Amadores sem fronteiras


TRIPULAÇÃO A BORDO: Balsa une Porto Príncipe a La Gonâve

Por Erick Hansen

É COMEÇO DE FEVEREIRO, e estou sentado em casa fazendo o que muita gente do mundo todo está fazendo: se sentido muito mal pelas pessoas no Haiti, e expressando esse sentimento por pequenos, mas instantâneos gestos de doação de dinheiro. No meu caso, US$ 5 através de mensagens de SMS. É claro que quero fazer mais que isso, mas também reconheço um fato que surge sempre que há um grande desastre natural em algum lugar: não tenho qualquer habilidade especial – resgate, medicina, logística – que seja realmente necessária em uma situação como essa. Embora saiba como consertar um esqui, em uma zona de impacto sou na verdade bem inútil.

Mas, uma certa manhã, quando estava fuçando pela internet, uma história no site da revista Cruising World me instigou. Uma ONG chamada OceansWatch North America estava organizando uma frota de veleiros para levar suprimentos ao Haiti, e precisavam de voluntários para a tripulação. Isso eu posso fazer. Já viajei pelos mares um pouco. Por isso, telefonei para o CEO, um ex-instrutor de meditação e DJ de 60 anos chamado Sequoia Sun. Entro em contato com ele por meio de um amigo do cara (um capitão do Greenpeace) e coloco meu nome na lista. Dois dias depois, quando um outro voluntário desiste, Sequoia me coloca no lugar dele, e eu vou todo feliz para o topo da fila de espera.

Embora eu tenha algumas perguntinhas (Sequoia Sun? DJ em Aspen?), adorei a ideia. Esqueça o símbolo da Cruz Vermelha e os barrigudos aviões de carga militares. Em vez disso, encha um veleiro emprestado com doações, junte umas pessoas capazes e veleje rumo ao sul para entregar a ajuda. Essa abordagem direta e aventureira parece uma tremenda mudança de paradigma. E é mesmo. Mas às vezes essas coisas acabam virando uma enorme confusão, e haverá momentos em que vou me perguntar se eu – ou o mundo – não estaria melhor se tivéssemos ficado em casa e preenchido um cheque.

UMA SEMANA DEPOIS DO TELEFONEMA e um mês depois do terremoto, me encontro sentado em uma mesa de piquenique de plástico no jardim de um bangalô no centro de Key West, na Flórida. Nós, os velejadores com causa, nos reunimos pela primeira vez para acertar os últimos detalhes de nossa missão.

Faremos a viagem em um robusto veleiro Westsail de 43 pés chamado Hiatus, cujos serviços foram doados por seu dono, o Capitão Dan Wever, de 58 anos, que está sentado atrás de mim sob a sombra de palmeiras. Capitão Dan soa como um oficial militar, o que ele já foi, na Força Aérea. De frente para ele está Sequoia, que parecia anormalmente tímido para um homem encorpado de 1,90 metro de altura. Os dois entraram em contato depois que Dan viu a mesma reportagem que eu, mas se encontraram pela primeira vez há apenas alguns dias. Mas já há tensão entre eles e o motivo é óbvio: ambos querem ser o cara no comando.

O resto da turma? Perto de uma lata de lixo para reciclagem transbordando de latinhas de cerveja está uma mulher de 34 anos com piercing no nariz chamada Tory Field, a atenciosa co-fundadora de uma fazenda comunitária que planta vegetais. Também vai conosco – mas está ausente hoje por causa de um resfriado – o Gino Muzio, um epidemiologista de 54 anos de Nápoles, que costumava trabalhar com os Médicos Sem Fronteiras. Nós o chamamos de doutor Gino.

Nosso destino é La Gonâve, uma ilha em forma de amendoim com 75 mil habitantes que escapou do pior do terremoto, mas, devido à sua relativa boa-sorte, atraiu uma inundação de refugiados. Ouvimos rumores sobre 15 mil a 40 mil pessoas famintas e sem lar aparecendo por lá. Até o final de janeiro pouca ajuda humanitária tinha chegado ao lugar, levando a CNN a transmitir uma matéria chamando La Gonâve de “a ilha esquecida”.

