Tá russo

Brasileiro descreve como conseguiu driblar o mau tempo para escalar os montes Elbrus e Kazbek

 


Em agosto, o montanhista – também médico e advogado – Guilherme Serpa se lançou em um expedição na Rússia cujo objetivo era escalar o Elbrus, a montanha mais alta da Europa, com 5.642 metros de altitude. Ele se juntou a um grupo formado pela agência Grade 6, e do qual fizeram parte o experiente montanhista Rodrigo Raineri e a irmã de Guilherme, a médica Juliana Steck.

Depois de esta missão ser cumprida, Guilherme achou que tiraria de letra uma escalada ao Kazbek, na Geórgia, perto da fronteira com a Rússia. Mas não foi bem assim, como ele descreve a seguir.

“HÁ UMA LISTA MUNDIALMENTE conhecida como as sete montanhas que todo alpinista sonha em subir: os Seven Summits. Uma delas é o monte Elbrus, na Rússia.

Costumo brincar que sou um russo reencarnado. Adoro a Rússia, e não me perguntem como, pois eu mal sei explicar. Aprendi russo e falo aquilo que chamo de ‘russo funcional’: me viro bem com a língua local desde antes de vários russos aprenderem a falar inglês, algo que só passou a ser mais comum a partir de 2000. Só pode ser algo fantasmagórico. Nem o alfabeto é o mesmo. Eles usam o alfabeto cirílico e, nós, o latino.

Em um jantar informal, ficou decidido, inicialmente, que iríamos eu, minha irmã (a médica Juliana Steck) e o montanhista Rodrigo Raineri (que apesar de já ter estado três vezes no cume do Everest, nunca tinha subido o Elbrus).

Como o Rodrigo tem uma agência de turismo especializada em alta montanha, a Grade 6, ele tinha muito interesse não apenas em subir o Elbrus. Ele se tornaria o primeiro brasileiro a ser guia em todos os ‘sete cumes’. Então foi formada uma equipe de interessados.

Para os treinos, eu e a Juliana montamos uma equipe à parte com a Les Cinq Gym  e a Best Berry. Mas na prática, todos sofremos juntos, somos uma só equipe.

Eu tinha um tempo a mais de férias e decidi subir o Kazbek, na República da Geórgia, antes, para aclimatar. Supostamente, o Kazbek deveria ser mais fácil, pois é uma montanha um pouco menor. Grande engano, como narrarei mais adiante neste texto. Para me ajustar às datas de todos, no entanto, acabei invertendo: escalaria o Elbrus primeiro e o Kazbek em seguida.

No Elbrus, pegamos uma forte tempestade na primeira tentativa de ataque ao cume. Tão forte que não conseguimos tirar fotos nem filmar. Nos ‘entocamos’ nos containers do campo base para esperar a tormenta passar. Na segunda tentativa, céu de brigadeiro! Pegamos um dia maravilhoso, tiramos fotos lindas. Até tomei cerveja no cume.

https://www.youtube.com/watch?v=HryrXymscLQ

No sopé do Elbrus (no vilarejo de Azau) despedi-me do pessoal e segui de carro para a República da Geórgia.

Não sei se fui o primeiro brasileiro a visitar aquele país, mas a sensação que eu tinha era de ser um marciano. Desde o guarda da fronteira russa, até o motorista do táxi no vilarejo de Stepantsminda, já na Geórgia, todos me olhavam como se eu fosse verde e tivesse antenas.

Pela internet, fiz contato com o pessoal de apoio que me ajudaria na Geórgia. Eles abastecem o campo base com comida e barracas, para que possamos carregar menos peso. Lá, conheci o russo Vladimir e o canadense Geoff (que mora na Ucrânia). Foi ‘amizade de montanha à primeira vista’. Nós três, sozinhos, querendo subir o Kazbek. Decidimos: somos o time de ataque ao cume, vamos escalar juntos! Contratamos um guia local, o Misho, que conhecia o caminho.

Uma das grandes dificuldades do Kazbek é que não há nenhum meio de elevação. No Elbrus, há os lifts que servem aos esquiadores e que levam os montanhistas até o campo base. Já no Kazbek, é ‘na unha’. Você tem que levar cada grama de peso em equipamentos e tudo o que precisará.

Subimos até a MeteoStation, a última construção de alvenaria onde estavam estocados nossos mantimentos, e estabelecemos um campo base logo acima.

Fizemos algumas subidas de aclimatação e, a cada dia, as notícias de equipes devastadas por tempestades na subida iam nos deixando preocupados.

Uma única equipe russa, profissional, conseguiu subir e voltou: ‘Não quero ser pessimista, mas eu não tentaria de novo’, disse um dos montanhistas.

