Renascido das cinzas

Não foi apenas a empobrecida nação africana de Ruanda que deu a volta por cima com um projeto que treina jovens carentes para serem ciclistas profissionais em um país marcado pelo maior genocídio depois da Segunda Guerra. Por trás da saga do Team Rwanda, está a incrível jornada de Jock Boyer, estrela norte-americana da bike que seduziu uma menor, caiu em desgraça, mas conseguiu se reinventar nos rincões do continente negro

Por Bruno Romano

TOUR DA VIDA: O treinador norte-americano Jock Boyer ao lado do ciclista ruandês Adrien
Niyonshuti, que teve quatro irmãos mortos no genocídio que assolou seu país em 1994,
virou atleta do Team Rwanda e depois foi contratado por uma equipe sul-africana de ciclismo

(Foto de divulgação)


JONATHAN “JOCK” BOYER desceu sem freios a montanha mais íngreme de sua vida e, por pouco, não foi parar no fundo do precipício. Depois de abrir caminho para os norte-americanos no ciclismo profissional nas décadas de 1970 e 1980, de conhecer o mundo, as conquistas e a glória em cima da bicicleta, declarou-se culpado pelo abuso sexual de uma menor de idade, em 2002. Por um instante, ter sido o primeiro atleta da história dos Estados Unidos a cruzar a linha de chegada em um Tour de France, no ano de 1981, passou a ser uma linha menos importante em sua biografia. Cumpriu três anos de pena, sendo nove meses em regime fechado, e então precisou se reinventar. Porém, com a bike a seu lado, ele jamais se sentiu sozinho.


“O ciclismo é mais que um esporte, é o caminho para a reconciliação, para a resolução de conflitos e para levar a esperança não apenas a quem pratica esporte, mas a todos em sua volta”, diz Jock hoje, aos 58 anos, ao refletir sobre o Team Rwanda, equipe de ciclismo africana que fundou há sete anos – e uma das principais responsáveis por resgatar parte do orgulho de um país devastado por um dos maiores genocídios da história. Sem perceber, Jock também estava falando de si próprio.


Na “terra das mil colinas”, como esse verdejante país da África Oriental é conhecido, não é difícil falar de altos e baixos. O local escolhido por Jock para reconstruir a própria vida registra em sua história recente, em números oficiais, 800 mil mortos, em uma carnificina que durou 100 dias no ano de 1994. Em pouco mais de três meses, 8% da população de Ruanda foi dizimada em uma das maiores guerras civis da humanidade, movida por miséria e rivalidades entre as etnias tutsi e hutu. Atualmente Ruanda é vista com bons olhos por multinacionais e organizações filantrópicas que estão ajudando a transformar o país em um exemplo de recuperação no continente africano. Jock o visitou pela primeira vez em 2005 e, dois anos depois, se mudou definitivamente para o que se transformou na sua nova casa.


MESTRE: O norte-americano Jock Boyer, técnico da equipe ruandesa
(Foto: Alírio de Castro;
aliriodecastro.com)


“Nós começamos com o Team Rwanda em 2006 e, francamente, nos últimos anos tem sido incrível. O ciclismo se tornou o esporte número um aqui. Temos um campeonato nacional, o Tour de Ruanda, que está ganhando atenção de atletas renomados e da mídia estrangeira. Tivemos 3,5 milhões de espectadores no último tour, vibrando na beira das estradas”, conta ele sobre a prova que tem sua quinta edição confirmada para os próximos dias 17 a 24 de novembro. Enquanto isso, Jock já se movimenta para expandir o projeto para mais dois países próximos: Etiópia e Eritréia, localizados no turbulento Chifre da África.


PARCEIRAÇOS: O time ruandês (da esq. para a dir., Emmanuel, Nicoden, Obed e Jean)
ao lado do técnico Jock

(Foto: Alírio de Castro; aliriodecastro.com)


PAIZÃO: Jock cuidando de um pupilo
(Foto de divulgação)


MAS VAMOS VOLTAR UM POUCO no tempo. Como um atleta exemplar, pioneiro e dotado de um talento capaz de levá-lo não só a ser destaque nas principais voltas ciclísticas do mundo, como ao bicampeonato da duríssima Race Across America (1985 e 2006), ultramaratona de ciclismo de estrada que cruza os EUA e percorre 4.800 quilômetros, perdeu tudo para depois se reconciliar consigo mesmo e com o ciclismo no meio da África? A exemplo de tudo na vida desse ciclista, o início da reconstrução de si mesmo e da profissão envolveu ingredientes épicos. A começar pela mão amiga que lhe puxou do inferno: a lenda Tom Ritchey, nome fundamental na história do ciclismo mundial e atual dono da Ritchey Logic, conceituadíssima marca de componentes de bike. Antes de se tornar milionário do ramo e um mountain biker consagrado, Ritchey era rival de Jock nos tempos de competições juvenis, nos Estados Unidos.


