Na lanterna


CENÁRIO MERECEDOR: à noite os últimos colocados se orientam pelo interior
(Foto: Ale Socci)

Por Mario Mele

EM PÉ NA ÚLTIMA FILEIRA do auditório do mais luxuoso eco-resort de Prado, cidade no litoral sul da Bahia, acompanho o briefing técnico do Ecomotion Pro 2011. Na véspera da largada da oitava edição da corrida de aventura de maior expressão do Brasil, penso na melhor maneira de cumprir à risca minha mais recente missão jornalística: acompanhar as equipes que se revezariam nas últimas posições nos próximos cinco árduos dias.

Enquanto sites, jornais e canais de TV do país inteiro se preocupariam em passar ao mundo informações sobre os primeiros colocados, eu estaria encarregado de uma reportagem no mínimo curiosa: ficar na cola dos atletas mais lentos e azarados. “Por que você quer saber dos últimos?”, foi o que eu mais escutei das pessoas que estavam no evento. Ao ouvir a pergunta, eu apenas sorria enigmaticamente, à la Buda. Por que não seguir todos os passos dos menos sortudos, menos preparados ou menos experientes?

Como eles lidariam com a perspectiva de serem cortadas da prova? De onde tirariam a motivação, sabendo que não tinham chances de bons resultados? Por que, afinal, tinham ido parar ali na rabeira? E, finalmente, o que era necessário para sair lá de trás e conseguir reagir? Certo de que essa seria uma aventura no mínimo interessante em minha carreira de repórter, decidi fazer valer, pelo menos naqueles dias, a máxima que diz que “os últimos serão os primeiros”. Seriam 615 quilômetros, incluindo trechos de 80 quilômetros de trekking e 107 quilômetros de mountain bike, em que os lanterninhas contariam com minha total atenção.

Passava das 9h da noite quando o organizador Tiago Valois terminou a apresentação detalhada do percurso. Horas atrás, lanternas de cabeça iluminavam os mapas recém-entregues, transformando as dependências do hotel numa espécie de caverna lotada de turistas exóticos, com um código todo próprio de vestuário e linguagem. Cada equipe analisava os melhores caminhos e montava ali sua estratégia – pelo menos era o que deveriam ter feito, principalmente porque a orientação é disciplina fundamental nesse esporte.

“Não podemos embarcar ainda”, diz, aflita, Tatiana Cirillo, da equipe Competition Aroeira. “Não terminamos de plotar os mapas!”. Os atletas tinham que subir a bordo de uma escuna, para dormirem (ou melhor, passarem a noite) em alto mar, de onde seria dada a largada. A primeira perna da competição, uma remada de 15 quilômetros em caiaque oceânico duplo, aconteceria dali a apenas 9 horas. E pelo visto a Aroeira teria que fazer os últimos acertos no mapa embalados pelas ondas do mar, dando adeus a suas poucas horas de sono. Eles estavam nitidamente em desvantagem. Em outras palavras, eu identificava ali meus primeiros possíveis “alvos”.

A escuna já estava longe quando a equipe sueca Axa Sports Club deu as caras no píer. Simplesmente não conseguiram chegar a tempo de pegá-la. Com a quilometragem da prova ainda zerada, eles receberam a primeira “assistência médica”: uma providencial carona no barco que transportava os enfermeiros. “Além de usarem nossa embarcação para chegar até a largada, os gringos dominaram nossos sacos de dormir e entupiram o banheiro”, entregou uma enfermeira dias depois, ainda sem ver muita graça na história. Já eu me animava cada vez mais. No terceiro dia de prova, a Axa receberia o segundo socorro. O integrante Petri Forsman foi picado por uma jararaca e, mesmo contra sua vontade, acabou hospitalizado. A Axa, que havia conseguido se recuperar do perrengue da largada e vinha no pelotão intermediário, com boas chances, achou melhor desistir.

