Prêmio Outsiders 2016

 

Em março deste ano, aproveitamos a edição dos Outsiders* para homenagear a maior atleta de aventura que o Brasil já teve: Cristina de Carvalho (1969-2015). Seja nas trilhas, nas corridas no asfalto ou em sua luta contra o câncer, essa guerreira nos ensinou a ir mais longe, sempre. Valeu, Cris!

 

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NOT HERE FOR THE VIEW: Cris na prova Volta dos Romeiros, em SP, em 2013 (Foto: Alexandre Cappi)

Por Caco Alzugaray, publisher da Editora Rocky Mountain

TODAS AS (VÁRIAS) VEZES que disse à Cris (ou a outras pessoas) que ela era como uma irmã para mim, achei que a referência não exprimia a força da nossa amizade, pois irmãos não têm, necessariamente, uma relação de alma. A nossa era. Na verdade, ainda é. Desculpe: tentei, porém não consigo escrever sobre a Cris sem falar da estratosférica força que nos uniu por 20 anos e que, nos últimos seis, nos unia em um quarteto, para mim, insuperável – Cris, seu marido e meu brother, José Caputo, minha esposa, Marie, e eu.

Cris era (e tem sido um exercício extremamente difícil escrever sobre ela com verbos no passado: sinto-me praticamente mentindo) uma pioneira e uma líder nata, daquelas pouquíssimas pessoas que precisam cuidar para que sua legião de admiradores não supere sua capacidade de tratá-la com carinho e dedicação, o que lhe era peculiar. Por que pioneira? Essa é fácil: ela simplesmente integrou e ajudou a formar a primeira geração de triatletas, a primeira geração de corredores de aventura e a primeira geração de corredores de montanha do Brasil. Tive a honra e o enorme prazer de estar ao lado dela e do Caputo nestas duas últimas ondas. Em todas, como enumerarei adiante (apenas o extrato, pois não caberia aqui), revelou-se uma campeã arrebatadora: o competidor a seu lado na linha de largada, por mais forte que fosse, sabia que ao final teria aquela mulher no pódio. E, muito provavelmente, em um andar acima do seu.

Líder: essa é ainda mais fácil de demonstrar. Se você é leitor da Go Outside, provavelmente também pratica algum esporte de aventura. Nesse caso, conheceu a Cris e deve ser, como eu, um de seus amigos babões, ou ao menos foi “atingido” nas mídias sociais pelos depoimentos da brutal (eu diria até inédita, para uma pessoa que não aparecia com frequência na Rede Globo) comoção que se deu em torno de sua morte e que deixou todos, de amigos a conhecidos, absolutamente chocados e tocados profundamente por sua breve e MARCANTE passagem. Como ela mesma gostava de brincar, “she was not here for the view” (“não estava aqui a passeio”, em uma tradução livre), frase que leu em uma camiseta minha e que se tornou seu jargão preferido por anos…

Cris também tinha outra qualidade única. Era como uma antena, um radar. Identificava de imediato uma alma boa e, na mesma hora, já captava e sintonizava sua frequência. Ao mesmo tempo, quando não gostava de alguém, era o caso de se ficar de orelha em pé, como fazem os cachorros: ela havia sentido algo que ainda não era visível para a grande maioria de nós.

Esse sexto sentido, para além de resumir sua personalidade especial – que fazia dela grande amiga de muita gente, a melhor esposa, mãe e filha que se possa imaginar –, também tornou-a a maior vencedora brasileira dos esportes de aventura que já tivemos. E é por isso que prestamos mais essa homenagem no Prêmio Outsiders 2016, repetindo a reverência da edição de 2007 – quando Cris foi Outsider ao lado das companheiras Shubi Guimarães, Nora Audrá e Fernanda Maciel, da equipe Atenah, primeira e mais importante equipe de corrida de aventura 100% feminina do planeta – , e da edição de 2010, depois de sagrar-se a melhor brasileira na lendária Ultra-Trail du Mont-Blanc (7ª colocada entre as melhores do mundo e primeira na sua categoria, aos 40 anos!).