“No fim da minha carreira, quando voltei da Europa para os EUA, me aproximei de novo de Tom e nos tornamos grandes amigos. Foi ele quem me trouxe até Ruanda. Nessa época [em 2005], Tom estava passando por um divórcio complicado, e eu por uma fase difícil da minha vida. Naturalmente, acabamos nos ajudando. Nós dois amamos ciclismo e viagens longas em cima da bike. Pedalamos juntos e conversamos muito naquela época triste”, relembra Jock.

Ritchey se recorda bem daqueles dias: “Eu tinha 46 para 47 anos e minha mulher havia me abandonado. Eu estava em busca de respostas, de encontrar uma maneira diferente de enxergar a vida. A oportunidade de ir para Ruanda e ver pessoas com corações muito mais partidos do que o meu, de testemunhar a história sendo mudada, em meio a uma verdadeira aventura na África, foi um acontecimento único para mim.”


O folclórico biker norte-americano, que sempre ostentou um bigodão cujo formato lembra antigos guidões de bicicleta, não se contentou em experimentar tudo aquilo sozinho. “Eu estava em um momento de perda de esperança na minha família, na minha vida e em mim mesmo. Ruanda me ajudou a encaixar as peças de outra maneira na minha cabeça. E eu me sentia feliz em dividir essas sensações com outras pessoas, entre elas Jock. Foi por isso que o convidei para ir para Ruanda ser o treinador da equipe nacional e se juntar a mim nessa mudança tanto exterior quanto interior.”


Pelas transformações “exteriores”, Ritchey refere-se às terras ruandesas, extremamente pobres (seu GNI per capita é de US$ 560, enquanto o do Brasil é de US$ 11.630), com desníveis geográficos que vão de 945 a 4.572 metros, repletas de “taxi-bikers” e jovens marcados pelas tragédias da década de 1990. “No início do projeto, Tom queria organizar uma corrida na África, e eu o ajudei. Lá era comum ver táxis movidos a pedaladas e adolescentes andando de bikes artesanais de madeira. Pensamos: ‘Esses caras têm talento!’. Nos meses seguintes, falamos com outros amigos e decidimos que, antes de tudo, eu deveria ir para Ruanda testar alguns atletas. Durante três meses cumpri essa missão. E acabei não voltando mais.”


Assim como Jock, os ruandeses têm um tipo físico magrela, propício a render grandes escaladores (ciclistas bons em subidas). As montanhas do país também ajudam no treinamento. Por essas e outras, não demorou muito para ele vestir a camisa do projeto. O sol nascente da bandeira nacional de Ruanda e do uniforme da equipe passou a representar um novo horizonte também para Jock: “Quando saí de casa, eu tinha 17 anos. Na época, ser um dos poucos norte-americanos no pelotão internacional não era fácil. O que estamos fazendo em Ruanda é parecido. Para eles, também não é nada simples. A estrada é dura, mas sei que meus atletas são ciclistas duros. Meu papel não é apenas incentivá-los, mas mostrar que podemos sonhar longe”. O amigo Tom Ritchey já havia sacado todo o potencial de Jock para servir de exemplo a jovens de um país devastado, pois acompanhara de perto – como fã, atleta e empresário do mercado de bikes – o caminho estelar que o colega abrira para o ciclismo dos Estados Unidos. “Jock provou que, sim, era possível”, diz.


NAS CURVAS DO RIO: Nas fotos acima, o Team Rwanda faz bonito no Tour do Rio em
2011 – a prova ciclística fluminense
(Foto: Alírio de Castro; aliriodecastro.com)


ENTRE AS MAIS IMPORTANTES conquistas de Jock, estão cinco participações no Tour de France, a mais famosa volta ciclística do planeta. Na década de 1980, ele competiu pela equipe francesa Renault-Elf-Gitane, ao lado de astros como Bernard Hinault, cinco vezes campeão do Tour e três vezes campeão do Giro d’Italia, e Greg LeMond, outra lenda do esporte. Jock conquistou 44 títulos como profissional e outros 88 na época de amador, além de representar a equipe nacional dos Estados Unidos 15 vezes na carreira. “Eu simplesmente estava fazendo o que tinha vontade na época. Se isso acabou encorajando outros atletas a seguirem no ciclismo, fico muito feliz. E eu sei que isso abre muitas portas para o Team Rwanda atualmente.”


