Nesta semana, o montanhismo brasileiro se despediu de Paulo Roberto Felipe Schmidt, o Parofes, depois de travar uma luta de quase três anos contra a leucemia. Parofes escreveu uma carta de despedida, em que revela alguns de seus momentos de luta e também mostra sua indignação com o sistema de saúde do Brasil.
NO MUNDO: Parofes e sua esposa, Lilianne, durante viagem pela Patagônia, em 2011
Por Paulo Parofes*
Descobri os primeiros sintomas quando Lilianne e eu estávamos em lua de mel na Patagônia, em dezembro de 2011. A princípio não dei muita atenção, pois nunca se espera sofrer de leucemia. Sempre pensamos ser algo mais simples como uma gripe difícil ou alterações hormonais para explicar as infecções indesejáveis.
Entretanto, em março iniciei uma bateria de testes para descobrir o que se passava, já que os processos infecciosos só pioravam. Havia acabado de passar por um segundo episódio de pneumonia em curtíssimo espaço de tempo, além de outras manifestações pelo corpo. O primeiro exame que pegou blastos no meu sangue periférico foi em abril de 2012, e passou despercebido pela clínica geral que me atendia. Terminei os testes físicos e estava bem em tudo, com uma anemia controlável, amena.
Em meados de maio, repeti os exames de sangue e me indicaram procurar um hematologista o quanto antes. Consegui uma consulta para o dia 25 de maio de 2012, aniversário da Lilianne, com a Dra.Patrícia Torigoe, a quem deixo meus profundos agradecimentos pelo atendimento sensacional. De seus lábios, escutei o que esperava, pois já havia estudado meu exame de sangue: eu tinha leucemia. Bastava definir qual era.
No mesmo mês de maio me internei pela primeira vez no Hospital Santa Paula para fazer tais exames e biópsia, que poderiam nos dar uma resposta sobre o nome da leucemia, e foi meu primeiro contato com o Dr. Sérgio Brasil, outra pessoa fantástica a quem não sei como agradecer plenamente.
Os resultados foram inconclusivos. A medula óssea estava hipoplásica, lenta, em um aparente estado de Síndrome Mielodisplásica. Como o estado ainda era de transição, aguardamos mais um pouco para ver como tudo se desenrolava. Neste mesmo tempo, fui encaminhado pela Dra. Patrícia a ver o Dr. Frederico, na época ncarregado do TMO do Hospital das Clínicas, para que ele me avaliasse como candidato a transplante de medula óssea.
Ele fez, e já marcou um segundo teste da medula óssea para a manhã seguinte. E assim me tornei paciente também do Hospital das Clínicas, Unidade de TMO, sob os cuidados da hematologista Dra. Maria Cecília.
Desde então, fui inserido como receptor de medula óssea no cadastro do REREME, que trabalha em conjunto com o cadastro de doadores de medula óssea, o REDOME. Isso aconteceu em outubro de 2012. No mês anterior, visitamos — eu e Lilianne — minhas irmãs no Rio de Janeiro e, duas semanas depois, elas vieram a São Paulo para realizarmos o teste de compatibilidade, a fim de descobrir se alguma delas poderia ser minha doadora. Negativo para as duas.
Na passagem de ano de 2012 para 2013, senti diversas alterações em meu corpo e decidi voltar ao hospital, temendo o pior. Isso se confirmou: meu estado de síndrome mielodisplásica havia se alterado para Leucemia Mielóide Aguda. Decidimos iniciar imediatamente o tratamento quimioterápico de indução, o que significaria uma internação por um longo prazo.
Esta primeira etapa foi difícil, e quase morri. Mas sobrevivi para contar a história. Passei a compartilhar com todos, publicamente, os melhores e os piores momentos, independentemente dos resultados. E continuei o tratamento.
Em março, um possível doador apareceu associado ao meu nome, e os testes para verificar a compatibilidade de um transplante foram iniciados. No dia 2 de junho de 2013, entreguei pessoalmente no laboratório do REDOME dois tubos com minhas amostras de sangue para realização do teste de HLA ampliado, exame o qual nunca obtive um retorno. NUNCA. Segui meu tratamento, e após todas as quatro consolidações, a leucemia voltou imediatamente. Tudo recomeçou. A partir daí, deixo esta história de lado e manifesto algumas observações.
AMOR: Parofes e sua esposa no hospital durante período de internação do montanhista
> Minha indignação
O mais importante para este país é a cerveja gelada, o futebol na TV e os reality shows inúteis que não adicionam nada à vida de ninguém. Só vendem o corpo como mercadoria, coisificando relações interpessoais.
Me enoja ligar a TV na esperança de ver alguma notícia e não conseguir, pois todos os telejornais priorizam o futebol, cujo tempo total do programa provavelmente deve ser a metade do tempo útil.