Completadas 12 horas de prova, eu me encontro na base do monte Pascoal, na terceira área de transição do Ecomotion. Depois de um trekking de 80 quilômetros passando por praias e matas fechadas, os competidores ainda tinham que vencer a trilha íngreme de 1,5 quilômetro de extensão e 586 metros de altitude até o topo da montanha que é o marco do descobrimento do Brasil. Só então poderiam pegar as bikes. A brasileira QuasarLontra foi a primeira a equipe a bater aquele ponto, a 1h15min da madrugada – cerca de 13 horas antes da Gantuá, uma das lanternas naquele instante.

CENÁRIO MERECEDOR: De dia, pela praia, nem os últimos colocados tiveram o que reclamar do trajeto

(Foto: Alexandre Cappi)

A Gantuá é uma equipe baiana experiente em provas expedicionárias como o Ecomotion. A lerdeza foi causada pelo mal-estar que pegou o baiano Alan Pedreira de jeito, e sua recuperação custou um repouso de 10 horas numa tribo do interior do Parque Nacional do Monte Pascoal. “Ainda bem que, depois de uma prova como essa, a tendência é lembrar só das experiências boas”, diz Diana Gomes, ainda empolgada com o tratamento vip dado pelos índios. Enquanto as equipes de ponta faziam transições proporcionalmente tão rápidas quanto um pit stop de fórmula 1, chegando e saindo em menos de 20 minutos, a Gantuá demorou mais de 1 hora para subir nas bicicletas. Mesmo assim, compensaram o embaço no trecho seguinte, fechando um pedal de 33 quilômetros em tempo recorde – 1h30min –, dando adeus à lanterna. Após a maré de azar, tiveram lá seus momentos de sorte: enquanto os quartetos mais velozes encararam uma trilha extremamente lamacenta por causa da chuva intensa que castigou a região, os Gantuá pegaram o percurso de bike já bem mais seco pelo sol.

EM CASA: Os índios Pataxó do monte Pascoal foram os grandes anfitriões do Ecomotion 2011

NA PRAÇA PRINCIPAL DE ITAMARAJU, depois que a Gantuá partiu otimista à caça do pelotão intermediário, eu tentava me informar sobre a última ala. Eram 19h30, e os atletas estirados no gramado da praça faziam com que a quarta área de transição parecesse um campo de guerra recém-devastado. Se foi uma luta chegar até ali, imagine a batalha que teriam pela frente: mais 48 quilômetros a pé pelo interior da Bahia até poderem novamente desfrutar o conforto de seus apoios. “Soubemos da lama que havia nesse último trecho e resolvemos pedalar por um caminho alternativo”, me conta o único integrante da equipe Aventureiros do Agreste que estava acordado naquele momento. Com a escolha, eles gastaram 8 horas para concluir o mesmo trecho que a Gantuá, com a trilha seca, demorou apenas 1 hora e meia para fazer. “Mas atravessamos visuais lindos, e só isso já foi uma recompensa”, me garantiu. Para eles, que estavam entre os últimos, a pressa realmente não parecia ser um elemento primordial.

Ainda em Itamaraju, um membro da organização me informa que a equipe paulista Tropa du Mato Colibri acabava de ser desclassificada por cometer uma manobra ilegal no Posto de Controle (PC) anterior. Enquanto os dois homens do time subiram o monte Pascoal para assinar a passagem obrigatória, as duas mulheres, as irmãs Ana Elisa e Ana Paula Boscarioli, seguiram direto ao próximo PC. Ambas têm experiência em alta montanha – Ana Elisa é ninguém menos que a primeira mulher brasileira a chegar ao topo do Everest. E Ana Paula me disse no dia seguinte que, além de já ter participado de várias corridas de aventura, é uma pessoa competitiva. “Não gosto de ser ultrapassada”, garantiu-me. Na lanterna, eles dificilmente corriam esse risco. Se quisessem realmente continuar no jogo, no entanto, jamais poderiam ter ignorado a regra básica da corrida de aventura, que diz que o quarteto deve permanecer unido “na alegria ou na tristeza, na saúde ou na doença”.

