Pontos de fuga


QUASE LÁ: Pelotão passa pela região de Cabo Frio, já na pnúltima etapa do Tour

Por Mario Mele
Fotos por Marcio Bruno

NEM O CÉU AZUL NEM AS BOAS ONDAS que quebravam na praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, na manhã do dia 28 de julho conseguiam chamar mais atenção do que o calçadão. Era lá que estavam, isoladas por um quadrado de cercas móveis, 116 bicicletas aguardando a chegada de seus respectivos pilotos. Pontualmente às 9 horas seria dada a largada da primeira etapa do inédito Tour do Rio.

Durante os próximos cinco dias, o Tour correspondeu às expectativas de ser a maior prova de ciclismo de estrada já realizada em solo brasileiro. Entre atletas, equipes de apoio, staff, juízes, policiais batedores e membros de imprensa, 1.500 pessoas estiveram envolvidas com a prova, que deu um giro de 758 quilômetros pelo estado fluminense, estimulou o uso da bicicleta pelas cidades por onde passou e distribuiu 200 mil reais em premiação.

O Tour do Rio chegou como uma bem-vinda dose de oxigênio para o ciclismo brasileiro, que conta com escassa estrutura e incentivo para treinos e pouquíssimas opções de prova em solo nacional – um cenário que, felizmente, vem lentamente melhorando, em parte graças à Olimpíada 2016, cuja cidade sede será o Rio de Janeiro. No ano passado, o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) pareceu se dar conta do atraso e decretou a inclusão do ciclismo para a edição de 2010 das Olimpíadas Escolares – jogos que valorizam as competições esportivas de jovens entre 15 e 17 anos.

No calendário da Confederação Brasileira de Ciclismo (CBC), já existiam provas ciclísticas ao estilo “tour”, ou seja, divididas por estágios. Por exemplo, a Volta de São Paulo, a Volta de Santa Catarina e o Tour do Paraná. Outras, como a Volta Ciclística de Cuiabá (MT) e a Volta Ciclística Internacional de Gravataí (RS), crescem a cada ano, e também colaboram com a evolução da cultura ciclística brasileira. Mas, a poucos anos de se tornar a capital mundial dos esportes, já estava na hora de o Brasil tentar uma fuga do pelotão intermediário.

A FUGA OU ATAQUE É UMA DAS DECISÕES mais louváveis de uma prova de ciclismo. É quando um ou mais atletas acelera o ritmo com a intenção de abrir vantagem do pelotão. O ciclista que foge ou ataca bota a cara no vento e se sujeita à maior resistência do ar; o esforço que ele tem que fazer para se manter na mesma velocidade do que o adversário que pedala embutido no pelotão é bem maior. Pelo risco e audácia, as fugas são também os momentos mais emocionantes para quem está de fora, assistindo. Mas saber o momento certo de fugir é o segredo. Lance Armstrong, heptacampeão do Tour de France, assumiu em sua autobiografia, De volta à vida, que um de seus erros mais comuns no início de carreira era tentar a fuga cedo demais. Com isso, acabava se desgastando, e constantemente era engolido pelo pelotão nos últimos quilômetros.

O Tour do Rio representa o ataque do ciclismo brasileiro, protagonizado por Maria Luisa Jucá, a organizadora e idealizadora do evento. “É o resultado de um trabalho de três anos e meio de total dedicação, fé e amor”, vibrava ela em Angra do Reis, logo após o término da primeira etapa. Maria Luisa é baiana e, apesar de morar no Rio de Janeiro há alguns anos, não perdeu a empolgação e o sotaque arrastado típicos de seu estado natal. “Não se trata de um projeto a curto prazo”, continuou. “Queremos que o Tour do Rio se torne uma referência do ciclismo mundial. Além disso, a nossa intenção é promover, cada vez mais, o uso da bicicleta por meio de ações sociais nas cidades por onde passa.”

Seis anos parece um tempo razoável para o Brasil criar uma identidade no ciclismo e, pelo menos, chegar à olimpíada com alguma história para contar. O Tour de San Luis serve como paralelo. Em apenas quatro edições, essa competição se tornou, disparado, o maior evento ciclístico da Argentina, e hoje atrai equipes de ponta do Pro Tour (o circuito organizado pela União Ciclística Internacional, a UCI). O Tour do Rio já deu o passo mais importante: está no calendário anual da UCI e, logo na primeira edição, também atraiu equipes europeias de peso. O segredo foi a boa estrutura oferecida e, claro, a premiação encorpada.


ARRIBA: Subida da serra de Teresópolis, na terceira etapa, entre Três Rios e Nova Friburgo

NA ESTRADA, QUEM SAIU NA FRENTE foi o italiano Tomas Alberio, 21 anos, da equipe Trevigiani Dynamon Bottoli. Dos cinco estágios, ele venceu os dois primeiros, um entre o Rio de Janeiro e Angra dos Reis, no litoral sul do estado, e outro entre Volta Redonda e Três Rios, no litoral norte. Nas três etapas seguintes – Volta Redonda a Nova Friburgo, Nova Friburgo a Cabo Frio, e Cabo Frio ao Rio de Janeiro, do litoral para a região serrana e vice-versa –, Tomas apenas administrou a distância para os adversários, e não precisou mais tirar a camisa amarela. Ele é o primeiro campeão do Tour do Rio.

