Sem aposentadoria

Um senhor espanhol de 77 anos aproveita a vida de “aposentado” para escalar todos os picos acima dos 8 mil metros de altitude

Por Mario Mele

TER 77 ANOS DE IDADE e se ver prestes a escalar todas as 14 montanhas acima de oito mil metros de altitude do planeta é um dos exemplos mais dignos de longevidade levada ao extremo que podem existir. Em maio, o espanhol Carlos Soria, um senhor bem “fora da curva”, escalou o mítico Annapurna (8.091 metros), a décima maior montanha do mundo, localizada no Nepal, e tornou-se o ser humano mais velho a conseguir o feito. Foi seu oitavo recorde mundial, coroando uma trajetória de inspiração raras vezes vista.

NA PRÁTICA: Foto da face sul do Annapurna, escalada por Carlos (Fotos: Divulgação)
NA PRÁTICA: Foto da face sul do Annapurna, escalada por Carlos (Fotos: Divulgação)

“Eu sempre digo que, apesar de ser tapeceiro por profissão, já nasci montanhista”, justifica. Atualmente ele não forra mais sofás, porém já usou o ofício a favor de sua maior paixão, o montanhismo. Ainda nos anos 1950, em suas primeiras expedições, Carlos reaproveitava sobras de materiais para costurar as próprias roupas e equipamentos. “Uma de minhas mochilas antigas, eu fiz utilizando restos de couro.”

Desde que escalou sua primeira montanha, aos 14 anos de idade, até pouco mais de uma década atrás, Carlos conciliava a rotina de tapeceiro com a de escalador. Depois de passar dos 50, entretanto, as façanhas na montanha foram ficando cada vez mais sérias: entre 1990 e 1999, ele escalou três montanhas acima dos oito mil metros (Nanga Parbat, Gasherbrum 2 e Cho Oyu, todas nos Himalaias). “A vida de aposentado é maravilhosa se você conseguir chegar até aqui em boas condições físicas e financeiras.”

SEMPRE NA MONTANHA: Carlos no cume do Manaslu, há algumas décadas (Fotos: Divulgação)
SEMPRE NA MONTANHA: Carlos no cume do Manaslu, há algumas décadas (Fotos: Divulgação)

Foi nesse período que ele pode dar mais atenção a seus projetos na alta montanha e, naturalmente, começou a aparecer ganhar fama em razão da idade avançada. Em 2001, aos 62 anos, chegou ao cume do Everest e não perdeu o embalo. aos 65 anos, escalou o K2; aos 68, o Broad Peak; aos 69, o Makalu; aos 70, o Gasherbrum 1; aos 71, o Manaslu; aos 72, o Lhotse; e, aos 75, o Kangchenjunga.

Com a conquista do Annapurna, neste ano, Carlos pisou no topo de 12 das 14 montanhas acima dos oito mil metros – um desafio conhecido como Eight-thousander – e ficou mais próximo de entrar para o seleto rol de 33 montanhistas que concluíram este feito, entre eles astros das montanhas como Reinhold Messner, Ed Viesturs e Denis Urubko. Detalhe: com a diferença de ser 20 anos mais velho do que a maioria. Dias antes de chegar ao cume do Annapurna, ele falou com a Go Outside.

Eu nunca planejei conquistar todas as montanhas do mundo com mais de oito mil metros. Isso se deu só depois dos 60 anos. Em 2011, depois que consegui patrocínio do banco espanhol BBVA, as coisas ficaram um pouco mais fáceis. Quando você tem quase 80 anos, seu corpo não responde a todo o momento do jeito que você gostaria, e por isso não sou obcecado pelo sucesso: se um dia eu sentir que não estou mais em condições de escalar, simplesmente paro.

Vi os equipamentos de montanhismo evoluírem ao longo dos anos. Tente imaginar que hoje o pé de uma bota que eu uso é um quilo mais leve do que os primeiros modelos que tive. Antigamente também não existiam tecnologias de previsão de tempo. Você tinha que colocar a cara para fora da barraca, olhar para o céu e decidir: “Acho que hoje pode ser um bom dia para atacarmos o cume”.

No topo do Annapurna, em maio deste ano
No topo do Annapurna, em maio deste ano

Por meio da minha conta no Twitter (@RetoCarlosSoria), tento sempre mostrar o real dia a dia na montanha: como é a vida no acampamento base, o convívio com os sherpas etc.

O montanhismo é uma grande disciplina a ser descoberta. Gosto muito de atletas como o [corredor de montanha espanhol] Kilian Jornet, que estão imprimindo recordes de velocidade na alta montanha. Acredito que, no futuro, Kilian também será um grande montanhista.

Para mim, escalar montanhas nunca foi somente chegar ao cume. Eu sempre tento perceber como me sinto quando chego ao topo, e a resposta é a mesma: bate uma grande vontade de retornar. Você só pode dizer realmente que “fez o cume” depois que voltar ao acampamento base e checar se está tudo bem. Por isso prefiro curtir os bons momentos de uma escalada, como conhecer pessoas durante o trajeto ou admirar o sol nascendo sobre as nuvens. Presenciei um amanhecer no acampamento 4 do K2, no dia do ataque ao cume, que foi inesquecível.

Acho normal a superlotação do Everest nos últimos anos, afinal é o lugar mais alto do planeta e muitas pessoas querem estar lá. Não vejo problemas em guardar um dinheiro para, um dia, conseguir escalar essa montanha. O que eu não suporto são montanhistas reclamando do excesso de pessoas, mas que não perdem a chance de usar as cordas fixas instaladas pelas expedições comerciais.







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