Cerca de meia hora depois do começo da reunião, usamos o Skype para fazer uma chamada para nosso contato no local: padre Soner, um sacerdote episcopal haitiano que mora em Anse-à-Galets, uma cidadezinha no leste de La Gonâve. Ele diz que os moradores ainda estão se esforçando para alimentar e tomar conta de seus compatriotas. Ainda há cidades de barracas por lá. As únicas balsas que funcionam não estão levando comida – os refugiados ocupam todo o espaço – e os estoques de água estão no limite. “As pessoas estão bebendo água do mar!”, ele nos conta.

Nosso objetivo é deixar nossa comida (três toneladas de arroz, feijão e farinha) com o padre Soner. E durante alguns dias, o doutor Gino vai ajudar em um hospital local, comigo como seu assistente.

Como nós vamos fazer isso tudo é mais complicado do que esperávamos pois, mesmo agora, quem “nós” somos não está muito claro. Conforme a reunião avança, descubro que Sequoia não estava sendo completamente sincero. A OceansWatch não é a ONG que está organizando a viagem, mas sim entrando de carona no plano criado pelo Conch Republic Navy (CRN), um clube de várias décadas de idade de gente de Key West que adora o mar. O CRN coletou todas as doações, escolheu La Gonâve como destino e organizou uma frota de seis embarcações. Sequoia tinha me dito que velejaríamos na frente de mais de vinte barcos da OceansWatch, mas no final só o Capitão Dan e seu Hiatus responderam ao chamado. Agora seríamos o barco-chefe na pequena frota do CRN.

Essa mudança não me incomoda, já que o CRN parece estar cheio de profissionais, já tendo levado ajuda a mais de meia dúzia de zonas de desastre no Caribe ao longo dos anos. Na noite seguinte, a bordo do Hiatus, seguimos adiante, debruçados sobre mapas náuticos até chegarmos a um rota com que todos concordamos. Vamos pegar o caminho relativamente seguro e longo para as Bahamas: 1.300 quilômetros, oito dias, se o vento estiver a favor, cortando a Corrente do Golfo, passando pelas águas rasas de Bahamas e Exumas, e seguindo pelo Canal de Barlavento até La Gonâve. Em 11 de fevereiro, uma quinta-feira, atracamos na Western Union Dock e carregamos o barco. No convés, amontoamos galões extras de diesel e óleo de cozinha, junto com vinte pares de muletas doadas. Cerca de uma dúzia de voluntários trazem pacotes de 25 quilos de contêineres estacionados ali perto, levando-os até o Hiatus passando de mão em mão. O Capitão Dan supervisiona tudo, empilhando os pacotes nos espaços interiores do barco.

Enquanto isso, ele e Sequoia discutem sobre a capacidade do Hiatus encarar o mar com tanto peso extra.

“Isso é tudo que vai rolar”, solta o Capitão Dan uma hora. “Estamos 20 centímetros abaixo da linha d’água.”

“Eu gostaria de ver mais pacotes na popa, para o barco ficar reto e a gente poder dormir”, diz Sequoia.

Não faço ideia do quanto o Hiatus aguenta, mas eu diria que ele já está lotado. Quando tento abrir a porta para a proa, tenho que puxar com força três vezes antes de ela soltar do batente, de tão entortada que está, fazendo um barulhão.

No domingo, 14 de fevereiro, içamos velas. Para aumentar a animação, junta-se a nós uma escuna da CRN chamada Drummer, tripulada por três jovens amigos que decidiram nos acompanhar.