Finalmente cito algumas de suas principais conquistas como esportista de endurance na natureza: no triatlhon, sua porta de entrada na vida esportiva competitiva, foi campeã brasileira e sul-americana, além de campeã da sua categoria e top 15 da elite mundial no IronMan do Havaí (1996), ladeando uma geração de atletas que tem Fernanda Keller e Alexandre Ribeiro (seu primeiro treinador) como contemporâneos.

Na corrida de aventura, também na primeiríssima geração do esporte no Brasil, ela liderou o ranking nacional por dois anos consecutivos com a equipe Atenah, vencendo quartetos de ponta (que tradicionalmente contam com a força de três homens) em provas internacionais. Na corrida de montanha, modalidade que abraçou nos últimos oito anos, além de alcançar a melhor colocação de uma brasileira até então na Ultra-Trail du Mont-Blanc (166 km), considerada a “Copa do Mundo” do trail running. Também é, ainda, a maior vencedora de todos os tempos do El Cruce (de 100 km, algo como a Copa América das trilhas): das seis vezes que largou, ganhou cinco – uma delas já diagnosticada com o câncer que a levou daqui – e garantiu um segundo lugar em outra. No Brasil? Basicamente vencia todas as provas que largava… Enfim, como queria demonstrar, she was no there for the view.

As vitórias como atleta não bastavam: ela precisava expandir os limites do próprio corpo levando a outras pessoas a oportunidade de alcançarem seus próprios objetivos. Para isso, criou a primeira assessoria esportiva especializada em mulheres, o Projeto Mulher, e o Núcleo Aventura, dedicado a preparar fisicamente todos aqueles que querem experimentar a intensidade dos esportes outdoor.

Desde 2007, mais uma vez ao lado de sua amiga Shubi, e contando com a minha parceria e a de outro grande amigo de aventuras, José Pupo, ela dirigia o Acampamento de Aventura Go Outside, hoje consagrado por promover a inserção de crianças (em sua maioria bem urbanas) nesse universo rústico que ela tanto amava.

Cris deixou esta dimensão às 23h50 do último Natal, em 24 de dezembro de 2015, e, como sempre, foi na nossa frente para a próxima aventura.

CRISTINA DE CARVALHO
NATURAL DE: São Paulo (SP)
IDADE: 46 anos (1969-2015)
ESPECIALIDADE:
Vencer desafios extremos e de longa duração.
PRINCIPAIS FEITOS:
Campeã mundial do IronMan do Havaí (1996); campeã brasileira e sul-americana de triathlon; líder do circuito de corrida de aventura (2005 e 2006) e melhor equipe brasileira no Ecomotion Pro (2006) com a Atenah; pentacampeã do El Cruce; campeã na sua categoria e sétima colocada no geral feminino da Ultra-Trail du Mont-Blanc (melhor classificação de uma brasileira até então); fundadora das assessorias Projeto Mulher e Núcleo Aventura e sócia do Acampamento de Aventura. Fomentou no Brasil a prática da corrida e das modalidades outdoor e de endurance ao longo de quase duas décadas, ajudando milhares de alunos e amigos a atingirem seus objetivos pessoais.

* Sobre o Prêmio Outsider:
Por mais de uma década, a revista Go Outside foca seu faro e experiência em apontar as personalidades do mundo outdoor que mais se destacaram durante o ano. Desta vez, não foi diferente: em sua 11ª edição, o Prêmio Outsiders fuçou os mares, a terra e o ar em busca de pessoas – atletas, ativistas, expedicionários e entusiastas da aventura – que expandiram os limites da vida ao ar livre no Brasil, mostrando a todos nós que a vida vai bem além das cidades. São gente como Adriano “Mineiro” de Souza, o segundo brasileiro a se consagrar campeão mundial de surf, Felipe “Foguinho”, da nova geração de skatistas feras do país, e Lucas Marques, escalador que tem levado o esporte a outras dimensões de desafio. Não é só de atletas que se compõe nosso prêmio. Também celebramos o trabalho de defensores do meio ambiente – como Niéde Guidon, que há 45 anos luta pela preservação da Serra da Capivara, no Piauí.







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