Homenagem à altura


DEU BRANCO: Integrante da expedição no gelo ártico

Por Gustavo Ceratti

EM 1966, NICK CLINCH JÁ ERA uma figura consagrada na história do montanhismo quando decidiu desbravar uma das regiões menos conhecidas da Terra até então: a Antártica. Nove anos antes, entrara para a lista dos grandes nomes do esporte ao liderar a primeira expedição norte-americana bem-sucedida ao K2 (8.611 metros), no Paquistão, a segunda maior montanha do planeta após o Everest (8.850 metros). No continente antártico, Clinch e sua equipe concentraram-se na região das montanhas Ellsworth, uma cadeia com 360 quilômetros de extensão localizada na porção ocidental. Mais uma vez mostraram seu talento ao se tornarem os primeiros escaladores a explorar com sucesso essa parte do mundo, conquistando no total seis montanhas – entre elas o maçico Vinson, de 4.892 metros, o ponto mais elevado do Pólo Sul.

Quarenta e cinco anos depois, um grupo de experientes montanhistas norte-americanos decidiu que, para celebrar o feito de Clinch, não bastariam festas, livros ou artigos em publicações especializadas. Era preciso refazer seus passos em grande estilo. Para concretizar o projeto, uniram-se Peter Whittaker, filho do primeiro norte-americano a chegar ao cume do Everest, e Ed Viesturs, único norte-americano a escalar sem auxílio de oxigênio as 14 montanhas mais altas do mundo, além dos guias Caroline George e Jake Norton e do cinegrafista Kent Harvey. Com patrocínio da First Ascent, marca norte-americana de artigos outdoor, eles desembarcaram no campo base do maciço Vinson na noite do dia 4 de janeiro de 2011, após uma longa viagem iniciada em Punta Arenas, no Chile, extremo sul do continente latino-americano localizado a 800 quilômetros do pólo. Um dos meios de transporte foi um velhaco Ilyushin, avião russo sem janelas criado para fins militares em 1933. “Quando chegamos, sentimos logo o vento forte e as gélidas temperaturas abaixo de zero. Mesmo assim foi inacreditavelmente espetacular sentir-se abandonado no meio do nada, com branco por todos os lados”, conta Whittaker. A equipe ainda percorreu mais 210 quilômetros até o campo base da montanha a bordo de um bimotor equipado com esquis de aterrissagem. Assim que desembarcaram, montaram o acampamento e lutaram para dormir, por volta da meia-noite, sob o forte sol de verão antártico.

COM TUDO: Peter Whittaker, todo equipado, durante a viagem

No dia seguinte o plano era ir até o campo 1, a nove quilômetros. Outra vez a jornada não se revelou fácil: foram necessárias cerca de cinco horas e meia para ascenderem de 1.500 metros a 2.200 metros de altura. Teriam ainda de voltar ao campo base para buscar mais equipamentos antes de partirem para o campo 2. O maciço Vinson possui apenas dois campos para a chegada ao cume. É uma montanha relativamente fácil de ser escalada e não oferece grandes desafios – fora as baixas temperaturas. Por esse motivo, as expedições à Antártica geralmente ocorrem no verão, quando o clima é mais ameno e se pode contar com um pouco de calor (são 70 dias seguidos de sol durante a estação quente). “Mesmo assim o mais brando sopro de vento já congela os ossos”, diz Jake Norton.

Em 7 de janeiro, a equipe fez o último transporte de equipamentos do campo base ao campo 1 e, no dia seguinte, ascenderam pela primeira vez ao campo 2. Dali faltava pouco até o cume. “Aquela manhã começou diferente. Pela primeira vez o sol se escondeu atrás de uma densa cortina de nuvens. Caiu neve durante a noite e finalmente o frio deu as caras”, conta Norton. O time, porém, saiu-se bem: montou acampamento no campo 2, a 3.700 metros de altura, e retornou logo ao campo 1 para descansar. No dia 9, voltaram ao campo 2 com mais equipamentos. Entre eles, estava um item especial: a bandeira original do Alasca que um dos integrantes da equipe de Clinch, chamado Bill Long, fincara na neve em 1966 para homenagear o estado norte-americano. Treze anos depois, a mesma bandeira foi resgatada por Peter von Gizycki, membro do segundo grupo a escalar o Vinson. O objeto histórico foi entregue em 2008, como presente, ao Museu de Montanhismo Americano, do qual Jake Norton é atual diretor. Foi ele que teve a iniciativa de levá-la novamente à Antártica em 2011.

