De peito aberto

Por décadas visto como um esporte “menor”, o bodysurfing, ou surf de peito, consolida seu espaço no outside e pode até ganhar um campeonato da modalidade no Brasil


Por Mario Mele


CURTIÇÃO: O paulista Rogerio Schefler pegando onda em Pipeline do jeito que mais gosta
(FOTO: Rogerio Schefler)


QUANDO UM PAR DE NADADEIRAS é seu único equipamento para pegar ondas, aceite um fato: você sempre será a base da pirâmide hierárquica do outside. Como o surfista e videomaker californiano Keith Malloy costuma dizer, “o surfista de peito é o cara mais baixo da cadeia alimentar”. Em outras palavras, surfistas de pranchinha, de pranchão e até bodyboarders de fio-dental terão preferência para descer a onda na sua frente.

Keith tem propriedade para falar: nos últimos anos, ele acompanhou a trajetória de alguns dos melhores bodysurfers do planeta, entre eles os lendários Mark Cunningham e Mike Stewart, em sessões no Taiti, no Havaí e na Nova Zelândia. O resultado foi o filme Come Hell or High Water, a interpretação mais pura, fiel e sensível que o surf de peito – popularmente conhecido no Brasil como “jacaré” – já recebeu até hoje. Na produção, lançada em 2011, imagens subaquáticas e mares épicos surfados sem prancha em Pipeline, no Havaí, e Teahupoo, no Taiti, mostram o verdadeiro espírito da modalidade. “Esse esporte é zero ego”, resume Keith, que não abandonou as ondas depois de se retirar do surf profissional. “Ao entrevistar esses surfistas de peito, percebi que muitos gaguejavam de emoção ao relatar suas experiências no mar, coisa que nunca tinha visto até então.”

Como resultado da paixão pelo esporte, foram aos poucos surgindo competições. A primeira edição do Pipeline Bodysurfing Classic, o principal campeonato de surf de peito, aconteceu em fevereiro de 1971 – dez meses antes do evento inaugural do Pipeline Masters, que até hoje é a etapa mais importante e cobiçada do surf profissional. No Brasil, ainda vale a máxima “antes tarde do que nunca”. Neste mês, a Associação Carioca de Surf de Peito (ACSP), que existe desde 1993, dará entrada em um projeto junto à Lei de Incentivo ao Esporte para a criação do Circuito Brasileiro de Surf de Peito 2013. “Serão seis etapas pela costa do país, com etapas no Rio de Janeiro, Bahia, Alagoas, Santa Catarina e Espírito Santo”, diz Claudio Xavier, diretor técnico da ACSP. “A ideia é ter visibilidade para que, em 2014, o Rio de Janeiro sedie uma etapa do mundial.”


O BODYSURFING COMEÇOU A SER PRATICADO no Havaí por questão de sobrevivência. Há meio século, antes da invenção do leash (a corda que prende o atleta à prancha), o surfista era obrigado a pegar um jacaré para sair do mar toda vez que perdia a prancha na zona de arrebentação. Mas logo os melhores surfistas descobriram o quanto era divertido surfar com o próprio corpo. No Brasil, ainda nos anos 1990, o paulista Rogerio Schefler era quase um estranho por não aceitar que a modalidade se resumisse a “ser enrolado por uma onda do inside até ficar com a sunga cheia de areia”. Adolescente que treinava polo aquático de segunda a sexta-feira no clube, Rogerio sentia-se confiante o suficiente para colocar nadadeiras e peitar as ressacas que bombardeavam o morro do Maluf, no Guarujá (SP), nos finais de semana. “O medo sempre foi uma maneira de eu me desafiar”, diz. No começo, seus irmãos chegaram a falar que ele surfava de peito porque não sabia ficar em pé na prancha. “Mas a verdade é que foi tudo tão natural que, de repente, eu já estava checando as condições das ondas, perseguindo os maiores mares e sonhando em ir ao Havaí.”

