A prova dos líderes


BELEZA: Fernando Fernandes observa as belezas dos cânions durante a largada

Por Tiago Brant
Fotos por Ale Socci

AINDA SÃO 5 DA MANHÃ, mas a claridade e o calor da Bahia já não me deixam dormir. Estou acordado, porém imóvel, deitado no quarto simples e confortável do hotel Belvedere, em Paulo Afonso. Até bem pouco tempo atrás, eu nunca teria imaginado vir para cá. Estamos à beira do maior cânion navegável do Brasil, em pleno rio São Francisco, no sertão do Estado, para participar da 2ª Bahia Maratona de Canoagem.

Minha vida começou de novo no dia 4 de julho de 2009. Antes disso, tudo parecia estar indo bem. Modelo bem sucedido, ainda surfando a onda de fama e bajulação que começou com minha participação no Big Brother Brasil de 2002, eu estava em plena preparação para a campanha publicitária mundial dos perfumes Dolce & Gabbana, quando tudo mudou.

Eram 2 da manhã e eu tinha acabado de jogar bola com meus amigos depois de um dia intenso. Estava cansado depois de vários dias em dieta, perdendo peso para estar trincando nas fotos. Entrei no meu carro para voltar para casa e… Acordei no hospital. Não vi o acidente, porque estava dormindo ao volante. Fora o susto, parecia tudo em ordem comigo. Exceto por minhas pernas, absolutamente insensíveis. É difícil explicar. Era uma mistura de dúvidas e esperança. Eu não sentia as pernas, mas acreditava que aquilo iria mudar. Para falar a verdade, ainda acredito. Só não vivo minha vida à espera desse momento.

Saí do hospital 35 dias depois, em São Paulo, e me mudei para o centro de reabilitação do Hospital Sarah Kubitscheck, em Brasília. Fiquei cinco meses por lá. Precisei de cada segundo desse tempo para refazer minha vida. Só não imaginava que minha reabilitação de verdade começaria do lado de fora do hospital, mais precisamente no lago Paranoá, onde encontrei apoio, saúde e diversão a bordo de uma canoa.

LARGADA: Fernando Fernandes pronto para remar os 8 quilômetros da categoria turismo

Remar e, principalmente, se equilibrar numa canoa com 46 centímetros de largura não é fácil para ninguém, quanto mais para alguém como eu, com lesão medular. Para poder remar, dependo exclusivamente do meu abdome – e agradeço a esse conjunto de músculos diariamente. Comecei com um caiaque mais largo e foram muitas e muitas quedas antes de conseguir me estabilizar num caiaque de competição. Mas quando me vi no meio do lago Paranoá, com o vento batendo na minha cara e remando ao lado de atletas sem nenhuma deficiência física, senti um prazer inexplicável e uma sensação enorme de capacidade.

Não penso mais no acidente, nem no BBB, nem nos quinze quilos que perdi só nas pernas, que hoje me acompanham alheias à minha nova realidade. Poderia ficar num ambiente controlado, mas não consigo. Me jogo, me arrisco, mas não fico parado. Não quero conforto, quero ser feliz. Nessa situação, não posso deixar minha preguiça ou vaidade serem maiores que minha felicidade. E felicidade pra mim tem a ver com esporte. Foi o caminho que encontrei para voltar à tona. Para não enlouquecer, fiz uma lista de objetivos de curto prazo e fui ticando cada pequena conquista.

Entre elas, está o caiaque. Comecei a remar a menos de dez meses, mas parece que me preparei para isso a vida inteira. Com o apoio de amigos e patrocinadores, participei do Campeonato Mundial de Paracanoagem, em agosto, na Polônia, e (incrível) ganhei!

Hoje, sou campeão mundial na distância de 200 metros, que completei em 53 segundos – 10 segundos à frente do segundo colocado. Nunca vou esquecer o estádio lotado e a torcida gritando o meu nome. Quem diria?! Sempre quis ser um campeão no esporte, mas a oportunidade só apareceu na minha nova e recente vida, sem o movimento das pernas. Só posso agradecer. Estou vivo, talvez mais do que nunca, e não vou ficar chorando o leite derramado.

AGORA SÃO 8 HORAS DA MANHÃ. Estou suando no banco do passageiro enquanto meu amigo de todas as horas, o Thiago, está dirigindo até o local da largada. Chegando lá, vou precisar do apoio de outras pessoas que me ajudarão a descer até o rio e entrar no barco. A partir daí, serão oito quilômetros até o Rio do Sal, onde termina o percurso da categoria turismo. Quem sabe no ano que vem eu me aventuro nos 55 quilômetros da categoria maratona, em que brilham estrelas do calibre de Sebastián Cuattrin, 38 anos, campeão da maratona no ano passado?

Cuattrin é um monstro da canoagem. Participou de quatro olimpíadas (Barcelona, Atlanta, Sidney e Atenas) e foi o primeiro brasileiro a fazer uma final olímpica na sua especialidade, os 1.000 metros de K-1. Hoje, ele se dedica a longas distâncias e, para variar, está se dando bem. Merece. Além de ser um atleta incrível, é um ser humano exemplar.


COMEÇO: O remador Saldanha dá uma ajudinha a Fernando

O visual do cânion é impressionante. Logo no início, me concentro ao máximo para não virar enquanto flutuo sobre águas turbulentas e verde escuro, com bolhas enormes e correntezas sinistras que aparecem sem aviso prévio. A turbulência acontece por conta da gigantesca barragem de Paulo Afonso, que fica logo ali e fornece energia para boa parte da Bahia. A temperatura da água até que refresca, mas o lugar parece um caldeirão. Logo acima da minha cabeça, quer dizer, a uns bons 90 metros, paira uma bela ponte inglesa que liga os dois lados do cânion. É só o começo.

Aos poucos, vou me tranquilizando e consigo imprimir um ritmo bom. Mais uma vez estou entregue às minhas forças e às da natureza. Me sinto acolhido em meio àquela fúria de remos – quase duzentos – explodindo nas águas sagradas do velho Chico. Naquele ponto do rio, entre duas barragens, formou-se um cânion com 65 quilômetros de extensão, 170 metros de profundidade e uma largura que varia entre 50 e 300 metros. Mas os caminhos são muitos entre os paredões de pedra. E todos são imponentes, lindos mesmo. Confesso: estava maravilhado com aquela paisagem. Quando saí do transe e comecei a prestar atenção no caminho, já era tarde.

Não viajei sozinho. Vários competidores também se enganaram. Começava ali uma nova corrida dentro da corrida. Ao fim dela, cheguei em segundo lugar wentre os paracanoistas, logo atrás do Saldanha, um remador fortíssimo que não conta com o antebraço esquerdo desde o nascimento e não se considera em desvantagem: “Deficiente é quem se acha!”, diz ele. Concordo. Assim como eu, Saldanha é um vencedor.


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de novembro de 2010)







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