Vacilou, dançou

Por Gustavo Ceratti
Ilustração por Renato Alarcão

O PRIMEIRO CASO FOI o de James Williamson, jornalista australiano de 26 anos e ex-campeão do mundo de mountain bike. James competia na Cape Epic, na África do Sul, e depois de um bom resultado na segunda etapa, não acordou para o terceiro estágio da prova, em março deste ano. Quatro meses depois foi o ator e ciclista amador alemão Heinrich Schmieder, 40, que participava da Transalps – prova de MTB que acontece entre Alemanha, Áustria e Itália – e também faleceu durante a noite. Ambos foram encontrados mortos no quarto de hotel em que dormiam, após terem terminado bem a etapa das provas nas quais participavam. Ainda em junho, no Tour du Suisse, o luxemburguês Kim Kirchen sofreu uma parada cardíaca depois de um dos estágios, teve que ser mantido em coma induzido por um longo tempo, mas sobreviveu.

O que causou essas fatalidades? Esforço excessivo? Falta de acompanhamento médico? Ou, o que seria pior, o uso de substâncias ilícitas? “O esporte por si só não mata, e por si só não é vacina”, resume o doutor Nabil Ghorayeb, doutor em cardiologia pela Faculdade de Medicina da USP. Portanto, não pode ter sido apenas o esforço físico que levou James e Heinrich à morte, nem Kim ao coma. Por outro lado, também não podemos achar que atletas bem condicionados não correm o risco de ter um piripaque.

Com o pouco que se sabe pelos laudos médicos e pelas circunstâncias em que ocorreram essas fatalidades, de uma coisa pode-se ter certeza: os três casos, apesar de parecidos, são bem diferentes entre si, e exemplificam os tipos de situação em que a morte súbita pode ocorrer.

Os médicos de James – que foi campeão mundial de mountain bike solo em 2008 na categoria 24 horas – descobriram na necrópsia que o coração do atleta não bombeava o sangue de forma apropriada. Para compensar essa deficiência, um de seus ventrículos tornou-se mais largo, permitindo um maior fluxo sanguíneo. Já que o corpo achou uma forma de se adaptar, os médicos acreditam que somente esse problema genético não teria sido suficiente para causar a morte do ciclista – afinal, James já havia se submetido a esforços intensos inúmeras vezes antes desse fatídico dia. Uma possível causa, segundo eles, é o fato de James ter dormido de estômago cheio, o que exigiu ainda mais do seu coração já sobrecarregado pelo esforço de um dia de pedal intenso.

De acordo com o doutor Ghorayeb, que também é coordenador clínico do Sport Check-Up do Hospital do Coração, em São Paulo, de 2% a 5% das mortes súbitas não têm uma causa clara, mesmo realizando-se a necropsia. “Existem problemas cardíacos que só são descobertos por meio do eletrocardiograma e que podem surgir de uma hora para outra, como é o caso dos distúrbios elétricos do coração.” James, por exemplo, não fazia o exame de eletrocardiograma há mais de um ano – o que é perigoso para qualquer um, especialmente para um atleta.

Segundo Ghorayeb, cerca de 30 mortes súbitas de atletas com menos de 35 anos de idade ocorrem todo ano no esporte de alto nível. Cerca de 10% delas ocorrem por conseqüência de infarto no miocárdio, geralmente associado a fatores de risco não diagnosticados e não controlados (colesterol alto, hipertensão, diabetes), ocasionados por má alimentação, desidratação, consumo exagerado de sal e automedicação de suplementos, entre outros maus hábitos.

JÁ O CASO DE HEINRICH SCHMIEDER é diferente: o ator alemão era um entusiasmado ciclista amador de 40 anos de idade, perfil incomum para quem participa de provas do nível da TransAlps. E esse perfil pode ter feito toda a diferença: Heinrich possivelmente se sujeitou a um esforço maior do que seu corpo poderia suportar. “Mas é preciso levar em conta todas as variáveis para chegarmos a uma conclusão”, diz o doutor Rogério Neves, pós-graduado em fisiologia do exercício pela Escola Paulista de Medicina, da Unifesp.

