darwin deu uma volta ao mundo fazendo estudos, desenhos e lendo farta literatura a fim de elaborar um trabalho que sintetizasse suas observações. Passou um bom período no Brasil e conheceu bem o arquipélago dos Abrolhos, na Bahia, e também fez um grande levantamento hidrográfico de nossa costa. Mas, sem dúvidas, o ponto mais marcante e crucial da viagem foi a visita às ilhas Galápagos, lugar que Darwin revelou ao mundo como o maior laboratório de biologia a céu aberto conhecido até hoje.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2010)







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