O britânico Graham Hughes foi o primeiro homem a pisar em todos os países sem tomar avião ou dirigir seu próprio carro

Por Bruno Lazaretti*

Exatos 1.461 dias após cruzar o rio da Prata da Argentina para o Uruguai e iniciar a viagem de sua vida (subtraindo de cara dois países da lista de 201 do mundo todo), o britânico Graham Hughes estava de volta a Liverpool, sua cidade natal. As últimas semanas haviam sido especialmente difíceis: Graham teve que sair do Sudão do Sul, último país de sua lista, pela fronteira com Uganda, depois passar para a Etiópia, em seguida Egito, Turquia, Grécia, Itália, França e, por fim, Inglaterra. Essa última aventura de postos de fronteira, ônibus africanos e hoteis meia-boca foi autoimposta, como conta o próprio Graham, para manter o “espírito de aventura” – o Sudão do Sul havia sido o 201º país em que colocou os pés, então ele poderia muito bem voltar para Liverpool de avião. Mas o ruivo viajante tem um certo senso de humor masoquista e, afinal, o que eram mais sete países para quem passou os últimos quatro anos na estrada?

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Sozinho e a bordo de uma van pela gélida Islândia

No dia 22 de dezembro de 2012, Graham estava em casa de novo, entre pints de cerveja, amigos e festas. Ele havia sido a primeira pessoa do mundo a conhecer todos os países do planeta sem tomar um só avião, sem usar transporte particular e com um orçamento de apenas 100 libras (cerca de R$ 310) por semana. Mas talvez o mais espantoso de sua viagem tenha sido o transbordante senso de humor do inglês, que perdurou mesmo quando sua canoa furada começou a afundar no caminho para Cabo Verde, ou quando um policial ameaçou prendê-lo em Kampala, capital de Uganda, porque ele estava sentado no corredor do ônibus, ou aquela vez em que foi de fato preso no Congo por entediados policiais de fronteira.

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Essas e outras histórias estão registradas no site da expedição em hilário inglês britânico e riqueza de detalhes. Ainda assim, quando Graham enviou um e-mail ao Guinness Book of Records no dia 8 de janeiro de 2013 pedindo o reconhecimento de seu feito, recebeu um espantoso “não” como resposta. Ele havia cruzado a fronteira para a Rússia ilegalmente – atravessando o rio Narva, na Estônia, e evitando os postos de fronteira “soviéticos” –, portanto o Livro dos Recordes não emitiria seu certificado. Diante da frustração, Graham fez o que qualquer um faria: remodelou toscamente o site da expedição, rabiscando com o Paintbrush a mensagem “I did it” [Eu consegui] na página inicial e espalhando piadinhas sobre si mesmo em seus mais recentes posts. Em seguida, respirou fundo, arrumou a mochila outra vez e enviou um pedido de visto à embaixada da Rússia. O inglês teimoso respondeu às perguntas da Go Outside, após uma cansativa troca de emails e sumiços sem fim.

GO OUTSIDE: Em algum momento da expedição você olhou para trás e disse: “Esta ideia toda é idiota”?

Claro, todos os dias eu me perguntava: “O que diabos estou fazendo aqui?”. Mas sou uma pessoa muito determinada. Todos nós temos fantasias de voltar no tempo e enfiar um tapa na nossa própria cara, mas tenho que admitir que a expedição foi uma boa pedida. Bom trabalho, “eu” mais novo!

Arrependimentos?

Se você tivesse feito essa pergunta antes de eu terminar a jornada, eu conseguiria te descrever uma longa lista, mas no fim tudo deu certo. Então não: o fim justificou os meios!

Você cruzou com alguma cultura ou estilo de vida que mudou o seu jeito de enxergar o mundo?

Não. Sempre amei este nosso planeta maluco – agora eu só amo um pouco mais.

Qual é o tamanho do mundo?

É um pontinho de vida incrivelmente pequeno em meio a um oceano de morte fria e escura. Precisamos parar de ver nosso planeta como algo grande demais para afetarmos, vasto demais para arruinarmos e complexo demais para salvarmos.