Mas três dias depois, arriscamos. No montanhismo, geralmente se ataca o cume de madrugada para chegar lá ao amanhecer. E a maioria dos acidentes ocorre na descida, quando a exaustão vence o alpinista. Descer com a luz do dia é uma lei. Quase todos os acidentes graves e quase todos os óbitos em montanha acontecem durante a descida, principalmente por conta do atraso para chegar ao cume, tendo que descer de noite.

Atacamos o cume às 2 horas da manhã. Que erro de cálculo! Uma tempestade devastadora nos apanhou. Tudo nosso foi destruído pelo vento e pela chuva. Minhas roupas, fartamente testadas em condições extremas, encharcaram como se eu tivesse nadado com elas. O campo base ficou devastado.

Descemos até a MeteoStation para sobreviver. A tempestade nos mataria se continuássemos expostos. Tudo que eu tinha de seco quando cheguei à MeteoStation eram uma ceroula e uma camiseta (passei 12 horas vestido só com este traje). Desisto! Dezenas de alpinistas, de todos os cantos do mundo, empacotaram as coisas e desceram.

Mas as tempestades deixaram vários montanhistas presos, machucados e lesionados por um frio extremo. Uma equipe de médicos militares poloneses montou um centro de emergência. Naquela altura, muitos já sabiam que eu era médico treinado em montanha e, mais importante, já estava aclimatado. Os poloneses me ‘enquadraram’: ‘Vai fugir do seu dever? Não acredito!’ Então, fiquei!

‘Kazbek, você me venceu! Mas vai ter revanche em outro ano, por que agora eu vou ajudar quem está precisando’, eu pensava.

INCRÍVEL! O sol brilhou nas 36 horas seguintes e secou as minhas roupas. O pessoal de Stepantsminda, ciente das seguidas tempestades, em especial aquela que nos atingiu, teve a boa luz de mandar, morro acima, uma bota extra que eu tinha deixado na pousada. Assim, eu poderia ter uma segunda chance para atacar o cume. Uma revanche que veio bem antes do esperado.

Ficou decidido que seria a última tentativa de ataque – como de hábito, na madrugada. Tudo ocorreu bem até cerca de 250 metros antes do cume. Nas filmagens, me falta de oxigênio, algo típico de um ataque ‘às pressas’. Para cima, tempo bom; para baixo, o Kazbek mostrava que não gostou muito das nossas provocações de revanche. As equipes que vinham atrás de nós começaram a desaparecer dentro de uma névoa que se tornava cada vez mais espessa.

https://www.youtube.com/watch?v=hBqNUq5Xr7E

Seguimos ao cume, mas nos 100 metros finais, o tempo virou. Fizemos cume com uns 15 metros de visibilidade, que logo caiu para zero na face georgiana e para uns 10 metros na face russa.

Tiramos poucas fotos. O vento estava em torno dos 90 km/h, e a temperatura despencou para uns 20ºC negativos – até minha barba congelou.

Minha frase de cume – reconheço que pouco polida – aparece na filmagem: ‘Metade da merda, nós fizemos, quero ver como vamos embora daqui agora.’

https://www.youtube.com/watch?v=f4NPFgv1DSU

Batemos em retirada, desescalando pela face russa o mais rápido possível. Encontramos uma equipe russa a uns 50 metros abaixo, que estava atacando o cume. ‘Vocês estão muito perto. Vamos esperar vocês chegarem ao cume e retornarem para descermos juntos, porque só conhecemos o caminho do lado de lá’, dissemos a eles.

https://www.youtube.com/watch?v=RijSs0In8bU

Pela fúria da tempestade que se seguiu e pelos relatos de todas as equipes que foram atingidas, acredito que só nós e nossos quatro amigos russos chegaram ao cume. Uma equipe belga alegou que subiu também, mas eu os vi centenas de metros abaixo do cume, tão baixos que a tempestade já estava acima de nós. E equipes que estavam muito acima deles voltaram, relatando horrores da tempestade. Acho que eles se confundiram e não pisaram no cume do Kazbek. Isso é comum em tempestades: o sinal de GPS some, a equipe atinge um ‘falso cume’ e pensa que chegou.
Descemos até a MeteoStation no mesmo dia e descansamos. Os cavalos que contratamos para descerem nossos equipamentos pesados não estavam lá, e fomos obrigados a descer na raça. Senti dores em todos os músculos do corpo pelos 15 dias seguintes. Perdi oito quilos graças à escalada ao Kazbek – e olha que eu sou magro (tenho 1,82 metro e 78 Kg). Montanha desgraçada!

Talvez eu seja o único brasileiro que já escalou o Kazbek até hoje. E, definitivamente, não recomendo a ninguém.”

* Para esta expedição na Rússia e Geórgia, Guilherme se preparou na academia Les Cinq Gym, faz parte de uma equipe de escalada







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