Eu acabei me afeiçoando ao boca-suja do Capitão Dan, principalmente depois que ele me disse que uma vez velejou sozinho toda a distância até as Bahamas com nada além de uma bússola, uma sonar de profundidade, um rádio VHF e a revigorante fantasia de se dar bem com as enfermeiras pelo caminho. O currículo de Sequoia, por outro lado, continua um mistério. A maior revelação que saiu de sua boca é que seu nome de batismo é John Wayne. Mas haverá tempo suficiente para conhecer todo mundo, imagino.

Ou não. Por volta da meia-noite, a tripulação do Drummer nos alerta que o vento está mudando rádio. O Capitão Dan acorda o Sequoia para avisar que temos de partir agora se quisermos cruzar a Corrente do Golfo sem precisar encarar ondas enormes. Má ideia. Não se pode acordar o Capitão Pirata e dizer que os planos mudaram. Depois de dias de discussões e atrasos, ele perde as estribeiras, gritando: “Vai se foder, seu babaca de merda!”

Capitão Dan, em um tom ameaçadoramente calmo, responde: “Eu quero você fora do meu barco, com todas as suas coisas”. No fim, o Capitão Dan deixa a decisão para a tripulação e, como participantes do “No Limite”, decidimos unanimemente que só pode haver um chefe, e não é o Sequoia. Às 4h30 da madrugada, com nossos barcos parados na água a alguns quilômetros da costa, eu o acompanho com sua bagagem do tamanho de um caixão até o Drummer, cuja tripulação não faz ideia do que aconteceu (já que não contamos a eles). O barco parece imensuravelmente mais leve sem ele.

DEPOIS DE CHEGARMOS ATRASADOS EM NASSAU NA TERÇA, 16 de fevereiro, partimos assim que foi possível na manhã seguinte, em uma rota de dois dias para o sul na direção de Georgetown. Com o Capitão Dan de vigia no convés de proa, singramos o mar a favor do vento, o leito arenoso passando a apenas alguns metros abaixo de nós. Sempre que Dan enxergava a mancha negra de um recife de coral nas águas verde-menta, ele erguia um certo número de dedos e apontava para estibordo ou bombordo, e eu virava o mesmo número de graus nessa direção. Os blocos de coral vão passando mais perto conforme vamos entrando em sintonia, e logo estamos ziguezagueando entre eles como se estivéssemos em um rally slalom, com o Drummer horas atrás de nós. Mas quando cai a noite, o vento muda e pronto, ficamos sem vento para prosseguir. Mar agitado. Difícil de dormir. Dividindo um cobertor e fritando em uma cama feita de sacos de farinha, Tory e eu dormimos seis segundos por vez. “Vai levar anos para dormir oito horas nesse esquema”, reclama ela.

Chegamos claudicando em Georgetown na quinta-feira, 18 de fevereiro. O Drummer chega umas 12 horas depois, e seu exausto capitão decide descansar até o resto da frota do CRN chegar, em alguns dias. Irritados um pouco demais pelo Sequoia, eles também decidem expulsá-lo.

Já em cima da hora, partimos para a última parte da viagem sozinhos na manhã seguinte, na esperança de fazer tudo numa pernada só de três dia para o sudeste. A direção do vento continua mais ou menos constante, mas o anemômetro no topo do mastro está indicando 30 nós, o triplo do que estava previsto, e uma quantidade desconcertante de água do mar começa a entrar no barco pelo enfurnado do leme. E não tem como consertar isso no meio do caminho.

Tentando parecer o mais calmo possível, o Capitão Dan enfia nossos passaportes e itens essenciais em uma sacola de emergência caso tenhamos de abandonar o barco. Tory está acionando a bomba. o doutor. Gino, no auge do que se revelou uma infecção respiratória, conjura as forças necessária para soltar sua opinião: “Eu queria que hoje fosse segunda-feira.”

Me sinto fatalista e enjoado demais para me oferecer para a vigia das 4h às 6h da manhã, por isso fico no turno noturno. A vigia noturna tem seus pontos positivos – luzes fosforescentes se soltam da proa em V, brilhando como estrelas –, mas eu também a acho estressante. A bússola em forma de globo brilha vermelha. O vento tamborila as velas como um murmúrio baixo. O barco singra a escuridão. A coisa toda parece pendurada por um fio.