Graham na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro

Qual foi o mais recente aprendizado que teve em sua viagem?

Não existe prêmio para segundo lugar.

Complete a frase: “Sempre carregue um…”.

Chapéu! Especialmente se você for ruivo.

Como foi sua passagem pelo Brasil?

Antes de começar a aventura, voei até o Rio de Janeiro, depois São Paulo. Já durante a expedição, dei um pulo em Boa Vista, em Roraima, no meu trajeto entre a Venezuela e a Guiana. Mas antes disso tudo já tinha ido ao Rio de Janeiro dez anos atrás, quando a seleção brasileira ganhou a Copa do Mundo pela quinta vez. Foi a melhor festa de todos os tempos!

Piores ônibus do mundo: Bolívia, Índia, Etiópia ou nenhum dos anteriores?

Os ônibus Greyhoud, nos EUA [trata-se de uma companhia norte-americana, tipo uma Cometa de lá]. Sério, eu subiria feliz da vida nos ônibus desses outros três países outra vez, pelo menos ali ninguém me tratava como alguma coisa que eles rasparam da sola do sapato.

Existem no mundo lugares inapelavelmente podres, ou a beleza está nos olhos de quem vê?

Não é justo falar que um país inteiro é podre – nem uma cidade. Uma cidade feia pode estar cheia de gente linda, e uma cidade linda pode estar cheia de canalhas. Agora, se existem cidades horríveis cheia de canalhas, eu (graças a Deus!) não encontrei em minha viagem.

Que países você revisitaria com certeza?

Todos! No topo da lista: Seychelles, Palau, Madagáscar, Etiópia e Irã. Algumas recomendações: Palau é um dos últimos paraísos tropicais intactos do mundo, imperdível. A Etiópia é uma maravilha – a comida, o clima, a história, o povo. Agora, se quiser ver animais como em nenhum lugar do mundo, recomendo Madagáscar. E, se você está atrás de aventura, a Bolívia.

No Egito

Você não se sentiu mal de sair correndo de país em país em vez de aproveitar seu tempo em cada lugar? Não foi uma viagem meio superficial?

Não! Em alguns países eu passei semanas (se não meses). Seja como for, nenhum desses países vai desaparecer. Bom, talvez com exceção das ilhas de Tuvalu, que estão afundando por causa do aquecimento global. Ainda assim, eu voltarei lá!

RODADO: Da esq. para dir., a partir de cima, Graham no Afeganistão, Austrália, Papua,
Eritreia, Macau, Egito, Sudão, Tailândia e Tibete

Onde as pessoas são mais felizes?

Onde a distância entre os ricos e os pobres é menor.

Existem países onde as pessoas são simplesmente infelizes?

Talvez não “simplesmente”, mas podemos dizer “surpreendentemente” infelizes. Alguns países europeus, incluindo o Reino Unido, têm tudo a seu favor: prosperidade, liberdade, infraestrutura, eleições livres e justas, imprensa livre, educação pública, saúde pública – e, contudo, as pessoas ainda resmungam. Não tenho dúvida de que essas pessoas seriam mais felizes se vissem um pouquinho do resto do mundo.

Depois de rodar o planeta, enfrentar burocratas e encarar as várias facetas da humanidade, como você se sente a respeito de nosso futuro?

Muito positivo. Eu não acredito que os problemas do mundo sejam intratáveis.

Você foi mal recebido em algum lugar?

Não quero soar repetitivo, mas de novo, nos ônibus Greyhound nos EUA! Fui destratado e humilhado. Juro que me senti mais bem-vindo em Cabo Verde, e olha que eles me jogaram numa cadeia por seis dias!

Depois de visitar lugares como o Vaticano, Mônaco e San Marino, como você se sente sobre o conceito de estados soberanos? É uma bobagem?

Pelo contrário. Acho que, se as pessoas querem se autodeterminar como um Estado, é motivo o suficiente para que elas sigam seus desejos. Por outro lado, acredito que a ideia de “independência” é bobagem – nenhum Estado é realmente independente. Estamos todos juntos nesta vida.

