As belas virgens

Existe um grupo tentador de altíssimas montanhas que ninguém jamais conseguiu escalar com sucesso. Por que será? O alpinista Maximo Kausch desvenda o mistério


Por Maximo Kausch*


INTOCADAS: Na Concordia, local de confluência dos glaciares Baltoro e Godwin-Austen, dá para avistar algumas das montanhas mais altas do Paquistão, muitas jamais escaladas pelo homem


ENQUANTO OS TURISTAS ficam no maior empurra-empurra para subir o famoso monte Everest, há montanhas muito próximas dali que não recebem uma só visita durante o ano inteiro. De todas as 1.040 pessoas que tentaram o Everest em 2013 (691, aliás, conseguiram a proeza), poucas sabem o que acontece ao redor daquela região.

Somente quando se chega ao topo de uma grande montanha como o Everest que se percebe a vastidão do Himalaia. Ao se avistar de lá de cima um imenso e surpreendente mar de montanhas, é comum começar a se questionar se algumas delas ainda não foram escaladas pelo homem. É como observar um céu estrelado e começar a indagar se há vida extraterrestre em algum dos pontinhos brilhantes no firmamento.

Sim, há diversas montanhas bem perto do Everest que ainda não foram escaladas. Muitas dessas virgens já foram “provocadas” pelo homem, porém diversas equipes falharam ou morreram ao tentar atingir seu topo. Outras são intocadas porque tradições religiosas proíbem as pessoas de subi-las. E ainda há aquelas simplesmente muito difíceis de serem vencidas – e que, por esse motivo, continuarão repelindo montanhistas por muito tempo. Sempre existirá um fascínio em torno de todas elas. Ter a chance de pisar aonde ninguém chegou antes é algo mágico – e raríssimo – nos dias de hoje. Antes de tudo, porém, vem a questão: quais são, afinal, as montanhas virgens mais altas do mundo?

Para responder a essa pergunta, é preciso, primeiramente, entender o que é, de fato, uma montanha. Mesmo com tanta tecnologia e tantos satélites, a cartografia de montanhas continua parada no tempo e, em muitas cadeias montanhosas da Terra, ainda dependemos de levantamentos topográficos realizados 50 anos atrás. Fora a cartografia ruim, é difícil estabelecer uma regra que funcione em todas as cadeias do mundo, já que há critérios geológicos, históricos ou mesmo religiosos para designar uma montanha. Um bom critério que está sendo utilizado ultimamente pela UIAA (União Internacional das Associações de Alpinismo), a entidade máxima do esporte, é a proeminência. Esta é a diferença de altitude entre o cume de uma montanha e a parte mais baixa do colo entre ela e uma montanha mais alta. Confuso? Você ainda tem que dividir o resultado pela altitude do cume em questão e multiplicar por 100! Isso tem sido usado ultimamente para definir o que são montanhas independentes, cadeias ou sub-cumes. Que complicação.

Escolhido o critério, eu ainda separaria as montanhas virgens em duas categorias: (1) As que Deus deixa e (2) As que Deus não deixa. Religião parece ter muita influência sobre o que os alpinistas podem ou não escalar. Um belo exemplo é o Butão. Este pequeno país no sul da Ásia é bem peculiar: pouco menor que o Estado do Rio de Janeiro, possui boa parte de seu território salpicado por montanhas gigantes. Nesta nação, escalá-las é proibidíssimo – e o motivo é a religião. Butaneses veneram as montanhas como se fossem seus deuses e não curtem ver estrangeiros pisando e cravando equipamentos nelas. A confusão começou em 1983, quando algumas expedições internacionais tentaram ascender o Jichu Drake, com 6.794 metros de altitude. Ao que parece, uma série de tempestades iniciou-se após as escaladas. Enfurecidos por esses estrangeiros terem despertado a ira de seus deuses, os habitantes locais foram reclamar com o rei. Assim, em 1994, o monarca proibiu a escalada em montanhas com mais de 6.000 metros no Butão. Finalmente o esporte foi banido em 2004. Já na Índia, a região Sikkim, localizada no norte do país, quase vizinha ao Butão, considera a Kangchenjunga (8.586 metros, a terceira mais alta da Terra) uma montanha sagrada e exige que todos os alpinistas parem a escalada a dez metros do cume. O Nepal tem regras parecidas.

Para dar “água na boca” dos alpinistas, aqui vão algumas gigantes virgens ainda não escaladas por motivos religiosos:


PROIBIDO: Budistas tibetanos próximos ao Monte Kailash,
considerado morada dos deuses para essa religião, que
não permite escaladas até o cume da montanha


Monte Kailash

Não há como não começar a lista com o famoso Kailash, localizado inteiramente no Tibete e considerado o mais sagrado do mundo. Com 6.638 metros de altitude, o Kailash é importantíssimo para a religião bön – uma crença muito antiga que provavelmente precedeu o budismo – e também para o jainismo, o hinduísmo e o próprio budismo. Religiões à parte, o Kailash possui uma bela canaleta de neve que corta a face sul da montanha e que desperta o interesse de todos que amam escalar na região.

