Moholoholo: muito além do safári

Foto e texto por Adele Santelli

Moholoholo
FERA: Leopardo em um dos recintos de felinos do centro de reabilitação de Moholoholo

A volta para Joanesburgo estava marcada para as 13h55. Ainda no hotel, no município de Hoedspruit, a cerca de uma hora de distância do Parque Nacional do Kruger, na África do Sul, assinei um termo no qual me responsabilizava inteiramente por eventuais atrasos e voos perdidos – eu havia decidido conhecer o Moholoholo.

A saída da reserva em que estava hospedada deveria ser pontualmente às 9h da manhã. Seria uma hora de estrada até o centro de reabilitação de animais Moholoholo, cujo nome é uma referência à última grande batalha ocorrida na montanha de mesmo nome, em 1864, na província de Limpopo.

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Desde o dia em que cheguei ao lodge, recomendaram-me visitar o Moholoholo, onde teria a chance de conhecer o trabalho de profissionais que lutam diariamente pela vida de animais selvagens em perigo. Pensei bastante a respeito – talvez fosse melhor levar comigo apenas lembranças felizes de animais. Mas algo me instigou, e decidi embarcar em mais essa aventura.

Um recinto de abutres no centro de reabilitação

Enquanto seguíamos pela pacata rodovia que cortava a savana africana, muitos pensamentos passavam pela minha mente. O vento soprava tão forte que chegava a balançar a van; por vezes, o medo do voo que se aproximava interrompia com ansiedade minha sensação quase inabalável de satisfação por ter tido a chance de conhecer um pouco desse país. Havia começado a planejar a viagem quase seis meses antes. Os primeiros orçamentos foram desanimadores, porém consegui chegar a preços mais acessíveis depois de muita procura. Após vários dias na África do Sul, variadas sensações são despertadas em mim. A alegria havia enchido meus olhos ao ver de perto animais cuja imponência e energia mudaram de vez minha maneira de me relacionar com a natureza. Ao mesmo tempo, um aperto no peito tomava conta a cada história de destruição e de caçadores ávidos por poder e dinheiro.

Uma estradinha de terra percorria uma grande reserva particular e levava até o centro de reabilitação de animais silvestres. Já eram quase 10h da manhã. Simpáticos guias recebiam os visitantes que se acomodavam em um salão aberto, onde nossa visita ao Moholoholo começaria com uma palestra.

O Moholoholo surgiu em 1991. Entre suas atividades, estão programas de educação ambiental e conscientização, resgate e tratamento de animais feridos, devolução dos reabilitados e abrigo para os que não terão chances de retornar. Há também projetos especiais, como uma pesquisa sobre leopardos feita com colares de monitoramento.

Moholoholo
Mabecos no centro de Moholoholo

Entre os “hóspedes”, há todos os tipos de animais, vindos de várias regiões da África do Sul. Felinos, aves, hienas, mabecos, só para citar alguns. A maior parte é vítima de armadilhas. A mais comum: um laço feito de fio de arame extremamente afiado, capaz de decapitar um leão. Vítimas de envenenamento, atropelamento e filhotes órfãos, frutos da caça ilegal, também estão ali. O estrago é grande. O arame utilizado para afastar os predadores de plantações e criações de ovelhas, quando não causa a morte do animal, deixa cicatrizes profundas. Durante a palestra, algumas imagens nos fazem perder o fôlego e silenciar, tristes, como a de uma leoa que por pouco não perdeu o maxilar arrancado pelo arame. Por sorte e competência da equipe, ela conseguiu se recuperar após diversas cirurgias seguidas e intensos tratamentos, porém jamais andará livremente pelas savanas africanas de novo.

A briga dos homens para manter as feras longe de suas fazendas pode parecer compreensível, mas não é. A perda de hábitat, sobretudo de grandes felinos como guepardos, leopardos e leões, que se deslocam por vastos territórios, é uma realidade cada vez mais preocupante. A maior parte dos bichos que está no centro de reabilitação Moholoholo é fruto desse cerceamento de espaço, agora ocupado pelas plantações e criações do homem.

