Organizações e terapeutas estão aproveitando o poder terapêutico das fogueiras para ajudar veteranos, sobreviventes de trauma, dependentes em recuperação e adolescentes em situação de risco.
As chamas alaranjadas dançavam enquanto Gerry Ward permanecia sentado ao lado da fogueira, mergulhado em seus pensamentos, com os estalos da lenha e o cheiro de brasa levando sua mente para bem longe da paisagem das Terras Altas escocesas. É uma cena familiar para muitos de nós: uma noite sob as estrelas, no meio da mata, aquecido ao redor de um círculo de fogo. Mas, para Ward, essa viagem solitária pelos arredores das montanhas Cairngorms, na Escócia, significava mais do que contemplar o céu estrelado ou assar marshmallows. Hoje com 56 anos, Ward passou boa parte da adolescência e da vida adulta lidando com traumas profundos da infância, que resultaram em ansiedade crônica e abuso de álcool.
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Durante os piores momentos, nas suas décadas de 30 e 40, as caminhadas solo por sua terra natal eram um raro alívio para o estresse, o trauma e a depressão. “Eu me conectava com a natureza como forma de escapar daquilo tudo”, lembra ele.
Quando se tornou pai, aos 42 anos, Ward sabia que precisava mudar. “Procurei ajuda profissional, mas o que mais me ajudou foi voltar para a natureza”, diz. Para ele, o processo de fazer uma fogueira — da coleta dos materiais até acendê-la e observar as chamas — era a parte mais terapêutica. “Quando o fogo pega, é aí que a verdadeira conexão começa. Os estalos, os cheiros… isso acessa nosso subconsciente. A gente se conecta com o cérebro primitivo — uma conexão que existe há cerca de 250 mil anos.”
Durante mais de uma década, Ward passou praticamente todos os fins de semana praticando essas meditações solitárias ao redor do fogo como forma de lidar com a recuperação. Depois de perceber o quanto isso o ajudava, decidiu convidar um amigo que também estava enfrentando dificuldades. Descobriram juntos que a companhia à beira da fogueira era exatamente o que ambos precisavam. “Quando duas pessoas se reúnem ao redor do fogo, algo inevitável acontece: a conversa começa”, diz ele. “A gente começa a compartilhar coisas que normalmente não diria — traumas profundos, por exemplo. E só de falar sobre aquilo, você já começa a enfraquecer o poder que aquilo tem sobre você.”
Desde 2021, Ward tem usado os benefícios terapêuticos do fogo para ajudar pessoas com transtornos mentais e dependência química por meio de sua ONG escocesa Fire and Peace Recovery. Ele organiza retiros mensais na natureza, aproveitando o poder curativo das fogueiras. E não está sozinho nisso.
À medida que cresce o interesse por terapias ecológicas e de aventura, o papel da fogueira nesse processo também ganha força. “O fogo, assim como outros elementos da natureza, ajuda a pessoa a se sentir mais confortável em meio ao desconforto do processo de mudança que a terapia exige”, diz Brian Strozewski, terapeuta clínico certificado em terapia de aventura e fundador da Everchanging Counseling and Consulting, com sede em Ohio, nos Estados Unidos.
A chamada campfire therapy (terapia ao redor da fogueira) é simples: trata-se de usar o ambiente tranquilo e curativo do fogo para que as pessoas se abram ao falar sobre seus traumas. Um estudo de 2014 publicado na revista Evolutionary Psychology sugeriu que sentar-se diante de uma fogueira pode reduzir a pressão arterial, promover o relaxamento e melhorar a interação social. Terapeutas e organizações do mundo todo vêm observando esses efeitos de perto.
“Estar ao redor do fogo, junto de pessoas que passaram por experiências traumáticas parecidas, e ter a oportunidade de falar em um ambiente seguro sobre o que viveu — tudo isso tem um enorme poder de cura”, diz o fuzileiro naval norte-americano Jed Morgan, ferido em combate, hoje membro da White Heart Foundation. A fundação, baseada nos EUA, oferece terapias ecológicas e cuidados especializados para ajudar veteranos da era pós-11 de setembro a melhorar a saúde física e mental.
