Mestre da sobrevivência

O corredor de aventura paulistano Rafael Campos não é “apenas” a maior referência de seu esporte no país. Ele é também um sobrevivente das maiores provações naturais e humanas que uma pessoa pode passar – a começar pelo Exército

Por Mario Mele

“NÃO TENHO DÚVIDA DE QUE FARIA tudo de novo”, diz o corredor de aventura paulistano Rafael Campos ao se lembrar dos oito anos em que serviu o Exército. “Acho que, hoje, seria uma bela colônia de férias para mim.”

Aos 37 anos, ele pode afirmar isso com a convicção de quem continuou superando perrengues extremosmesmo depois de se aposentar da carreira militar: nos últimos 15 anos, Rafael se transformouno maior nome da corrida de aventura no Brasil, com superações pessoais e títulos conquistados em praticamente todos os continentes. Só para citar alguns: foi campeão da Expedição Mata Atlântica (1999), bicampeão do Ecomotion Pro (2004 e 2009) e campeão do Brasil Wild Extreme (2009), além de terminar 2013 como líder do ranking brasileiro de corrida de aventura – sempre com sua equipe, a Quasar Lontra.

Mesmo sendo calejado em um dos esportes mais complexos que existem – e que exige conhecimentos bem acima da média em modalidades como mountain bike, canoagem e orientação –, Rafael não hesita em dizer que a sua base vem toda do Exército. Ele entrou nas forças armadas em 1995, no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR/SP), a unidade de ensino militar que forma oficiais aspirantes. Naquela época, nadava e corria, mas tudo o que sabia sobre sobrevivência outdoor havia sido aprendido durante as viagens em família. “Costumávamos acampar nas férias, e minha maior recordação é do clima de socialização nos campings”, diz.

No Exército, Rafael nunca “colou as placas” – como se costuma dizer quando um soldado trava e não sabe como agir. Privações de sono e provas de liderança foram testes que fizeram parte da ralação psicológica à qual ele era normalmente submetido. E passou com louvor em todos. Em 1995, foi agraciado com uma medalha militar de“melhor aluno da turma e combatente com mais aptidão física”.

Daí até se dar bem em provas com mais de 500 quilômetros de percurso – e que normalmente chegam a durar mais de uma semana –, foi apenas uma questão de lapidar técnicas específicas, como remada, ciclismo e navegação por mapas e bússolas. Os resultados não poderiam ter sido mais rápidos: logo em sua corrida de aventura de estreia, a Expedição Mata Atlântica de 1999, ele venceu. E, em 2006, entrou para a história das corridas multidisciplinares ao superar atletas consagrados da modalidade, como o norte-americano Paul Romero, para vencer os dificílimos 250 quilômetros daprova solo Between 2 Continents, Between 2 Oceans, na Costa Rica. A seguir, Rafael divide um pouco de sua sabedoria outdoor.

 

>> Coragem de arriscar

“Ganhei a primeira corrida de aventura de que participei porque, em grande parte, tomei uma decisão arriscada. Foi na região do Petar, no sul do estado de São Paulo, e eu e minha equipe não sabíamos exatamente onde estávamos.Resolvi traçar um azimute e rasgamos o mato. Depois de quatro horas caminhando fora da trilha, no meio do nada, racionando água e comida, encontramos o rio que estava no mapa. Em seguida encontramos o posto de controle, que era o nosso objetivo. Tivemos um pouco de sorte, talvez teríamos que passar a noite ao relento, mas acabou sendo nosso‘pulo do gato’. Ganhamos várias posições por conta disso e, no final, vencemos a competição.”

>> Conhecimento mateiro para pegar água

“Cerca de 70% do organismo humano é formado por água. É possível passar alguns dias sem comida, mas não sem água. Portanto você tem que conhecer meios de consegui-la. Numa prova na Nova Zelândia, rolou um trekking pela crista de uma montanha numa região fria. Só que água você só encontra em áreas mais baixas, como vales e ravinas. Com a noite gelada, se forma o orvalho, que é condensação da umidade. Então, antes de o sol sair, ‘secamos’ a vegetação com nossas camisetas e torcemos na caramanhola – uma técnica que aprendi no exército. A água ficou meio salgadinha, mas nos salvou.”


>> E.S.A.O.N

“Ao se dar conta de que está perdido, lembre-se desta sigla: ESAON.

E = Estacione. Mantenha a calma, porque ficar afobado só te roubará energia.

S = Situe-se. Avalie o redor. Tem água? Faz frio? É alto? Pense no ambiente e nos recursos que tem a sua disposiçãoe avalie se conseguirá passar algumas horas, dias ou semanas ali.

A = Alimente-se. O cérebro não funciona sem glicogênio, e você precisa mantê-lo em condições para pensar direito antes de ter forças para mover os músculos. Pense em maneiras de obter água e comida.

O = Oriente-se. Você tem mapa ou bússola? É hora de usá-los. Caso contrário, observe o movimento do sol e das estrelas para se localizar.

N = Navegue. Uma vez que você sabe em qual direção seguir, tente acompanhar sua evolução no mapa (caso tenha um). Noções de geografia são fundamentais nessa hora.”

 

>> Prevenir é melhor que remediar

“É mais importante antever uma situação de risco do que ter que sair dela. Pensando nisso, ao longo do caminho, preste atenção em referências como rios, cristas de montanhas e árvores maiores, que se destacam na vegetação. Fazer pequenas marcações em troncos com um canivete e quebrar galhos são hábitos que adquiri e que uso frequentemente em corridas de aventura. Funcionam como um tipo precaução, em especial em trilhas fechadas. Quando você está indo emum determinado sentido, a visão que se tem é bem diferente do que quando se segue no caminho inverso – e às vezes você tem que voltar. Por isso, olhe para trás de tempos em tempos e ‘dê umas fotografadas’.”

>> Salve a noite

“À noite, a navegação é dificílima, e a recomendação é parar. É quando uma rede portátil e um pedaço de plástico – que ocupam um espaço mínimo na mochila – passam a significar ‘conforto’ e ‘segurança’. Ao dormir em contato com o chão, você perde calor rapidamente, e as chances de hipotermia são grandes. Suspenso por uma rede, você também diminui as chances de ser atacado por animais, principalmente formigas e outros insetos que costumam ‘trabalhar’ à noite. E,coberto por um plástico, você ainda se protege da chuva.”

 

Agradecimentos às marcas The North Face, Columbia e Kailash.

* (Trecho de reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2014)