À semelhança de seus pupilos africanos, Jock era um novato entre as feras da modalidade. Enquanto os ciclistas de Ruanda buscam seu espaço nos pelotões bem mais experientes de outros continentes, o norte-americano carregava o peso do pioneirismo e era até taxado de “excêntrico” no circuito profissional – foi, por exemplo, um dos primeiros vegetarianos no pelotão de astros mundiais. “Eu era mesmo um pouco diferentão. Sempre procurei alternativas novas, não aceitava simplesmente as coisas como me eram dadas.”


E até hoje ele continua assim, abrindo caminho e criando novidades onde ninguém costuma imaginar. A Federação de Ciclismo de Ruanda, órgão criado por iniciativa de Ritchey e Jock, já é referência de organização no continente africano. Com a ajuda de doações do círculo de amigos que a dupla cultivou no ciclismo profissional, de voluntários em diversas áreas (desde o treinamento até a saúde), e de outras entidades que acreditam no trabalho, o Team Rwanda representa atualmente o país em competições internacionais e, a cada ano, tem ganhado força. E não apenas em competições de estrada, mas também no mountain bike, incluindo participações em eventos importantes como a ultramaratona Cape Epic, na África do Sul, e a Swiss Epic, na Suíça.


Tom Ritchey
(Foto de divulgação)


“O time está crescendo. Recebemos cada vez mais convites para competir fora daqui. Temos 18 atletas principais e organizamos diversos training camps em busca de novos talentos. A equipe profissional, que recebe salários irrisórios para o nível internacional, mas relevantes para a média do país, treina pela manhã cinco vezes na semana, com sessões que variam de duas a cinco horas”, explica Jock. À tarde, os atletas têm aula de inglês, yoga e culinária, “para que possam comer corretamente, o que ajuda na preparação e na reposição de energia”, como define o treinador. “Tiramos o sábado de folga. Relaxamos e nos desligamos completamente da bike. Aos domingos, nos preparamos para a semana seguinte”, completa.


O trabalho de Jock, cuja dedicação extrema beira o sacerdócio, não para por aí. “Nós incentivamos os meninos a dizerem o que gostariam de aprender, e nos esforçamos para fazer acontecer.” Nathan Byukusenge, nascido em Ruanda e integrante da equipe, foi recentemente para os EUA aprender a cozinhar. Rafik Jean de Dieu, outro destaque do Team Rwanda, já está trocando de função no time: acabou de voltar de dois anos na Suíça fazendo um curso profissional de mecânico de bikes. Ele será o futuro mecânico principal da equipe e viajará o mundo cuidando das bicicletas.


“O que acho muito importante é que os atletas mais velhos, que fazem parte do projeto desde o início, estão agora assumindo cargos na equipe, como massagistas, mecânicos e até treinadores. Esse é um projeto que nós queríamos que um dia se tornasse sustentável, sem a necessidade de nossa presença. Isso agora parece mais perto da realidade”, diz Jock. “Todo nosso esforço e dos atletas muda muita coisa na vida de muita gente. Muda a vida dos ciclistas e de suas famílias, mas muda a comunidade também, pois a equipe tem um impacto grande na auto-estima do país.”


Rafiki foi um dos primeiros ciclistas profissionais de Ruanda, ao lado de Adrien Niyonshuti, duas talentosíssimas descobertas do norte-americano. Rafiki não teve dúvidas ao escolher o nome de seu filho: Jonathan, em homenagem ao treinador. Adrien tornou-se o primeiro atleta ruandês a competir em uma Olimpíada, ao disputar a prova de mountain bike cross-country nos Jogos de Londres 2012.

A história de perseverança, luta e solidariedade de Jock e do Team Rwanda tem atraído admiradores em muitos países, incluindo os Estados Unidos, onde durante anos o treinador foi visto como uma pária após ser condenado. Recentemente o documentarista norte-americano Thomas Johnstone decidiu levar a saga de Jock para as telas, no filme Rising from Ashes (Renascido das Cinzas, numa tradução livre). O documentário, lançado em 2013, levou sete anos e US$ 800 mil para ser concluído. É aplaudido de pé em festivais mundo afora, entre eles o renomado Telluride Mountainfilm Festival, que acontece no Colorado, e já recebeu 17 prêmios de cinema só nos EUA. “Em 2005 pedalei em Ruanda com Ritchey, Jock, Dan Cooper [produtor executivo do filme e co-fundador do Team Rwanda] e outros apaixonados por ciclismo. Em um jantar, depois de falarmos bastante sobre o Team Rwanda, eles viraram para mim e me sugeriram fazer o filme. Não demorou muito para eu aceitar”, relembra.


