O tanzaniano Simon Mtuy convidou amigos ultramaratonistas para conhecer os arredores do Kilimanjaro, onde nasceu. A experiência virou filme e tem ajudado o atleta a passar adiante lições preciosas de como preservar um dos mais belos cartões-postais da África
Por Maria Clara Vergueiro
O PEQUENO VILAREJO DE MBAHE, na Tanzânia, país da África oriental, é habitado por pessoas que vivem com os olhos voltados para o céu. Localizada na base do Kilimanjaro, a maior montanha do continente, Mbahe fica na região de Marangu e raramente aparece nos mapas. Exatamente aí nasceu Simon Mtuy, figura popular daquelas bandas, graças não apenas à simpatia que acompanha um larguíssimo sorriso, mas também ao fato de ser ele um dos maiores colecionadores de cumes do Kilimanjaro: a conta já passa da casa dos 500. Guia querido e respeitado, Simon é ultramaratonista há 15 anos (com dez participações na Western States 100, ultramaratona mais antiga do mundo, nos Estado Unidos) e já levou 4.500 pessoas para conhecer o topo da África, incentivando o turismo local. Por causa dessa montanha, a Tanzânia recebe anualmente 45 mil andarilhos, o que gera em média 200 mil empregos e rende cerca de US$ 110 diários em taxas pagas para entrar no parque nacional que abriga o cartão-postal de quase 5.900 metros. Nascido em uma família de dez filhos (cinco homens e cinco mulheres), Simon passou toda a infância brincando nos arredores do Kilimanjaro, onde ele corria com os irmãos aos domingos, depois de trabalhar na terra a semana inteira sob o olhar vigilante do pai, para quem “a escola não tinha muita importância”. “Mais tarde, meu pai quis que eu me tornasse policial, mas não era a minha. Sonhava em fazer algo mais atlético, usar meu corpo de forma mais produtiva”, conta Simon. Em 2004, um de seus irmãos, Joachim, morreu vítima da AIDS, doença que atinge cerca de 15% da população do país. De repente, ele ficou responsável por sustentar os três sobrinhos. Embalado pela perda do irmão e pela necessidade de cuidar da educação das crianças, Simon, que àquela altura já era íntimo da montanha e dono da própria agência de turismo especializada, resolveu cravar um recorde e, ao mesmo tempo, angariar fundos. Escreveu seu nome no Guinness, o livro dos recordes, ao se tornar o homem mais rápido na montanha mais alta da África, com a marca de 8 horas e 27 minutos. Geralmente se leva cerca de sete dias para completar o mesmo percurso da base até o topo, parando para conhecer os cantos mais bonitos. O feito de Simon foi superado apenas em outubro de 2010, pelo catalão campeão do mundo de corrida de montanha Kilian Jornet, o que enche o tanzaniano de orgulho. “Fiquei muito feliz de conhecer o Kilian, um jovem atleta querendo bater meu recorde. Acredito que a marca dele (7hrs14min) vá permanecer por muito tempo, porque foi uma excelente performance”, diz Simon, que ajudou Kilian em toda a logística.
ETERNAMENTE EMPENHADO em chamar atenção para as comunidades que circundam a base da montanha – sua agência, a SENE (abreviação de Summit Expedition and Nomadic Experience), atua diretamente no trabalho de desenvolvimento sustentável da região –, Simon teve uma ideia recente que acabou virando filme. O tanzaniano reuniu um time de ultramaratonistas amigos para dar, pela primeira vez na história, uma volta completa na base do Kilimanjaro, em oito dias de corrida e 258 quilômetros de trilhas que passam por diversas vilas e paisagens distintas. “Não era para ser um ‘evento’, mas uma oportunidade de compartilhar experiências locais com esses amigos. O aspecto social e sustentável veio naturalmente, ao longo do percurso”, conta ele, que colocou gente como a atleta norte-americana de trail running Krissy Moehl em contato direto com sua terra natal. A moça virou sua fã. “Existe uma preocupação em como cultivar a terra sem impactar a montanha ou a vida das pessoas de lá. Simon tem feito um grande trabalho, transmitindo as lições de como elas podem manter os recursos disponíveis ali”, avalia a corredora, vencedora da edição de 2009 da Ultra-Trail Du Mont-Blanc.
Acostumados a ver turistas pelas janelas dos jipes usados em safáris, os tanzanianos puderam encarar os visitantes ultramaratonistas bem de perto. “Foi mais um turismo cultural, que promoveu a interação humana, do que uma corrida de longa distância selvagem”, diz Simon. Na cola de Krissy e dos outros atletas, o diretor Andrew King integrou a caravana ao redor do Kilimanjaro e registrou tudo com sua câmera, o que resultou no documentário Mountain of Greatness, algo como Montanha Majestosa em português, tradução literal de “kilima” e “njaro”. O filme foi lançado em março na primeira edição do Trails in Motion Film Festival, recém-criado festival de cinema na África do Sul essencialmente voltado para a corrida de montanha. Em outubro, Simon promove uma corrida em etapas que fará a mesma circunavegação realizada por ele e seus amigos. Não é uma competição, alerta o guia, mas uma oportunidade de se fazer esporte e ecoturismo de verdade ao redor da montanha, com estrutura e boa companhia. O número de participantes não vai ultrapassar 18, distribuídos em até quatro grupos menores, para garantir que pessoas de diferentes níveis fiquem juntas e para diminuir a complexidade logística. Quem quiser participar da Kilimanjaro Stage Run, como está sendo chamada, precisa desembolsar US$ 2.125, quase uma pechincha para oito dias com toda a logística inclusa. De brinde, vai a simpatia de Simon, o homem que conhece cada curva do Kilimanjaro e sabe retribuir, como ninguém, todo o ensinamento que existe na troca silenciosa entre homem e natureza.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2013)
JOIA DA ÁFRICA: Trekkings alucinantes esperam turistas no Kilimanjaro, na África
(Foto: Corbis)
FESTA: De cima para baixo, Krissy e Simon; aulas de sustentabilidade e corredores nos
arredores da montanha
(Fotos: Jake Zmrhal)