MATANDO A SEDE: Atleta se hidrata durante a Ecomotion Pro 2011
(Foto: Alexandre Cappi)

DEPOIS DE SUCESSIVAS ALTERNÂNCIAS de trechos de bike e trekking, as equipes de ambas as pontas – dianteira e traseira – se encontrariam no centrinho da pequena Guaratinga, onde ficavam os PCs 19 e 23. Nessa cidade baiana, já na divisa com Minas Gerais, os atletas escalariam a Pedra do Oratório, além de percorrerem trechos a cavalo e a pé pelas redondezas. Todos, portanto, passariam por lá mais de uma vez.

Foi em Guaratinga que finalmente deparei com a realidade dos primeiros colocados. A equipe paulista QuasarLontra ainda se mantinha líder, graças aos esforços dos corredores Rafael Campos e Mateus Ferraz para rebocar seus companheiros de equipe, os norte-americanos Paul Romero e Karen Lundgren. O casal superstar da corrida de aventura visivelmente sofria com as bolhas que forravam suas solas dos pés e, por um momento, cheguei a acreditar que, se não desistissem, o imprevisto poderia colocá-los entre os últimos em pouco tempo. Quase não escondi a empolgação frente à ideia.

Chuva e longos trechos de trekking pela praia e por trilhas arenosas foram um duro castigo aos 288 pés que largaram no Ecomotion 2011 (imagine lixar seu pé depois de passar várias horas com ele molhado). Para a QuasarLontra – tricampeã do Ecomotion e uma das grandes favoritas desta edição –, esse estrago refletiu diretamente na classificação. A gaúcha Cosa Nostra, que àquela altura já tinha virado “Coisa Nossa” até para o pessoal da organização, foi a primeira equipe a sair pedalando de Guaratinga rumo a Caraíva, no litoral. E na bota vinha a mineira Trotamundo, que assumiria a liderança algumas horas depois. Minha impressão era de que a segunda metade da prova tornaria esta edição uma das mais disputadas da história do Ecomotion.

O contato com os lanterninhas também foi proveitoso em Guaratinga. Tive o prazer de conhecer de perto o quarteto Advogado Aventureiro. No dia anterior, corria a notícia de que eles estavam perdidos e que seriam cortados da prova em breve. Para mim, eles já tinham virado lenda. Até seu carro de apoio, um apertado Citroën C3, era raridade nas áreas de transição. “Foi tudo uma questão de estratégia”, segredou-me então Vamberto Barone. “Repare no pé da galera, como está detonado, e olha como estamos bem.” De certa forma, ele tinha razão. “Tranquilo. Agora só falta vocês buscarem uma diferença de mais de dez horas para vencerem esse Ecomotion”, pensei, sem dizer nada a ele. Precisava manter minha fama de repórter educado.

“SOMOS A COSA NOSTRA.” A aparição de mais uma equipe no trigésimo posto de controle, montado dentro de uma agência de viagens no Quadrado de Trancoso, acordou-me às 6 horas da matina. Levantei para dar uma olhada na ordem de chegada, e o quarteto gaúcho era o quinto a passar por ali. Pelos meus cálculos, eu poderia hibernar despreocupado por mais umas 5 horas. Naquele dia, o capítulo da novela dos últimos só começaria às 2 da tarde. “Demos uma goiabada, dormimos demais”, disse o baiano Náru Soares, navegador da Makaíra, antes de despejar meio pote de lubrificante na corrente de sua bicicleta e apressar seus companheiros para as últimas 12 horas de prova.

Migrei então para a área de apoio da Terra de Gigantes e logo integrei o coro de “parabéns a você” para Fabiana Duarte, a mulher do time. Só que era a 50 quilômetros dali que outra comemoração ganhava mais audiência. Os brasilienses da Oskalunga, que inúmeras vezes pensaram em desistir frente às dificuldades e chegaram a cair para a 28ª colocação entre as 36 equipes da disputa, ultrapassaram espetacularmente os mineiros da Trotamundo no último trecho de bike e cruzaram a linha de chegada antes, vencendo o Ecomotion Pro. E não é que existe, sim, viradas de jogo entre as lanterninhas?