O norte-americano Christopher Jones, da equipe Type 1, manteve o segundo lugar durante toda a competição, e foi vice com uma diferença de 18 segundos para o italiano. O gaúcho Maurício Morandi, da equipe São José dos Campos Scott/Marcondes Cesar, foi o melhor brasileiro. “Meu forte são as subidas”, entregou Maurício, sempre ressaltando o trabalho de toda a equipe, da qual seu irmão, Fabrício, faz parte. Maurício dividiu o prêmio de R$ 10 mil que recebeu pelo terceiro lugar entre todos os integrantes do seu time, inclusive mecânicos e massagistas. Afinal, apesar de premiar individualmente, o ciclismo é essencialmente um esporte em equipe.

Além de generosidade, Maurício Morandi mostrou atitude. Durante o terceiro estágio, entre Três Rios e Nova Friburgo, ele comandou uma fuga de três ciclistas pela rodovia RJ-134. Encarou as temidas serras próximas a Petrópolis e Teresópolis e se manteve à frente do pelotão até os últimos 15 quilômetros da etapa. Naquele ponto, os espanhóis Sergio Casanova e Diego Milan, da MMR Bikes, já tinham abandonado o conforto do pelotão e partido à caça do trio que estava mais adiante. Imediatamente após a dupla neutralizar a diferença, Sergio iniciou uma segunda fuga, dessa vez solitária. Os 10 quilômetros finais do espanhol foram uma pedalada desesperada. Sergio olhava para trás a todo o instante, trabalhando visivelmente no limite do que suas pernas e pulmões conseguiam suportar. “Quando percebi que os últimos metros eram em paralelepípedos, achei que cederia à pressão”, disse. Apesar desse susto, Sergio conseguiu vencer uma das etapas mais difíceis do Tour. “Fui favorecido por um tipo de percurso que é a minha especialidade: descidas e subidas curtas e alternadas”, explicou, ainda ofegante. Sergio foi o quarto na classificação geral.

O último estágio, entre Cabo Frio e o Rio de Janeiro, foi o único inteiramente plano. Pouco depois das 7 da manhã do dia 1º de agosto, o pelotão já estava girando a mais de 40 km/h na Via Lagos, a rodovia estadual que liga as duas cidades. Foi quando os xarás brasileiros Patrique Azevedo e Patrick Oyakaua, ambos da equipe Sesc São Caetano, organizaram uma fuga heróica. “Ele atacou, e fez sinal para eu ir junto”, relembrou Patrick. A dupla se revezou na liderança isolada do pelotão até os últimos metros. Só que um banner com o logo do Tour do Rio, colado poucos metros antes da linha de chegada, confundiu os brasileiros, que foram ultrapassados enquanto davam as mãos comemorando a vitória antes da marca final. Por menos de uma roda de diferença, o esloveno Aldo Ilesic, integrante da equipe norte-americana Type 1, venceu a última etapa do Tour do Rio – segunda vitória dele na competição. A classificação geral não seria alterada com a vitória de Patrique ou Patrick, mas a comemoração dos brasileiros no encerramento teria sido em melhor estilo, sem água no champanhe. “Erros acontecem. Eu também fui atrapalhado por uma moto no sprint final, mas pelo visto a sorte hoje estava comigo”, disse Aldo, 58º na classificação geral.

Numa prova com a dimensão do Tour do Rio, deslizes são realmente inevitáveis. Mas o ciclismo brasileiro nunca teve tantos motivos para acreditar que se encontra na fase mais otimista de sua história. Logo após o término de uma das etapas, eu conversava com um colega jornalista na fila do almoço. Enquanto esperávamos a multidão de ciclistas famintos fazer castelinhos de comida sobre seus pratos, ele me explicava as razões que levam ciclistas profissionais ou amadores mais dedicados a depilarem as pernas. “São várias”, ele justificou, “como facilitar o trabalho do massagista, aumentar a aerodinâmica, diminuir as chances de uma infecção no caso de cair da bike e lixar o asfalto.”

Não achei nenhum dos motivos realmente satisfatórios. “Já está inerente à cultura desse esporte: ciclistas se distinguem e se reconhecem pelas pernas”, ele ainda advogou. Mal completou a frase, fomos surpreendidos por um repórter, debutante na modalidade, que entrou na conversa e não quis perder a piada. “Depilação é coisa de mulher, homem que faz isso quer deixar os músculos mais visíveis. Pura vaidade.” Ele não tinha notado que entre nós havia um ciclista de pernas lisinhas. Talvez em 2016, com as competições de ciclismo mais frequentes no Brasil e o Tour do Rio em sua sétima edição, uma perna masculina depilada não cause tanta estranheza. Mas, naquele momento, a melhor tática foi tentar uma fuga desse assunto.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de setembro de 2010)







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