Hoje, como o “brasileiro dono da melhor colocação em um Pipeline Bodysurfing Classic” – 3º lugar em 2000 –, Rogerio tem sua trajetória entrelaçada com a desse esporte no Brasil, e se lembra de tudo com detalhes. “O mar mais perfeito da minha vida, eu peguei no dia 28 de novembro de 1994 em Maresias (litoral de São Paulo)”, diz. “Surfistas e fotógrafos que também estavam na água me apelidaram de Doidinho, e alguns ofereciam a prancha para eu poder boiar no outside sem ter que bater as pernas. Eles achavam que o que eu estava fazendo era uma coisa completamente maluca.”

Rogerio vendeu o carro e se mandou para sua primeira temporada internacional. “Costumo dizer que ‘surfei meu carro’. Não tive retorno financeiro, mas peguei cinco metros de onda em Waimea e bons tubos em Pipeline, no Havaí.” Nas temporadas seguintes, marcas nacionais de surfwear, como a Wagon e a South to South, deram valor à modalidade e bancaram o brasileiro por alguns meses na terra do surf, onde ele disputou diversos campeonatos. No país onde nasceu, o reconhecimento máximo que teve se resumiu a um pôster pendurado nas paredes de algumas surfshops que o mostravam descendo uma enorme onda no peito. Em dinheiro, a maior premiação que já ganhou com o esporte foram US$ 400, imediatamente revertidos em pizza e goró para festejar o bom resultado com os amigos. “Nunca nem pensei em ser bodysurfer por causa de grana”, garante. “A verdadeira recompensa até hoje é poder sentir a água se deslocar embaixo do meu corpo. É algo mágico, que não tem preço.”

NO TUBO: Cena do filme Come Hell or High Water


SHAPER DE PEITO: Henrique Stryjer dando acabamento em uma handplane
(FOTO:
Henrique Stryjer)


O RECONHECIMENTO DO BODYSURFING como modalidade ainda é uma luta. Mas o esforço da ACSP para criar um circuito brasileiro sério mostra que a onda do surf minimalista pode estar finalmente crescendo. É algo parecido com o que aconteceu durante os anos 1980 e 1990, quando surfar de peito virou febre no Rio de Janeiro.

Apesar de naquela época ter sido criada a pioneira Associação de Surfe de Peito do Rio de Janeiro, que passou a organizar competições, o esporte entrou no século 21 com poucos praticantes no país, espalhados por todo o litoral. A sorte é que alguns deles, como o carioca Kleiber Fragoso, foram visionários a ponto de criar um fórum online para trocar ideias e, quase que involuntariamente, juntar forças. “Foi o renascimento do bodysurfing”, diz Rogério, que já coleciona nove temporadas havaianas.

Também é mais ou menos o que fez recentemente Keith Malloy com Come Hell or High Water. Fica clara no filme sua escolha por resgatar a verdadeira essência do surf, o sincronismo pleno com a natureza que às vezes é negligenciado por conta de localismo ou briga por ondas. Keith, porém, optou por não ouvir o que os bodysurfers tinham a dizer. Preferiu apenas mostrar a beleza que são as imagens de surf de peito embaixo d’água.

“Há mais paz no surf de peito”, diz Henrique Stryjer, que quando criança brincava de pegar jacaré em praias do litoral norte de São Paulo. “Com o tempo, é natural deixarmos as ondas do raso para ir atrás das maiores, mais longas e tubulares.” Aos 30 anos, ele também surfa de prancha e já viajou pela América do Sul e Havaí para praticar seu esporte. Mas é o surf de peito que ultimamente está lhe dando a chance de se reinventar. À frente da Godonwood (godonwood.com), Henrique fabrica handplanes – uma espécie de palmar de madeira para dar mais projeção e estabilidade aos surfistas de peito – por encomenda. “Esse esporte significa o mais puro respeito e fluidez com o estado natural de uma onda, que viajou milhares de quilômetros até vir a seu encontro. Para deslizar melhor, no entanto, mais importante do que usar uma handplane é entender o movimento de peixes e animais marinhos”, filosofa. Poder desfrutar de valores primordiais como esse faz com que surfistas de peito não dêem a mínima ao fato de estar na base da cadeia alimentar.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de setembro de 2012)







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