Pura vida

Imagine seus filhos mergulhados até a alma no mais intenso contato com a natureza, sob orientação de quem entende de verdade do assunto. Há nove anos, em São Paulo, crianças de todas as idades embarcam em uma experiência inesquecível e transformadora com o acampamento de aventura Go Outside, comandado por grandes ícones da vida outdoor do Brasil

Por Maria Clara Vergueiro
Fotos de Tom Papp e Ricardo Leizer

EM JULHO DESTE ANO AS IRMÃS Anna (14), Lia (11) e Helena (9) vão repetir o programa preferido das férias. Há três anos, elas passam uma semana do inverno e outra do verão na fazenda que sedia o único acampamento genuinamente aventureiro do Brasil. Criado em 2007, o projeto nasceu no berço da corrida de aventura e cresceu proporcionalmente mais do que a própria modalidade foi capaz de evoluir no país. Foi por iniciativa das atletas Shubi Guimarães e Cristina de Carvalho (ao lado do amigo waterman Alessandro Matero, o Amendoim, que deixou o projeto em 2009) que uma tímida turma de 14 crianças se lançou no desafio de ficar uma semana aos cuidados de instrutores de elite, que iniciavam os pequenos no trekking, mountain bike, canoagem, leitura de mapas e principalmente, no fantástico universo da vida ao ar livre. Na edição de janeiro de 2016, foram 77 inscritos, entre seis e 15 anos, que partiram de São Paulo rumo à fazenda-sede (localizada em Juquitiba, a 90 km da capital) para dormir em barracas, explorar trilhas e expandir limites com as conquistas pessoais de cada processo.

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AO NATURAL: Trekking noturno
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José Pupo (O segundo da esq. para a dir.) e sua equipe de monitores
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CONCENTRAÇÃO: O Rancho-sede do acampamento
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UM OBSTÁCULO DE CADA VEZ: Os pequenos na trilha

O crescimento desses jovens e crianças inscritos nos últimos anos reflete o amadurecimento do projeto, que hoje tem como sócios, além da fundadora Shubi, o expert do canoísmo brasileiro, José Pupo, e o maior entusiasta da vida outdoor no Brasil, o empresário Caco Alzugaray (publisher da Editora Rocky Mountain, que publica, entre outras revistas, a Go Outside), ambos experientes corredores de aventura. O quarteto ficava completo com a “professora” Cris Carvalho, que faleceu em dezembro do ano passado, deixando a missão para o marido, o arquiteto e companheiro de provas, José Caputo. “É um acampamento diferente de todos os outros porque é estruturado nas bases da aventura, envolvendo os valores e o planejamento das expedições. É um pouco mais ousado porque as crianças realmente praticam os esportes, mas com toda a segurança”, atesta Shubi, que além de ex-atleta é pedagoga.

A equipe harmoniza todos os recursos individuais – pedagogia, conhecimentos técnicos, experiências pessoais em grandes expedições e a vivência com os próprios filhos – para elaborar cada detalhe (da complexa logística de transporte de crianças, bikes, malas e comida, ao desenho das atividades diárias por grupos etários), distribuindo as funções e elegendo um time de monitores que precisam ser física e emocionalmente preparados para lidar com os diferentes desafios das crianças. Muitos tiram as rodinhas da bicicleta lá mesmo. Outros têm dificuldade para dormir fora de casa. Alguns estão entrando na puberdade e têm as emoções à flor da pele. Ali estão todos juntos e misturados, nas dificuldades e no potencial de superá-las. “Lá eles têm a oportunidade de expandir o aprendizado das leis da sociedade: passam a conhecer também as leis da natureza. Isso engrandece a alma das crianças e depois dos adultos que eles se tornarão”, pontua Caco, que assim como os outros sócios-amigos, coordena pessoalmente as atividades do acampamento e leva os filhos desde pequenos.