NA LABUTA: O grupo americano em seu caminho rumo ao topo do Vinson

Antes de atingir o topo, os membros da atual expedição recordaram os caminhos um tanto tortuosos enfrentados por seus colegas há mais de quatro décadas. No dia 18 de dezembro de 1966, a equipe de Clinch alcançou o cume do maciço Vinson e, durante a descida, aproveitou para escalar o monte Shinn (4.800 m), terceira montanha mais alta do continente. De lá partiram para um desafio ainda maior: conquistar o monte Tyree (4.852 m). Segundo mais alto da Antártica e apenas 40 metros menor que o Vinson, o Tyree apresenta, no entanto, terreno muito mais íngreme e irregular. Depois de algumas tentativas frustradas, os desbravadores concluíram que a única forma de escalar a montanha seria por meio do cume do monte Gardner (4.685 m), o quarto mais alto. Mesmo depois de escalá-lo, eles continuaram com dificuldades para atingir seu objetivo final. Até que, no dia 6 de janeiro de 1967, descobriram uma solução: ganharam acesso à parte noroeste do Tyree e, depois de 22 horas escalando uma via de 5º grau sob um frio cortante, alcançaram o cume. Nos dias seguintes, o grupo conquistaria ainda outros dois montes, o Long-Gables (4.150 m) e o Ostenso (4.180 m). Tornavam-se assim os primeiros a completar seis entre as mais desafiadoras montanhas antárticas.

Os montanhistas retornaram ao campo 2 na manhã do dia 9 de janeiro e só saíram dali para conquistar o cume. Carregaram equipamentos e montaram a estrutura necessária, esperando que, no dia seguinte, alcançassem o topo. “Esse foi um dos mais belos campos em que eu já estive”, conta Jake. “Dali era possível ver todo o percurso até o campo 1. Também se tinha uma privilegiada visão do monte Shinn. Para onde se olhava, o gelo antártico se espalhava como um oceano para muito além dos nossos olhos.” Completando a paisagem, a apenas alguns quilômetros, o cume do Vinson impunha respeito. Após jantar às 9 da noite, todos descansaram para reservar energias para o grande evento que se desenrolaria em algumas horas.

O DIA SEGUINTE COMEÇOU CEDO, com o sol rachando e temperaturas razoáveis. Após duas horas caminhando em meio a um vale de gelo glacial, perceberam que a empreitada era mais traiçoeira do que imaginavam. “O vento começou a soprar forte, e logo sentimos nossa temperatura corporal começar a cair rapidamente”, diz Jake. Mesmo assim, seguiram em frente. De repente a rota fez uma brusca curva à direita, obrigando os escaladores a seguir em solo íngreme, diretamente em direção ao cume. “Naquele momento, o Vinson nos mostrou do que é realmente capaz. A temperatura caía a cada passo que dávamos, chegando aos 30ºC negativos. O vento veio com tudo, algo em torno dos 60 km/h.” A proximidade do cume dava a todos o incentivo necessário para seguir em frente. Entre uma checada e outra nas extremidades do corpo, para certificarem-se de que não sofriam congelamento, decidiram apertar o passo. O último trecho da montanha revelou-se ainda mais íngreme e exposto aos ventos – mas nada que derrubasse o ânimo do grupo. “Quando nos demos conta, estávamos todos abraçados em comemoração, no ponto mais alto do continente antártico. Foi emocionante.”

EQUIPE REUNIDA: grupo americano reunido para a expedição

Lá em cima, aproveitaram para apreciar a vista, fazer algumas ligações com um telefone por satélite e tirar fotos. Não esqueceram, claro, de abrir por alguns instantes a quarentona bandeira do Alasca. Voltaram, em seguida, ao campo 2, com a merecida sensação de dever cumprido. Após o Vinson, eles passaram mais alguns dias na região e escalaram cinco outras montanhas que nunca haviam sido tocadas pelo homem (batizaram quatro delas de Midnight Ridge, Ilyushin Fields, Gratitude e Route du Jour). Como Clinch e sua equipe 45 anos antes, Jake e os amigos conquistaram assim um lugar privilegiado entre o seleto grupo de exploradores da Antártica.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2011)







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