A história de montanhistas que se coçaram ao passar pelo Kailash data de várias gerações. Sabe-se que já no século 11 um poeta e iogue chamado Milarepa esteve no topo do Kailash. Porém essa versão pode não ser verídica, já que Milarepa também era conhecido por ser um monge voador… Em 1936, o explorador austríaco Albert Ticky passou pela região para escalar outra montanha e chegou até a arquitetar uma possível escalada ao Kailash. Intimidado ao ouvir as histórias da religião bön, ele desistiu.

Após a invasão chinesa em 1959, o Tibete se tornou uma “Região Autônoma” governada pela China. Mostrando total desrespeito às quatro religiões, em 1985 a China concedeu uma permissão para que um estrangeiro escalasse o Kailash. O sortudo foi o famoso alpinista tirolês Reinhold Messner, que mais tarde recusou a oferta devido à pressão internacional. Novamente, em 2001, os chineses repetiram o gesto pouco educado ao conceder outra permissão para o Kailash. Desta vez para uma expedição espanhola liderada por Jesus Martinez Novas – este, porém, ouviu os argumentos de Dalai Lama e desistiu da empreitada. Após tanta confusão, os chineses decidiram finalmente proibir qualquer tentativa de se chegar ao topo do Kailash em 2002.


Machapuchare

Com uma história similar à do Kailash, o Machapuchare – também conhecido como Fish Tail – é sagradíssimo para os nepaleses. Com 6.993 metros de altitude, ele é considerado uma das montanhas mais belas do mundo. No seu caso, houve várias expedições ali. A mais famosa foi uma expedição britânica em 1957, na qual os montanhistas pararam a poucos metros do cume em respeito às tradições locais. Não havia ninguém de fora verificando a equipe, porém o líder do time, Jimmy Roberts, jurou na época que isso aconteceu.


Gangkhar Puensum

Nem o Kailash ou o Machapuchare, no entanto, pertencem à lista das maiores montanhas virgens do mundo. A maior dentre estas tem incríveis 7.570 metros de altitude e se chama Gangkhar Puensum. É também a maior montanha do Butão e totalmente desconhecida dos estrangeiros. A boa notícia para quem quer pisar em seu cume pela primeira vez é que ela possui fronteira com a China – e é possível que Deus faça vistas grossas se você escalá-la pelo lado norte chinês. Em 1998, uma expedição japonesa fez exatamente isso e conseguiu uma permissão para escalar o colosso pela China. Mas a aventura foi cancelada de última hora para não criar confusão com o Butão.


MANTENHA DISTÂNCIA: O Machapuchare, de 6.993 metros,
é sagrado para os nepaleses, que proíbem até hoje expedições
nesse monte


Tongshanjiabu

Outra dessas belas e altas virgens é a Tongshanjiabu, de 7.207 metros, localizada também no Butão. Pouco se sabe sobre esse imenso maciço com três cumes principais (dois deles com mais de 7.000 metros). O Tongshanjiabu também faz fronteira com a China. Infelizmente a face voltada para esse país é extremamente difícil e exposta, por isso certamente ninguém tentará enfrentá-la por muito tempo.


SAI FORA: Nem pense em escalar o Gangkhar Puensum, no Butão


Kabru Norte

Se você não quer perturbar os deuses sagrados, muito menos enfezar a população local, ainda existem muitas opções de montanhas intocadas nas quais não é proibir escalar. Nelas, os obstáculos que impediram até agora os alpinistas de atingir seu topo são outros. Veja o caso do Kabru Norte, de 7.394 metros. Trata-se de uma grande crista com três cumes maiores, todos com mais de 7.300 metros de altitude. A crista é, na verdade, uma extensão do gigante Kangchenjunga, com 8.586 metros e o terceiro maior do mundo. Localizada entre a fronteira da Índia e do Nepal, esta montanha é envolta em mistérios. O próprio nome de seu cume principal é meio indefinido: é chamado de Kabru IV ou Kabru Norte. Para piorar a situação, uma expedição do exército indiano escalou um dos cumes, em 1994, e também chamou de Kabru IV o cume mais ao norte da montanha. Ao que parece, o cume mais alto ainda não foi alcançado e tem 7.394 metros de altitude. Este já foi tentado por uma dupla sérvia em 2004, mas uma série de avalanches forçou os alpinistas (Dragan Jacimovic e Milos Ivackovic) a abandonarem a tentativa.

O Kabru ficou famoso em 1935, quando o tenente-coronel do exército britânico Conrad Reginald Cooke atingiu o ponto mais alto que um ser humano chegara sozinho (recorde que durou 18 anos). Sem meios para medir a altura do cume, Conrad acabou escalando o segundo mais alto da crista. O recorde do britânico só foi superado em 1953 pelo austríaco Herman Buhl, que subiu sozinho e sem oxigênio o Nanga Parbat, no Paquistão. Herman era o Messner da época.