Nos intervalos, os comerciais de televisão priorizam carros novos cada vez mais velozes para uso urbano (não entendo como querem reduzir a quantidade de acidentes fatais no trânsito com verdadeiras máquinas assassinas nas mãos de condutores irresponsáveis), empréstimo de dinheiro a juros, programas de TV inúteis, como os já citados, dentre outros, como "Domingão do Faustão". Francamente, que atraso mental! "Esquenta" (é esse mesmo o nome dessa porcaria?), dentre tantos outros, como diversos comerciais de cerveja que sempre exploram o corpo da mulher brasileira para manipular o cérebro facilmente "manipulável" dos bêbados de plantão. E por aí vai…
Raramente, eu disse RARAMENTE, observa-se UM comercial de doação de sangue. Entretanto, nunca, NUNCA vi um comercial incentivando as pessoas a se cadastrarem como doadores de medula óssea, ou sequer explicando como é o procedimento para que não exista o medo mortal que hoje se tem, visto que aproximadamente metade dos cadastrados — aos quais é dada a HONRA de salvar uma vida — desiste de doar quando convocados. Isto é patético.
Nesse meio tempo, o governo baixa uma lei limitando o número de cadastros de doadores de medula óssea no país. Dá pra acreditar?
Fácil de entender, difícil de compreender. Com tantos cadastros ocorrendo, a chance de pessoas como eu encontrar um doador compatível aumentam e, como tudo é pago pelo SUS, um transplante de medula óssea (procedimento de ponta a ponta, com exames, quimioterapia pré-transplante, transplante e possíveis complicações que o paciente sofra após o transplante) é realmente muito custoso. Se muito é gasto com cada vida, então que se roube menos. Mas as mansões não ficarão prontas a tempo porque um João Ninguém atrapalhou tudo só porque tem câncer, não é mesmo?
Este é o nosso país, amigos. Abdico dele. Fiquei triste demais para continuar fazendo parte deste mundo hipócrita e sem valores, sem honra, sem respeito.
Breve recado para minhas irmãs, sobrinha, cunhados e cunhadas, minha sogra, avó Oma, tias e tios: Não lamentem minha morte. Lembrem-se: morrer faz parte da vida. É a única certeza que temos quando nascemos. Às vezes, ela chega cedo, às vezes ela chega tarde. Pra mim é fácil, pra vocês dói. Administrem as dores me celebrando como eu era. Vejam minhas fotos, façam piadas, mas não lamentem. Ajudem, por favor, a Lili. O início será muito difícil, eu sei.
Minhas mais sinceras desculpas à minha viúva Lilianne Schmidt. Prometi um produto e não entreguei; me perdoe. Em nosso casamento, eu chorei emocionado pois queria que minha mãe visse o acontecimento, queria que ela visse o filho dela se casando com você, mulher linda por dentro e por fora, de coração grande, inteligente, trabalhadora e compreensiva com minhas viagens pelo mundo, necessidades inusitadas de um aventureiro pleno. Obrigado por tudo!
Lembre-se, sempre te respeitei, sempre te amei, mas agora peço que recomece sua vida. Não sofra por muito tempo. Tens a vida inteira pela frente.
DEMOROU CERCA DE OITO MESES até conseguirmos ter acesso ao meu cadastro, vez que o único médico que pode acessar e verificar por novos possíveis doadores é o médico que me cadastrou no REReme, a Dra Maria Cecília. Infelizmente, na virada de 2013 para 2014, toda equipe de hematologia do TMO do Hospital das Clínicas foi trocada, e comecei do zero. Depois de muitos e-mails, brigas, ameaças de denúncias à rede televisiva (que de fato ningiuém se interessou: nem Band, nem Globo, nem SBT), o Dr. Sérgio conseguiu meu cadastro com o Dr Ulysses, novo chefe do TMO do Hospital das Clínicas.
Quando me deu a notícia, fiquei maravilhado. Entretando, dois ou três dias depois descobrimos que era tarde demais ter seis possíveis doadores. Minha Re-re-indução falhou, assim eu estaria inapto a fazer um transplante. Irônico, não? NÃO! Absurdo! Morosidade e Burocracia do SUS brasileiro, onde só interessa a quem rege desviar verbas, construi mansões e comprar carros importados…
*Paulo Roberto Felipe Schmidt
Síndrome Mielodisplásica/ Leucemia Mielóide Aguda
>>Motivo da morte: Morosidade do processo de testes e realização do transplante de medula óssea/ decisão inteligente do governo de cortar a chance de vida de milhares de brasileiros e estrangeiros que poderiam ter suas vidas salvas por um de nós. Desgosto com a nação.