Vá com fé

Algumas trilhas mundo afora reservam mais que desafios naturais: são caminhos sagrados de religiões que vão do cristianismo ao budismo, e que podem ser conhecidos em belos roteiros de bike e trekking

Por Bruno Romano

> Cara a cara com a Pachamama
Extremamente apegados aos seus costumes e a sua religiosidade, os incas foram dizimados pelos colonizadores europeus, mas deixaram ensinamentos e vestígios de uma civilização bastante avançada. Parte do que restou em ruínas pode ser visto em cidades peruanas, bolivianas, chilenas e argentinas. No norte da Argentina está Tilcara, considerado um dos mais importantes centros espirituais do império inca. Acredita-se que o local, rodeado por cadeias de montanhas, concentra muita energia, por isso era escolhido para os cultos em celebração a Pachamama, a “mãe terra”, responsável pela existência de todos.

Com estradas em boas condições, a região pode ser percorrida em uma interessantíssima viagem de bicicleta (informações em norteargentino.gov.ar). Tilcara, assim como sua cidade vizinha, Purmamarca, que também resgata a cultura andina, estão na Ruta 9, que corta a província de Jujuy, na chamada Quebrada de Humahuaca. Descendo para o sul, chega-se à capital de Jujuy, distante aproximadamente 100 quilômetros de Salta, onde fica o maior aeroporto da região. Deixando a Ruta 9, ainda no sentido sul, chega-se à província de Tucumán. A beleza dos vales Calchaquíes, já na Ruta 307, ajuda a encarar os grandes desníveis da região.

O esforço vale a pena para chegar a cidades como Amaicha del Valle, um povoado que respira a cultura andina. Lá fica o maior museu da região, o Pachamama, que explica os rituais e crenças dos antepassados, como a ideia de que somos encarnações de espíritos que podem se materializar em diferentes formas, como a serpente, a rã e o condor – a mais elevada delas.

De Amaicha saem passeios guiados para a cidade sagrada dos Quilmes. As ruínas representam toda a espiritualidade desse povo. Dados como extintos, os Quilmes foram os últimos a se render aos espanhóis, em uma batalha que durou três gerações. Em excursões guiadas, por cerca de 40 pesos argentinos (R$ 18), guias locais explicam a formação da região, a luta pela sobrevivência e os rituais locais.


SANTO PEDAL: Paisagem do norte da Argentina, onde ficam centros espirituais incas e altas trilhas de bike (FOTO: Bruno Accioly)


ROLÊ NAS RUÍNAS: Fotos de templos de Angkor, no Camboja, região cheia de trekkings surreais


> Bike no Jardim do Éden


POR ALÁ!: O monte Ararat, na Turquia, é atração de um passeio de bike de dez dias

Cruzando as montanhas do Irã e da Turquia, bem perto da fronteira desses dois países, está a Blue Mosque, ou Mesquita Azul, ponto de parada obrigatório para quem encara este belo pedal de dez dias. Atribui-se ao lugar, onde está hoje a cidade iraniana de Tabriz, a localização do bíblico Jardim do Éden. O passeio de bike é organizado pela Tour d’Afrique (tourdafrique.com), especializada em pedais exóticos. Neste roteiro que mistura Oriente e Ocidente, não faltam ícones religiosos, com direito a passagens por centenárias igrejas ortodoxas e sagrados templos islâmicos, além de belezas naturais como o monte Ararat, o maior da Turquia, com 5.137 metros.

O roteiro de bike Irã-Turquia, um dos mais recentes lançados pela operadora, faz parte da Rota da Seda, que corta a Ásia do Mediterrâneo ao Pacífico. O pedal é exigente – média superior a 100 quilômetros por dia –, e o preço é de 1.750 euros (R$ 4.240), sem parte aérea. O passeio inclui hospedagens, três refeições diárias e equipe de apoio.

> Rota tibetana para o paraíso


PASSIO BUDISTA: Mosteiro em Yunnan, que integra roteiro de trekking pela região sagrada

No outono, tibetanos das províncias de Yunnan, Sichuan, Qinghai e do próprio Tibete saem em peregrinação ao redor do monte Meili para rezar e pedir boas energias para o futuro. A subida ao cume do Meili (6.740 metros) é perigosa, mas a caminhada ao seu redor conserva o misticismo dos locais. A área é coberta de florestas virgens, vales, cachoeiras e glaciais sagrados, onde se cruzam alguns isolados mosteiros budistas.

Tudo começa com a chegada à cidade de Kunming, capital da província de Yunnan, onde fica o maior aeroporto da região. De lá, toma-se um voo para Zhongdian, e segue-se de carro rumo a Deqin, a 186 quilômetros. É em Deqin que se encontra o mosteiro de Dongzhulin e a famosa White Horse Snow Mountain, locais sagrados na Ásia.

O trekking começa na manhã seguinte com o trajeto Yangza-Yongbao e dura mais 13 dias, passando por diversos vilarejos, como o hospitaleiro Abing e o exótico Qizhu, local que guarda uma pedra sagrada (que todo peregrino deve tocar), na confluência dos rios Nu e Abing. No caminho, passa-se por outra montanha sagrada, a Gebula, de 4.100 metros.