Como só conheço alguns sinais náuticos que aprendi vendo a Guarda Costeira, sinto-me confuso o tempo todo. A que distância estão aquelas luzes de localização e será que elas estão tentando me dizer alguma coisa? Mesmo depois de um curso de navegação de dez dias que me custou US$ 4.000, ainda não consigo descobrir. Tudo que sei é que nosso farol de emergência pendurado na cana do leme pisca como código Morse, me lembrando o tempo todo que Q-U-A-L-Q-U-E-R C-O-I-S-A P-O-D-E D-A-R E-R-R-A-D-O.

E não demora a dar mesmo.

No domingo, 21 de fevereiro, acordo e descubro que o Otto – o apelido que dei para nosso confiável piloto automático – tinha estourado uma linha hidráulica no meio do Canal do Barravento. A Tory está controlando o leme na marra, enquanto o Capitão Dan, de ferramentas em mãos, está fazendo barulho tentando consertar o estrago. Doutor Gino, completamente acabado, dorme entre os momentos de passar toalhas de papel a Dan para que ele limpe o óleo que está vazando.

Meia hora depois, pouco antes de Dan voltar ao convés, triunfante por ter, de algum modo, revivido o Otto, um helicóptero vermelho e branco da Guarda Costeira aparece no horizonte, voando baixo na nossa direção vindo do Haiti, com sua turbina rugindo. Devem ter visto nosso curso errático em algum radar super poderoso, mas não fazíamos ideia do porquê estavam vindo nos resgatar. O Departamento de Estado dos EUA não encoraja ou apoia aventuras privadas ao Haiti.

“Helicóptero da Guarda Costeira, este é o veleiro Hiatus”, gritei no rádio portátil.

“Prossiga, Hiatus”, respondem, pairando baixo sobre nosso mastro, ondulando o mar com o vento das hélices.

“Hã, acho que vamos ficar bem”, gaguejo, “mas obrigado por vir checar a gente!”

“Entendido”, responde a voz mais profunda e calma que já ouvi na vida. “Helicóptero da Guarda Costa de prontidão no 16”.


ABASTECIMENTO: Alimentos levados pelo Hiatus são descarregados em La Gonâve

VINTE E QUATRO HORAS DEPOIS, às 7h da manhã da segunda-feira 22 de fevereiro, chegamos às águas calmas do Haiti, damos nosso primeiro mergulho ao lado de belos penhascos cor de giz da península do noroeste e achegamos em Anse-à-Galets, na La Gonâve.

O Padre Soner, cuja careca reconhecemos de uma foto enrugada, sai do meio de dezenas de moradores locais silenciosos no píer de cimento e nos cumprimenta amigavelmente. Sem demora, uma fila de rapazes descarrega o que nós levamos uma manhã inteira para carregar. E logo depois disso, nos acomodamos em dormitórios nas instalações da Igreja Episcopal. Agora que finalmente chegamos, a primeira coisa que quero fazer é conversar com Soner sobre como vamos distribuir os alimentos.

Graças a Deus, ele já tem um método simples e confiável para fazer isso. Ele e a polícia distribuem cartões-vales com datas para as famílias famintas, registram a distribuição em um diário e depois entregam os alimentos na sequência dos cartões, de dentro de suas instalações seguras. Até agora minha fantasia está se cumprindo – chegamos bem a tempo! –, mas nos dias seguintes, enquanto exploro Anse-à-Galets e as cidadezinhas próximas, fica difícil conciliar a descrição inicial que Soner fizera de La Gonâve com o que estou vendo.

No começo, sinto-me avassalado pelas novas impressões. Missas barulhentas. Rebanhos de cabras e porcos soltos por aí. Um monte de centros de câmbio de dinheiro protegidos por guardas com escopetas. Lindas praias de pedras brancas. Picapes lotadas de caroneiros e sacolas de 25 quilos de alguma coisa. Uma criançinha de shorts esfarrapados usando uma camiseta grande demais com os dizeres, em letras garbosas, you can’t afford me (sou cara demais para você).