No início, o plano de Thomas era focar o roteiro nos atletas africanos. No entanto, outra jornada, tão incrível quanto à de Ruanda e seus ciclistas, fascinou o diretor: a transformação de Jock ao longo da implementação do projeto. Após passar um tempo com a equipe na África, ficou nítido para o documentarista que Jock estava ajudando os jovens ruandeses tanto quanto eles estavam ajudando Jock. Os dois lados dessa surpreendente saga estavam renascendo das cinzas simultaneamente. “Todos estavam buscando esperança e sentido no projeto do Team Rwanda, e isso se tornou o ingrediente mais forte em toda a filmagem”, diz Thomas.


OFF-ROAD: Grande nome do Team Rwanda, Adrien compete também em mountain bike
(Foto: Frank Franklin II)


RUANDA FOI FUNDAMENTAL para Jock reencontrar a relação certa de marchas na sua vida. Porém ainda hoje é difícil para ele relembrar o episódio turbulento que desgraçou sua vida anos atrás. “Todos nós cometemos erros. Não temos que buscar desculpas, mas aceitação. Acho importante que, quando alguém tem noção de que cometeu um erro, de que foi responsável por falhas sérias, que se reponha, se reavalie e vá em frente”, conta.

Com a condenação por abuso de uma menor, em 2002, Jock viveu o início do período mais difícil de sua existência até hoje: “Não gosto muito de falar sobre isso. Eu ultrapassei meus limites com uma menina. Fui para a cadeia por nove meses por comportamento inadequado. Assim que saí de lá, decidi que precisava mudar: não queria ser uma pessoa destrutiva, mas, sim, alguém capaz de causar impactos positivos na vida dos outros”. O ex-ciclista tem total consciência de que o escândalo prejudicou sua evolução como atleta e pessoa. Mas também consegue perceber que esse erro pode, mesmo que indiretamente, tê-lo levado a novos rumos, muito mais gratificantes.


Apesar de não conseguir pedalar tanto quanto gostaria, seu trabalho como treinador, diretor e mentor do Team Rwanda permite a Jock levar sua bike para a estrada ou trilhas pelo menos cinco vezes na semana, por cerca de 1h30: “Para mim é uma forma de deixar a mente voar, libertar a imaginação e simplesmente relaxar. Esse sempre foi um ponto chave na minha vida, por isso amo pedalar”.


Jock está casado há um ano e meio com Kimberly Coats, norte-americana que foi voluntária do Team Rwanda quatro anos atrás. “Trabalhamos bastante tempo juntos e percebemos que éramos uma dupla muito boa. Temos uma relação ótima nesse sentido. Nós simplesmente nos divertimos demais aqui. Ela também pedala e nos acompanha em diversos eventos da equipe. Ajuda-nos na parte social, de mídia, relações públicas e logística. Para falar a verdade, ela faz praticamente um pouco de tudo, até cozinha. Tudo o que for preciso para manter o time unido”, conta, com um tom de voz muito mais vibrante e solto do que quando relembra as manchas do passado.


Ruanda ainda é um país bastante defasado em relação a tecnologias e comunicações. Há pouco acesso a TV, a conexão de internet é ruim e praticamente não se escuta rádio. Nas viagens com a equipe, Jock gosta de ler mais livros do que jornais. “Eu não sigo notícias com muita frequência”, diz, ainda que tenha acompanhado as denúncias de doping que abalaram o esporte que tanto ama. Neste ano, viu a história que ele começou a construir com suas próprias pernas ser manchada por um dos escândalos mais emblemáticos do esporte. Lance Armstrong, que teve seus sete títulos do Tour de France retirados após confirmação do uso de substâncias proibidas durante a competição, já havia apoiado publicamente as ações de Jock Boyer e Tom Ritchey em Ruanda. Lance mostrou-se entusiasmado com tudo o que a dupla de veteranos estava criando por meio da bike.