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DESAFIO COLETIVO: Descida de rafting
Barracas à noite
FORA DE CASA: Barracas montadas para mais uma noite
Cris Carvalho e Caco Alzugaray
IDEALIZADORES: Cris Carvalho e Caco Alzugaray

A fazenda-sede do acampamento pode ser considerada o paraíso da vida o ar livre: com quase 600 alqueires, tem 35 quilômetros margeados pela represa do França, na região de Ibiúna. Cerca de 85% de sua área é composta de Mata Atlântica, e o restante por áreas de reflorestamentos de pinheiros e eucaliptos. Toda a extensão é servida por 90 quilômetros de estradas rurais e trilhas mantidas especialmente para a prática de trekking e mountain bike. Refúgio de mamíferos como antas, veados, quatis, capivaras e cachorros do mato, e de aves como jacus, biguás, garças e gaviões, o cenário é um prato cheio para introduzir as crianças nos temas da biodiversidade e da educação ambiental. “Entre as inúmeras opções de atividades, há uma canoagem de altíssima qualidade: é preciso quebrar a cabeça para montar tantos roteiros, mantendo-os divertidos e desafiadores, mas confesso que adoro cuidar desta parte”, suspira o capitão Zé Pupo.

Hora da corrida
1, 2, 3 E JÁ: Hora da corrida
Brincando na represa
ACLIMATADA: Brincando na represa

As duas edições anuais – uma semana em julho e outra em janeiro – podem ganhar mais uma temporada no próximo verão. Mas o número limite de crianças inscritas deverá permanecer o mesmo – 80 por edição – para garantir o padrão “boutique” (como gosta de classificar Shubi), que contempla pessoalidade e segurança, além de itens considerados de luxo para quem, como estes ex-atletas de aventura, já dormiu muito no chão e passou dias sem tomar um bom banho: barracas com dois “quartos” e “varanda” e até um novo vestiário, que será inaugurado no próximo mês de julho. Tudo dentro dos padrões de rusticidade altamente valorizados por lá, como lembra Caco: “Este é mais um dos legados que a Cris Carvalho deixou para o Acampamento: a busca pela excelência. Mas justamente naquilo que não mudamos nunca é que mora o sucesso deste projeto: nossa paixão, autenticidade e profundo conhecimento das atividades ao ar livre”.

Expedição de mountain bike
ROLÊ DA HORA: Mini expedição de mountain bike

Depoimento
Regina Cury inscreveu Theodoro, de 10 anos, no Acampamento de Aventura Go Outside apostando que ele ganharia novos amigos. Na volta, encontrou uma nova criança

“A ideia de inscrever o Theodoro no Acampamento de Aventura Go Outside surgiu de uma conversa entre mães da escola onde ele estuda, aqui no Rio de Janeiro. Uma delas, triatleta, era amiga de longa data dos organizadores. Na avaliação dela, poderia ser uma experiência tão bacana para nossos filhos que valeria a pena toda a operação insana de levar uma criança, uma bicicleta e uma mala para participar de um acampamento de férias no interior de São Paulo. Ela, decidida a mandar o filho, buscava outras mães aventureiras para que o garoto tivesse a companhia de pelo menos um colega.

AVENTUREIRO: Theodoro exibe, orgulhoso, sua medalha de acampante
AVENTUREIRO: Theodoro exibe, orgulhoso, sua medalha de acampante

Theodoro mal andava de bicicleta sem rodinhas e não fazia o tipo esportivo. O fato de passar cinco dias incomunicável e longe de mim me assustava menos do que a perspectiva de se acidentar nas trilhas de bike. Por outro lado, pensei que seria uma boa chance de integração, de conhecer outras crianças e superar seus próprios limites. Pensamos muito, conversamos bastante com a organização e decidimos que ele iria. Ele nem titubeou. Ao saber que estaria com outros dois colegas da escola, sentiu-se suficientemente seguro para se aventurar. A bicicleta dele ainda era de aro 20, não tinha recursos de mountain bike, uma velha e pesada Caloi. Mas eu nem pensei em arrumar outra. Duvidava, afinal, que ele fosse fazer bom uso de uma bicicleta maior, mais equipada e mais cara, já que ele ainda mal pedalava.