Você alguma vez sentiu que iria morrer e nunca iriam encontrar seu corpo?

Sim, quando tentei entrar em Cabo Verde em uma canoa furada!

Onde presenciou a globalização em toda sua glória?

Cara, você pode andar por uma estradinha de terra por dois dias no meio da África Central que vai encontrar uma barraquinha vendendo Coca-Cola. E o vendedor provavelmente estará vestido com uma camisa do Liverpool. Não vejo isso como um problema, contanto que não rebaixe ou vandalize a cultura local – da maneira que, por exemplo, a arquitetura moderna faz.

Há um entendimento de que a maioria dos países que faz fronteira com outros tem algo em comum, seja a paisagem, a cultura ou o povo. Você lembra de algum lugar que contrariou completamente essa noção?

A mudança cultural mais chocante de que me lembro foi quando peguei um barco de Sulawesi, na Indonésia, para Papua, que também faz parte da Indonésia. A paisagem, a cultura, as pessoas… sério, não tinha como ser mais diferente, e isso porque estamos falando de um mesmo país. Eu sei lá como o governo de Jakarta [capital da Indonésia] consegue manter satisfeitos tanto os muçulmanos ultraconservadores do norte de Sumatra quanto os indígenas que vestem cabaças sobre o pênis na Papua, os chamados penis coats.

Por que você acha que sua empreitada é vista por alguns como loucura? O mundo é assim tão perigoso?

Nós temos medo porque o medo vende – vende jornais, candidatos políticos, vende armas e guerra. A maioria das notícias é infeliz, o que é até compreensível. “Nada horrível aconteceu hoje no Butão” não é uma manchete vendável. Mas, na minha experiência, o mundo não é tão perigoso. Eu não fui atacado, ferido, assaltado ou roubado em nenhum dos países do mundo. A grande maioria das pessoas que conheci, na verdade, tentavam me ajudar. Não sou paranoico, não tenho medo. Sou capaz, determinado e esperto – na minha cabeça, loucura é desperdiçar seus talentos natos e não fazer nada que você curta de fato.

Qualquer um pode fazer o que você fez?

Teoricamente, sim, mas acho que, para isso, é preciso ter uma certa personalidade.

Você conheceu zilhões de pessoas em sua jornada. Que personagens ficarão para sempre na sua memória?

Tantos! Mehrdad, um cara que me hospedou na República Dominicana, era um sushiman iraniano. E teve o Eric, um francês maluco no Cairo que batia os punhos na mesa e gritava: “Eles são pêêixes! Eles não têm poesia!” (Zey are feishhh! Zey ave no poetry!) quando discutíamos a habilidade dos golfinhos em se comunicar. E Tatayo, o único chefe tribal branco do Gabão, que me levou para a floresta e me deu casca de árvore alucinógena. Atheer, o único palestino ateu que vi na vida. E o cara no bar em Hong Kong que, depois de considerar por um largo tempo em silêncio o meu dilema de haver visitado 197 países e só ter outros quatro para terminar, mandou sua ponderada solução aos meus problemas navais: “Cara, e por que você não voa simplesmente?!”.

Na África, as crianças realmente correm atrás do seu carro sorrindo e gargalhando toda vez que você passa, que nem nos filmes?

Sim. Às vezes eles jogam pedras também.

Onde você fez sua melhor refeição?

Jayapura, em Papua, na Indonésia. Lula recém-pescada em um molho agridoce. Derretia na boca.

Qual foi seu melhor trago na viagem?

O rum Takamaka, nas Seychelles. Tem gosto de marshmallow alcoólico.

Qual foi o momento mais poético da expedição?

Em uma balsa noturna de Wewak a Madang, na Papua-Nova Guiné [país independente ao lado da Papua indonésia]. Sentei-me na ponta do convés, e uma tempestade de trovões explodia silenciosamente na boca do rio Sepik à minha direita, enquanto o vulcão da ilha Manam à minha esquerda emitia um vago brilho vermelho no seu pico. No meio, o céu mais estrelado que vi na minha vida. Foi mágico.

(*Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2013 e atualizada em maio de 2021)