“Com certeza o esporte vai superar a má fama do doping. O que aconteceu com Lance foi trágico para o ciclismo profissional, mas de certa forma necessário para deteriorar todo o sistema e incentivar uma nova ordem”, acredita Jock. “Eu não fiquei exatamente surpreso com a notícia sobre Lance, mas me espantou muito a quantidade de inimigos que ele e todos os envolvidos em seu time criaram. Também me surpreendeu o número de pessoas envolvidas nesse esquema. Ele levou todo mundo para o mesmo barco e isso, sim, é muito ruim”, completa.

Com a responsabilidade de ensinar para todo um país o que é o ciclismo profissional (e limpo), Jock toma seus cuidados quando debate o assunto com seus meninos: “Temos de olhar para o futuro e acreditar em provas livres de doping. Para nós isso é ótimo, pois os africanos não têm acesso a esse tipo de drogas e tecnologia, e podem se sair muito bem quando o esporte se limpar totalmente”.


Três décadas atrás, quando Jock fazia parte da elite do ciclismo, o EPO (hormônio usado para melhorar a performance) ainda não era tão popular e os ciclistas “turbinados” costumavam abusar da cortisona e dos esteróides. Eram drogas, no entanto, muito mais maléficas ao organismo em um curto período, e seus benefícios não eram tão absurdos quanto o das substâncias de hoje, que transformam atletas em máquinas que aguentam pedalar com força durante dias e dias sem pifar. “Para nós era mais fácil dizer não do que na era de Lance”, diz Jock.


No Team Rwanda, que apesar das doações está longe de ser um projeto endinheirado, não há grana para se comprar substâncias caras como EPO, muito menos espaço para alguém querer trapacear. “Isso significaria expulsão imediata da equipe”, resume Jock.


VUELTA AFRICANA: Jock socializando com os competidores de seu Tour de Ruanda,
o maior evento ciclístico do país
(Foto de divulgação)


UMA CENA EMOCIONANTE foi presenciada pelo diretor de Rising from Ashes durante as filmagens do Tour de Ruanda, em 2008. Uma cena que, por si só, resume as lições de vida que sustentam a equipe. Thomas conta que estava filmando à frente do pelotão destacado da competição quando eles começaram a diminuir o ritmo, ao mesmo tempo em que a torcida ia à loucura. Ninguém entendeu muito o que os atletas estavam fazendo. De repente, trançaram os braços uns nos outros e cruzaram a linha de chegada como um só corpo. “Naquele momento, mandaram uma mensagem para todo o país de que a bike era uma ferramenta libertária e de união, e que aquela era a nova definição de vitória para seu povo”, relembra Thomas.


E é exatamente esse o principal objetivo da nova fase da vida de Jock: usar o esporte para combater os conflitos sociais – sejam eles de Ruanda ou de outros países. Atualmente um novo projeto tem feito os olhos do treinador brilharem ainda mais. Buscar novos talentos da bike, e treiná-los para serem campeões, nas vizinhas Eritréia e Etiópia. “Nossa intenção é ampliar os conceitos do Team Rwanda para nações que tiveram algumas de suas fronteiras fechadas por 50 anos e que começam a se abrir só agora”, diz ele, que precisará se dividir entre os três países. A ideia é transportar tudo o que deu certo em Ruanda para lá. O projeto da Etiópia já está confirmado para começar em 2014.


CONTRARRELÓGIO: Adrien em cena do documentário Rising from Ashes, dirigido por
Thomas Johnstone
(Foto de divulgação)

Jock já está trabalhando com as federações dessas duas nações para construir centros de treinamentos e ensinar o que está dando certo em Ruanda. Os contratos serão válidos para os próximos três anos, até a Olimpíada do Rio, em 2016. “Seria maravilhoso ver atletas de Ruanda, Etiópia e Eritréia nos Jogos”, diz ele. Para quem conheceu a fama no esporte logo cedo, depois se jogou no fundo do poço e pedalou duro para sair do buraco, Jock não está para brincadeiras. Ruanda foi até agora a coisa mais difícil que encarou na vida. E também a mais gratificante. Diante de tantas superações, ele não titubeia em revelar um de seus grandes sonhos: levar a primeira equipe totalmente africana, e negra, para competir um dia no Tour de France. Com voz animada e firme de quem sabe do potencial de seus atletas em subverter a realidade e abrir novos horizontes, Jock finaliza a entrevista com uma frase certeira: “Tenho certeza de uma coisa: isso tudo que estamos vivendo aqui é só o começo”.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de novembro de 2013)







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