Rogério reforça que é preciso cuidado ao se praticar esportes, seja qual for a idade. “O esportista precisa ter consciência de quais são as suas limitações e traçar objetivos de acordo com elas, seguindo a orientação de um profissional quanto à carga de treino correta e o tempo de descanso necessário para sua recuperação, além de preocupar-se com a sua alimentação e a hidratação”, diz Rogério, que também trabalha como fisiologista do Departamento de Futebol da Associação Portuguesa de Desportos. “O exercício gera um estresse no corpo buscando um beneficio físico. Se isso for feito de forma incorreta ou má orientada, estaremos causando um impacto negativo na nossa saúde”, afirma. Isso levanta a hipótese de que, pelo fato de o ator alemão ser um amador no ciclismo, ele não tinha o acompanhamento, a consciência, o conhecimento e os cuidados necessários para se proteger desse tipo de fatalidade. “Uma hora o copo transborda”, completa Sergio.

No caso de Kim Kirchen, campeão luxemburguês de contra-relógio, o sinal vermelho acendeu alguns meses antes. Ao enfrentar problemas com uma ferida infeccionada que não cicatrizava durante a E3 Prijs, que ocorreu em março deste ano na região dos Flanders, na Bélgica, o atleta tomou uma série de antibióticos e reagiu mal à medicação, acabando no hospital. Os médicos não diagnosticaram o problema e mandaram-no para casa. Dias depois, durante um de seus treinos costumeiros, Kim foi encontrado inconsciente na lateral da estrada e teve de ser socorrido por uma ambulância e levado mais uma vez ao hospital. Novamente, os médicos não conseguiram diagnosticar o problema e liberaram o atleta. O problema se repetiu mais uma vez durante a Flèche Wallone, também na Bélgica. Pessoas próximas ao atleta da equipe Katusha disseram que na ocasião a visão dele ficou turva e repentinamente ele não sabia onde estava.

Mesmo com todos esses indícios de que algo estava errado, o atleta, que iria participar também do Tour de France, decidiu competir no Tour du Suisse, em junho. Após um dos estágios, sentiu-se mal e alertou seu companheiro de equipe, que chamou o médico responsável. Kim estava tendo uma parada cardíaca. Para o doutor Ghorayeb, o médico da equipe cometeu um erro, pois um atleta só deve praticar atividades físicas de alto nível se, após uma minuciosa avaliação médica feita por um especialista, estiver isento de complicações não diagnosticadas, bem orientado a respeito de suas condições pré-existentes e com a certeza de que está saudável. “Cerca de 95% dos casos de morte súbita poderiam ser prevenidos realizando uma minuciosa avaliação pré-competição, que inclui o eletrocardiograma e o teste ergométrico”, diz Ghorayeb, vencedor do prêmio Jabuti com o livro O Exercício.

Segundo o doutor Rogério Neves, diretor clínico do centro de fisiologia do exercício SportsLab, o mito de que o esforço físico é, por si só, o responsável pela morte súbita dos atletas é um grande engano. Ela está geralmente ligada a causas congênitas, hereditárias ou à utilização de drogas, no caso de pessoas com menos de 35 anos de idade. Em pessoas acima dessa faixa etária, a morte súbita está ligada à necrose dos tecidos cardíacos ocasionada pelo entupimento de vasos sanguíneos (aterosclerose), que priva o coração de nutrientes como o oxigênio, necessários ao seu funcionamento, causando a chamada isquemia de miocárdio. Portanto, ao contrário do que se pensa, o esporte praticado de forma equilibrada e bem orientada é não só benéfico para o corpo humano, mas a melhor prevenção para fatalidades como as que ocorreram esses ciclistas.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de setembro de 2010)







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