A ilha não tem jornal, por isso é difícil achar informações, mas quanto mais eu olho, mais as descrições que ouvi pelo Skype velho do Padre Soner me parecem erradas. As pessoas em Anse-à-Galets não estão bebendo água do mar, mas de uma das pelo menos 16 fontes públicas, que parecem ser limpas e frescas. As balsas vão para o continente diariamente e entregam, entre outras coisas, enormes engradados de coca-cola. Não vejo a La Gonâve inteira, mas nossa situação começa a parecer absurda depois que o doutor Gino visita o hospital, que tem 23 funcionários pagos e, no momento, 20 pacientes no total.

“Onde estão os refugiados?”, pergunto ao Padre Soner.

“Eles vieram dois ou três dias depois do terremoto”, conta ele. “Quando chegaram, não estavam recebendo boa ajuda de Porto Príncipe. Mas depois de algumas semanas, eles começaram a voltar pra casa.”

Então, quantos sobraram? Ninguém sabe. Mas seja lá quantos forem, nossas quase 3 toneladas de alimentos são comparativamente insignificantes. Aparentemente, entre o terremoto e nossa chegada, a “ilha esquecida” recebeu uma boa quantidade de ajuda humanitária.

Na semana antes de nossa chegada, a West Indies Self Help, uma organização de desenvolvimento missionária evangélica de La Gonâve, obteve duas remessas de alimento no total de 56 toneladas. A Lemon Aid, uma organização de caridade escocesa (cuja sede fica numa antiga fábrica de limonada) trouxe 3,3 toneladas de alimentos e medicamentos. Os marinheiros do USS Bunker Hill, um cruzador da marinha, trouxeram rações militares e milhares de litros de água potável. Membros da Wesleyan Church, uma congregação evangélica internacional com operações no local, obteve 59 toneladas de comida e óleo de cozinha. O governo da Venezuela enviou diesel para os geradores. A lista continua. Supostamente, 36 outras ONGs estão trabalhando na ilha. E isso só entre as que fiquei sabendo.

Ainda assim, fiquei feliz de ter vindo. O Padre Soner pode ter exagerado no drama da situação, mas ele não nos enganou na maldade. Em um mês apenas, o CRN e a OceansWatch conseguiram fazer contato com uma remota ilha do Haiti, solicitaram milhares de dólares em doações, organizaram voluntários e nos trouxeram até aqui em segurança. Sinto-me feliz por não encontrarmos os gonavianos todos mal-nutridos, mas triste por descobrir que nossa ajuda direta acabou tão confusa. Ao ir dormir de noite, tento encontrar algum mérito maior em nossa jornada.

TECNICAMENTE, NOSSA MISSÃO ESTÁ COMPLETA. Logo, o Capitão Dan e o doutor Gino voltarão para casa, as velas se arrebentando em uma ventania perto da Jamaica e voltando a funcionar perto da Flórida. A Tory vai trabalhar o mês seguinte em uma organização de justiça social em Porto Príncipe. O Sequoia vai me contar mais tarde que ele pegou carona saindo de Georgetown e distribuiu algumas doações em uma ilha no sudeste do Haiti. Sentindo-se bem-sucedido, ele vai me confessar que nunca capitaneou um barco a mais do que 80 quilômetros da costa e que seu nome de batismo completo é – juro por Deus – John Wayne Edmister. Não muito depois, também descubro que a diretoria da OceansWatch North America julgou que as ações dele “não foram consistentes com o desejo ou intenção da organização” e pediu-lhe que se retirasse.