A aventura começa na preparação. A lista de itens obrigatórios inclui saco de dormir, bússola, uma mochilinha engraçada que tem uma bolsa de água dentro chamada Camelbak, luvas de bike, enfim, toda uma produção. Ele curtiu cada etapa. Fizemos compras, colocamos nome em tudo, arrumamos juntos a mala para que ele soubesse tudo o que estava levando e, portanto, tudo o que deveria trazer de volta. Essa preparação, em si, já foi toda uma experiência. Mas o melhor, claro, ainda estava por vir.

A expedição parte da raia do remo no campus da USP, um lugar de forte significado para os atletas de São Paulo. Bem cedinho, antes das 7 horas, deveríamos entregar a bicicleta, a mala, passar pelos monitores-médicos que ficam com eventuais remédios que a criança precise. A roupa do embarque e o que devem levar com eles sinalizavam que chegar ao acampamento já seria a primeira conquista do acampante: em um determinado ponto da estrada, próximo à fazenda, eles seguiriam, a pé e de canoa, até a base principal.

A partida é emocionante. Dezenas de meninos e meninas de diferentes idades e procedências entram felizes nos ônibus e partem sem olhar para trás. Em seguida, vai o caminhão com todas aquelas bikes. Nós, pais e mães apaixonados, ficamos ali, testemunhando a vida acontecer. Sem dúvida alguma, nossos filhos estão crescendo e voltarão diferentes de quem eram quando partiram.

Daí para frente a gente só sabe que estão bem porque toda noite alguém publica fotos das aventuras do dia na página de Facebook do Acampamento. Lá vemos a alegria, o esforço e a superação de cada um. Vemos que estão superocupados em explorar a pé, de bike, de canoa e a nado, cada centímetro daquele lugar, em meio a uma natureza linda.

E quando a gente fala de acampamento não é maneira de dizer: é acampamento mesmo! Eles dormem em barracas de camping. Há monitores suficientes para cuidar e confortar aqueles que na hora de dormir se sentem longe do aconchego dos pais. Foi o caso do Theodoro. Eu nem precisei fazer a clássica pergunta: sentiu saudades da mamãe? Ele entrou no carro e foi logo dizendo que só aguentou passar a primeira noite porque tinha uma monitora que foi muito gentil (sic) e ficou conversando com ele.

Quando chegavam as fotos no Facebook, diariamente, era uma surpresa. Vi que Theodoro estava usando uma bicicleta que não era a dele. Era maior e diferente; vi que Theodoro estava participando de tudo. Parecia feliz e cansado. Assumia, de repente, ares de menino grande, de dono do próprio nariz. Um menino destemido, realizado, feliz. Era Theodoro na bike, na represa, na canoa, na tirolesa, molhado, suado, todo sujo de lama. Uma CRI-AN-ÇA!

A volta deles para a USP também é linda. Ali da pra ver quanto de companheirismo e cumplicidade se constrói em cinco dias de aventura e superação. Eles chegam num clima de harmonia e alegria, sujos, com o cabelo todo grudado de quem passou dias sem tomar banho direito, queimados de sol, roucos, extenuados de tanto serem eles mesmos, 24 horas por dia, em meio a outras crianças e à natureza. Ele veio todo orgulhoso dizer que se tivesse ficado com a bike dele não teria conseguido acompanhar o mesmo “pelotão” dos amigos da escola que estavam no grupo. Ia ter que ficar com crianças mais novas. Nem pensar! E que então arrumaram uma bike melhor e maior para ele que funcionou perfeitamente. Em cinco dias ele tinha conquistado a experiência de meses. Veio mais maduro, mais seguro e orgulhoso de si. Pronto para a próxima. Ganhou de nós uma bike nova, à altura desse novo menino.

Nem titubeamos em enviá-lo na temporada seguinte. Dessa vez, em vez de três, o grupo da escola era de oito meninos que ficaram loucos para participar quando ouviram o relato dos três colegas pioneiros. Para terminar, vale a pena contar que a psicóloga do Theodoro ficou bastante impressionada com a evolução dele depois das últimas férias. Ela disse que os benefícios da aventura eram visíveis a olho nu. Uma palavra de especialista para atestar aquilo que nós já tínhamos percebido: ele tinha se transformado com a aventura na natureza.”







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