XÔ, MARMANJADA: "Pura" e intocada, a Gasherbrum V, que
pode ser vista ao longe nesta foto, está entre as 17 montanhas
mais altas da Terra


Labuche Kang III

Este imenso maciço de 14 quilômetros é um dos mais inacessíveis do Tibete. Seu cume principal, de 7.250 metros, já foi escalado em 1987 por uma expedição japonesa e tentado pela dupla de norte-americanos David Gottlieb e Joe Puryear no final de outubro de 2010. Porém uma queda da crista de neve instável acabou causando a morte de Joe. Eles eram conhecidos por escalar montanhas virgens, e a morte de Joe mudou tudo. O cume leste da montanha se destaca do cume central e é uma montanha independente. Esta ainda continua virgenzinha.


Karjiang

Já o Karjiang, de 7.221 metros, fica inteiramente no Tibete, muito próxima à indefinida fronteira com o Butão. Não muito longe dali (mais ou menos 25 quilômetros ao sudoeste), está o Gangkhar Puensum, a montanha virgem mais alta da Terra. Até agora só uma expedição holandesa tentou o Karjiang, em 2001, mas o mau tempo os forçou a ficar só com o cume mais baixo, no sul do maciço. Não existe uma rota fácil para se chegar ao cume, e todos os lados são extremamente expostos. O caminho mais acessível parece ser pelo lado nordeste da montanha e tem nove quilômetros de glaciar repleto de perigosas fendas no gelo.


ESPANTA LOCAL: O maciço de Labuche, nos Himalaias, é um dos mais acessíveis
do mundo


Gasherbrum V

Outro caso interessante entre as virgens é o Gasherbrum V, de 7.147 metros. Esta montanha faz parte de um imenso círculo que contém quatro das 17 montanhas mais altas da Terra. A aproximação até elas é uma das mais longas do mundo. Requer pelo menos dez dias, sendo que a primeira montanha só é avistada no oitavo dia de caminhada. Esses picos estão em uma região conflitante do planeta, pois não se sabe exatamente onde é a fronteira da Índia com o Paquistão. É uma briga eterna entre os dois países, que resulta na linha fronteiriça mais complexa do mundo. O grupo Gasherbrum tem seis cumes e está do lado paquistanês. Destes seis, o quinto e o sexto ainda não foram escalados (e têm, respectivamente, 7.004 metros e 7.147 metros).

Devido a tantos problemas só para poder chegar à montanha, estes dois cumes foram tentados várias vezes, porém nunca alcançados. Houve pelo menos quatro tentativas no Gasherbrum VI: em 1998, por uma expedição francesa, onde dois alpinistas acabaram morrendo e, no mesmo ano, por uma expedição dinamarquesa que chegou apenas a 6.200 metros de altitude. Em 2009, o casal de portugueses Daniela Teixeira e Paulo Roxo ficaram a 60 metros da crista final e, em 2010, uma dupla de jovens alpinistas da Eslovênia chegou a 30 metros do topo.

Com o Gasherbrum V, não foi diferente. O japonês Ryuichi Babaguchi e sua equipe atingiram o cume leste, a 7.006 metros. Mas, quando tentaram o cume principal, Ryuichi caiu numa fenda no gelo e morreu. Dois anos depois, uma dupla de franceses ficou a 6.900 metros. Em 2010 mais alpinistas tentaram a façanha novamente, desta vez um grupo de coreanos que também tiveram que dar meia volta a 6.600 metros de altitude devido ao mau tempo.


Ainda existem pelo menos outros 15 cumes com mais de 7.000 metros de altitude no Himalaia e na cordilheira de Karakoram que estão esperando a primeira ascensão. Mas é difícil dizer se são ou não montanhas independentes, pois parecem sub-cumes de montanhas já escaladas. Por exemplo, o imenso maciço Apsarasas, na Índia, conta com cinco cumes que ainda não receberam expedições. Porém eles não se enquadram na categoria de montanhas independentes de acordo com os critérios da UIAA. O mesmo acontece com um dos cumes do Broad Peak, no Paquistão, e um sub-cume do perigoso Annapurna, no Nepal. O certo é que ainda teremos pelo menos uma geração de alpinistas que poderá se dar ao luxo de escalar montanhas jamais tocadas pelo homem. E isso sem falar nos cumes virgens de 6.000 metros (há pelo menos 50 deles). E os de 5.000 metros, então?

* Maximo Kausch é alpinista e guia de montanha. Nascido na Argentina, mas criado no Brasil, tornou-se recentemente a pessoa que mais chegou ao cume de montanhas de altitude extrema no planeta e está atualmente finalizando seu projeto de escalar todas as montanhas com mais de 6.000 da região dos Andes

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de janeiro de 2014)







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