Por ser um trajeto bastante longo, os preços variam de acordo com as necessidades e vontades do viajante (opções em visittibet.com e travelwestchina.com). A versão mais compacta do roteiro sai por US$ 2.760, incluindo trechos aéreos dentro do Tibete (worldexpeditions.com). Para a cultura local, esse é um trajeto muito importante na vida de uma pessoa. Segundo a crença tibetana, quem o faz por três vezes tem vaga garantida no paraíso.

> Trekking milenar dos maoris


MANA MIA: Atravessar o Parque Nacional de Tongariro, da Nova Zelândia, pode despertar o mana, ou energia, segundo a cultura local

O cenário que ficou conhecido na trilogia Senhor dos Anéis como Mordor pode ser percorrido em um trekking de três dias por um dos lugares mais sagrados para os maoris, o povo nativo da Nova Zelândia.

O trekking corta o Parque Nacional Tongariro, na ilha Norte do país, ao longo de xx dias. O ponto alto da peregrinação é uma caminhada pelo monte Tongariro (1.967 metros), vizinho do Ngauruhoe, um vulcão de 2.287 metros que teve sua última grande atividade em 1975. Entre as duas montanhas, está o vale Mangatepopo, que leva à grande Red Crater (cratera vermelha), próxima aos lagos Esmerald. A passagem pelo vale faz parte do dia mais longo do rolê, com sete horas de caminhada. No roteiro de cerca de R$ 1.800 (1.290 dólares neozelandeses) sugerido pela Hiking New Zealand (hikingnewzealand.com) ainda estão inclusos mais um dia de trekking pelo monte Ruapehu, e uma “saideira” com destino à cachoeira de Taranaki.

Se a ideia for chegar ao cume das montanhas da região, é preciso planejar a visita com antecedência. O mesmo vale para o período de inverno, quando o local costuma ficar coberto de gelo. Enquanto os visitantes observam vulcões, montanhas e crateras que foram pontos de culto dos primeiros maoris, guias locais neozelandeses explicam a história religiosa desse povo. Uma das ideias centrais da cultura maori é ativar o mana, que em outras palavras seria a energia e a força presentes em pessoas que passam a ser consideradas sagradas. O mana pode ser despertado por meio de danças, cultos ou rituais – como a travessia pelo Tongariro, por exemplo.

> No coração do império khmer
Arqueólogos e estudiosos ainda tentam desvendar os mistérios de Angkor, enorme confluência de construções religiosas hinduístas e budistas que serviu de capital do império khmer, no século 9. Como outras grandes civilizações que desaparecem, a cultura khmer era extremamente evoluída, como atesta a elaborada rede de irrigação e esgoto e a arquitetura desse complexo de templos localizado no Camboja, vizinho à Tailândia (mais informações em tourismcambodia.org).

Antes de chegar a Angkor, a pedida é um trekking de quatro dias por onde se estendia parte do território khmer. Sem incluir custos aéreos, os pacotes de agências que operam no local variam de US$ 170 a US$ 320, com direito a entrada nos parques, traslados, pernoites e três refeições.

Como no Egito antigo, todas as construções “faraônicas” que resistem no Camboja foram feitas com o trabalho de milhares de pessoas, guiadas por reis da época, como Jayavarman e Suryavarman, que tinham status de deuses. Descobertas há pouco mais de 100 anos, as ruínas cambojanas estavam tomadas pela mata. Hoje se espalham por esse patrimônio da humanidade, onde templos semi-destruídos mesclam-se com a exuberante natureza local.

> Caminho iluminado em São Paulo


PÉ NO ESPIRITUAL: O caminho da fé, em São Paulo, une esporte e peregrinação
(FOTO: Margareth Salzane)

Foi da cidade galega de Villa Franca del Bierzo que chegou a imagem de Sant’Iago (na grafia original). A escultura do apóstolo que dá nome ao famoso caminho de Compostela, pelas trilhas da península Ibérica, também marca, desde 2002, o trecho final de uma peregrinação brasileira: o Caminho do Sol, trajeto de 240 quilômetros pelo interior de São Paulo. São onze municípios, desde a largada em Santana de Parnaíba até a chegada em Águas de São Pedro, cruzando Pirapora do Bom Jesus, Cabreúva, Itu, Indaiatuba, Salto, Elias Fausto, Capivari, Mombuca, Saltinho e Piracicaba, entre outros. Setas sinalizam todo o caminho, que passa principalmente por áreas rurais. O peregrino pode seguir a pé ou de bike, no ritmo que escolher. Há quatro opções de rota: laranja, azul, verde ou vermelha, sendo que a última é a única recomendada apenas para o trekking (mais detalhes em caminhodosol.org).

A “versão brasileira” do Caminho de Santiago não almeja se igualar ao precursor, mas resgata o que há de mais típico em percursos que misturam esporte com a religiosidade de uma peregrinação. Prova disso é a proposta de hospedagem em pousadas peregrinas e coletivas, com hospitalidade típica do interior. Paga-se em média R$ 85 pelo pernoite e refeições. Além disso, há palestras (R$ 15) sobre o caminho, onde é possível conseguir mapas e informações mais detalhadas. O visitante deve pagar uma taxa de inscrição de R$ 93, usada para manter o percurso. Feito isso, chega-se à primeira pousada em Santana de Parnaíba para receber o passaporte do caminho com o carimbo inicial. Em 2012 o percurso completa dez anos, e o idealizador do caminho, José Palma, promete comemorações especiais.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de fevereiro de 2012)







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