Eu? Fui para Porto Príncipe por dois dias. Estou exausto, mas depois da confusão em La Gonâve, sinto um profundo desejo de ir até o epicentro, ver em primeira mão um desastre natural em grande escala – e talvez pôr nossa missão na devida perspectiva. Peguei a balsa até o continente, fui de ônibus até a entrada da capital e peguei o primeiro táxi que sabia onde ficava a sede da CNN, achando que podia ir para lá se algo desse errado. Mas isso não foi necessário. Guytho, o motorista de um Mitsubishi Lancer do início dos anos 1990, revela-se um cara bem legal. Pai de dois meninos com apenas 26 anos, ele quase não fala inglês e chama seu amigo de 24 anos para traduzir. Osnel trabalhava como professor de escola antes do terremoto, falava inglês fluentemente e, quando descubro que todos os hotéis estão lotados ou detonados, vai arranjar para dormirmos em uma barraca na entrada de uma ONG abandonada.

Passamos a manhã caminhando pelo centro da cidade – o palácio, a igreja, ruas ao acaso. O tão comentado cheiro de morte havia finalmente se dispersado na maresia. As ruas estão liberadas, mas as demolições não começaram ainda e a reconstrução, então, nem se fala. Com medo de ficar em casa, quase todo mundo fica vagando pelas ruas. Das janelas do táxi não tão rápido de Guytho, vemos filas bem organizadas de barracas e lonas da USAID e lustrosos veículos da ONU. Helicópteros passam sobre nossas cabeças constantemente. Uma longa fila de banheiros químicos faz inveja a qualquer show de rock ou à Maratona de Nova York.

Passo a admirar ainda mais os Médicos Sem Fronteiras que, única entre as organizações humanitárias, parecem contratar muita gente local e operam com um orçamento bem apertado. Eles colocam um adesivo em qualquer caminhão velho, dão uma graninha para algum motorista durão e chamam isso de tanque do MSF. No todo, a organização da ajuda é impressionante para para uma capital menos de dois meses após um terremoto de grau 7.0.

Faminto, descolo um pouco de pão, queijo e tomates em uma mercearia. “Vamos para um parque”, sugiro, imaginando um piquenique. Que idiota. Esqueça os descampados. Qualquer espaço aberto está coberto de barracas. Andando pelos subúrbios não tão bem organizados, fica claro que nem tudo está perfeito. A ajuda não chegou para todo mundo no bairro de Delmas, por exemplo. Os residentes das cidades de tendas improvisadas em lotes abertos à mão reclamam da falta de água potável e temem que suas tendas, feitas de lençóis, não vão resistir à estação das chuvas. Com medo de passarem desapercebidos, marcam seus refúgios com sinais de papelão: CAMPO 003: PRECISAMOS DE AJUDA.

No início da noite, passeamos por bairros de becos conversando com as pessoas que costumavam viver em pequenos apartamentos. “Koman ou rele?”, pergunto a uma mulher, na minha tentativa do idioma crioulo haitiano. “Geurda”, responde ela. Geurda tem 20 e poucos anos, com olhos fortes e malandros. Ela está de pé ao lado do que parece ser um corredor de destroços, com uns três metros de largura, com pedaços de cimentos do tamanho de mesas empilhados. Ali costumava ser a casa dela.

Quando aconteceu o terremoto, sua filha de 2 anos estava dormindo na sala ao lado de seu bebê de três meses que ela tinha acabado de dar banho. “Ela estava com tanto medo que não conseguia se mexer”, traduz Osnel. “Então uma monte de blocos de cimentos caiu em cima dela e ela não conseguiu se mexer para salvar as crianças”.

“Ela recebeu qualquer ajuda”, pergunto.

“Não.”

Quero perguntar o que ela precisa, onde ela dorme, se ela conhece alguém que fugiu para La Gonâve etc., mas quando me lanço às minhas milhares de perguntas, ela olha para o outro lado. Osnel e eu dizemos adeus e seguimos pelo beco. Está claro que ela não quer falar. E, de qualquer jeito, me conta Osnel, temos muitas, muitas outras pessoas a encontrar.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2010)







Acompanhe o Rocky Mountain Games Pedra Grande 2024 ao vivo