No centro de reabilitação, a dedicação é intensa. Muitos animais são salvos, mas grande parte nunca mais retorna à natureza. Nos poucos casos de sucesso efetivo na reabilitação, uma nova batalha é travada por parte da equipe: é hora de conseguir um local para devolver esses animais. Em reservas particulares e parques nacionais, muitos deles não encontram vaga. As populações já estão equilibradas, e qualquer mudança pode acarretar problemas, o que dificulta o ingresso de novos indivíduos.

Depois da palestra fomos divididos em pequenos grupos para a visita monitorada, com guias diferentes. Seguimos para um local arborizado, onde poderíamos passar a mão em uma guepardo. Apesar de não gostar muito da ideia por acreditar que quanto menor o contato com o homem melhor para os animais, eu me rendi à experiência. Satin, “Cetim” em português, foi resgatada órfã ainda bebê, a mãe provavelmente morreu nas mãos de caçadores. Aprendemos ali que filhotes que crescem sem os pais, mesmo com a mínima presença humana, não conseguem voltar à natureza. “Nunca seremos capazes de ensinar o que é preciso para que um animal saiba seguir seus instintos e repasse isso às outras gerações”, explica o guia Brian Jones, responsável pela palestra inicial. Assim a bela exemplar de guepardo não retornará à natureza e se tornou uma das embaixadoras do local. Além de receber os turistas, Satin também visita escolas da região, que ganham aulas de educação ambiental.

Um abutre no Moholoholo

“Quando vemos de perto e tocamos em um animal como esse, nossa compreensão da importância de preservação muda. É incrível ver como as pessoas ficam encantadas e passam a perceber como também faz parte do dever delas garantir a sobrevivência das espécies”, diz Brian. Acariciar o felino fez meu coração bater mais forte. Seu corpo mais parece uma máquina programada para correr – pode chegar a mais de 110 km/h. Mas ali o animal mais rápido do mundo pouco poderá usar dessa sua habilidade. O guepardo corre o risco de desaparecer do planeta, segundo um estudo da Sociedade de Zoologia de Londres, na Inglaterra. Estima-se que hoje existam apenas 7.000 deles vivendo soltos na natureza.

O trabalho do Moholoholo também consiste em negociar com as populações locais a sobrevivência dos animais, muitas vezes vistos como vilões. Não é fácil convencer os moradores a não atirarem ou a não montarem armadilhas para os “invasores”. A garantia dada por nós é a de que alguém de nossa equipe irá até o local o mais rápido possível a partir do momento em que a ameaça for avistada. Como o deslocamento na região não é simples, ainda mais com os aparatos necessários para muitas vezes resgatar ou remover o animal para outras áreas, muitos agricultores não esperam e acabam machucando ou matando o bicho.

O calau africano

NOSSO GRUPO acompanhava o guia. Passamos pela ala dos felinos com leões, leoas e leopardos, conhecemos seus vizinhos, hienas e cães-selvagens, e seguimos para os viveiros de aves, onde pudemos alimentar abutres de tamanhos variados. Lá dentro, em contato direto com esses animais, eu me ofereci para vestir uma luva grande e resistente para receber, literalmente de braços abertos e com um pedaço de carne, a ave que escolhesse tentar a sorte para abocanhar o suculento bife.

Depois de contemplar tantas espécies livres nos safáris dos dias anteriores, foi impossível não sentir tristeza ao conhecer de perto essas vítimas dos homens. A última edição de um dos mais completos relatórios sobre vida na Terra, o Planeta Vivo, da organização não governamental World Wide Fund for Nature (WWF), publicada no fim de 2016, elenca as principais ameaças enfrentadas por espécies no mundo – em todas elas, o homem é o principal agente causador.

A visita havia chegado ao fim. Perto da saída, uma árvore encantava ainda mais os turistas. Estava carregada de ninhos que, de longe, mais pareciam bolinhas de Natal. Era hora de deixar esse lugar, que semeou nos visitantes sementes profundas e uma maior consciência sobre a importância de se preservar e cuidar da fauna local.

O charmoso aeroporto de Hoedspruit é uma atração à parte. Ao embarcar, surpreendi-me ao avistar, de dentro do turbo-hélice, impalas e javalis na pista. Enquanto admirava a cena meio surreal, ecoavam em minha mente as palavras do guia Brian Jones: “Precisamos entender que a vida selvagem funciona como uma só. É como uma corrente com vários elos conectados. Se uma peça for perdida, todo o sistema entra em colapso”. O avião enfim decola.

 







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