E a necessidade é urgente: o suicídio é a segunda principal causa de morte entre os veteranos norte-americanos que serviram após os atentados de 2001.
A White Heart Foundation organiza retiros de terapia eco-aventura para ajudar veteranos e socorristas a lidar com traumas e estresses psicológicos vividos na linha de frente. As viagens, realizadas entre pinheiros e montanhas em estados como Wyoming, Utah, Oregon e Colorado, oferecem atividades repletas de adrenalina, como escalada e rafting em corredeiras. “A cura acontece quando as pessoas se reúnem ao redor do fogo”, diz Jed Morgan.
O compartilhamento à beira da fogueira é conduzido por colegas. Mentores veteranos, como o próprio Morgan — condecorado com o Coração Púrpura e que perdeu as pernas em um atentado com explosivo no Afeganistão —, começam contando suas histórias pessoais. “Já tivemos grupos com pessoas totalmente fechadas, que mal diziam uma palavra nos primeiros dias da viagem”, conta ele. “No final, essas mesmas pessoas estavam contando suas histórias para todos. É uma transformação impressionante.”
Pesquisas mostram que compartilhar sentimentos — especialmente colocar em palavras emoções e experiências negativas — é um passo essencial para a recuperação e para a melhora da saúde mental. Segundo Ward, a fogueira cria um espaço seguro e menos vulnerável para que isso aconteça.
“Elas não estão falando comigo, nem com ninguém em particular. Estão falando com o fogo”, diz ele. “Já vi uma pessoa compartilhar por 45 minutos sem praticamente olhar para alguém — piscando duas ou três vezes apenas. Isso é o começo do processo de cura.”
Mas é importante deixar claro: o compartilhamento ao redor do fogo, assim como outras experiências terapêuticas na natureza, é apenas uma parte de um programa terapêutico mais amplo. “Sentar ao lado de uma fogueira não é uma solução mágica para os problemas”, afirma Morgan, ressaltando que muitos participantes veteranos já passaram, ou ainda passam, por acompanhamento com psicólogos ou terapeutas. “Acredito que \[compartilhar à beira da fogueira] é uma porta de entrada útil para a pessoa perceber que precisa de ajuda profissional.”
Alguns terapeutas, como Brian Strozewski, utilizam elementos da natureza — como florestas e fogueiras — como recurso terapêutico em suas sessões. “Eu enxergo a natureza como uma espécie de co-reguladora emocional, quase como um amigo ou parceiro presente para ajudar a pessoa a se sentir segura, equilibrada internamente”, diz. Ainda assim, ele ressalta que, assim como a escalada, por exemplo, não é para todo mundo, o diálogo ao redor da fogueira também não serve para qualquer pessoa. “É importante considerar o relacionamento prévio da pessoa com o fogo.”
Um dos motivos pelos quais Strozewski acredita que a fogueira funciona bem na terapia com a natureza é seu simbolismo. “Ela representa o ato de deixar ir. Aprender como é esse processo de abrir mão da dor é necessário para que a gente não fique preso \[às emoções negativas]”, afirma. “Só assim podemos seguir em frente.”
Durante anos, o especialista certificado em recreação terapêutica Kevin Gruzewski presenciou de perto esse processo de liberação emocional. Ele conduzia sessões de terapia com fogueira em uma instituição residencial para adolescentes do sexo masculino em reabilitação por uso de drogas e recuperação de saúde mental em Chicago, Illinois. Nessas sessões, os jovens escreviam seus arrependimentos em pedaços de papel, se reuniam ao redor do fogo e lançavam os papéis nas chamas. Após vivenciarem os efeitos terapêuticos do fogo, eles aproveitavam os momentos de leveza que muitos associam aos encontros ao redor da fogueira: conversas, risadas, brincadeiras e marshmallows assados.
“A maioria deles vinha do centro da cidade; nunca tinham tido a experiência de estar em meio à natureza ou de participar de uma fogueira”, conta Gruzewski. “Alguns desses garotos tinham passado por coisas muito pesadas, então dava para perceber que gostavam da sensação de soltar aquilo tudo, mesmo que só por um momento.”