MISSÃO CUMPRIDA: Os brasilienses da Oskalunga tiram onda a poucos metros da chegada
(Foto: Alexandre Cappi)

Mas prova que se preze só termina realmente depois que a última equipe conclui. Por isso, em Trancoso, minhas preocupações eram outras. Ajudei o paulista Darcio Alves, da Life Guard, a conseguir uma bike emprestada com outra equipe que já estava cortada. O câmbio traseiro de sua bicicleta fora arruinado pela lama, e o que ele comprou de um morador local era incompatível com sua relação, bem mais moderna. Assim, se virando como podia, a Life Guard foi a última equipe na classificação geral a completar a prova sem cortes – meus verdadeiros heróis.

Na Xingu, composta por competidores paulistas e gaúchos, o clima era de indignação. Marcelo Catalan fazia questão de me explicar repetidamente o motivo de sua revolta: “Vi um atleta na garupa de uma moto procurando um dos postos de controle. Isso não pode valer nem para os últimos”. O pior de tudo é que ele se referia a uma equipe que terminou entre as dez primeiras no ranking geral. A informação foi passada à organização e houve uma reunião para decidir o destino da equipe, que acabou absolvida por falta de provas.

A Selva era a surpresa da última ala. A equipe paulista é uma das melhores do Brasil, e neste Ecomotion eles sustentaram o título até a metade da competição, se mantendo entre as cinco primeiras. Sereno, sentado na área de transição e degustando um sanduíche sem a menor pressa, o capitão Caco Fonseca me colocava a par da situação. “Havia quatro caminhos possíveis para um trecho de bike de 50 quilômetros. Pelo visto, eu escolhi o pior, porque passamos oito horas enroscados na lama.” A seu lado, o atleta Marcelo Sinoca solicitava duas garrafas de Malzebier ao apoio. “Afinal ninguém é de ferro”, descarregou. Até o tcheco Pavel Paloncy, um gigante barbado de quase 2 metros de altura que integrou a equipe este ano, já se arrastava àquela altura. Aproveitando a parada prolongada da equipe, ele só se deu ao trabalho de afastar algumas frutas antes de esticar sua enorme carcaça sobre o plástico improvisado como toalha de piquenique. Eles ainda tinham uma longa jornada pela frente.

NO INTERIOR: O Ecomotion mostrou que a beleza do sul da Bahia não está restrita ao litoral
(Foto: Alexandre Cappi)

No dia seguinte, tomando café da manhã no hotel de Porto Seguro que serviu de base antes e depois da prova para imprensa, atletas e organização, ouço alguém da mesa do lado dizer em alto volume: “Cara, dá uma olhada nisso!”. Ele apontava para o lado de fora da vidraça do restaurante, onde Karen Lundgren chegava para a sua refeição matinal sendo carregada em uma bicicleta. A QuasarLontra conseguiu um heroico quarto lugar, com Karen cruzando a linha de chegada no ombro dos companheiros. Se na metade da competição ela já parecia estar usando uma palmilha de pregos, agora, com os pés totalmente enfaixados, não conseguia sequer tocar os pés no chão.

O tcheco Pavel era o próximo a se servir no bufê. Ainda vestindo o mesmo uniforme que usou durante toda a corrida, e com crosta de lama ressecada até no rosto, ele esperou tranquilamente, com seu ar de gigante gentil, para encher mais um copo de suco. Depois de sujeitar o corpo e a mente durante mais de cinco dias ao limite de suas capacidades, as pessoas reavaliam suas prioridades, pensei ao ver aquela cena. Para muitos competidores, o essencial ali passava longe de um bom banho quente – e até mesmo da vontade de chegar em primeiro lugar.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2011)







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