A skatista brasileira Leticia Bufoni, um dos maiores nomes desse esporte no país, tem impressionantes 2,3 milhões de seguidores no Instagram. Ali você pode acompanhar sua vida em competições e eventos de street, suas viagens pelo mundo com amigos celebridades e, também, vê-la muitas vezes mostrando o belíssimo corpo em biquínis ou decotes avantajados. Como outras atletas mulheres que são #digitalinfluencers, ela recebe para divulgar produtos em alguns de seus posts. Sendo assim, quanto mais seguidores e likes, melhor anda o negócio. Caso parecido ao da norte-americana Sierra Quitiquit, que ama postar fotos de sua vida cheia de estilo. Sierra é uma esquiadora de 29 anos de Utah e, como Leticia, parece ser uma mulher relax e desencanada, aberta a qualquer tipo de rolê. Em um momento, a skatista está curtindo uma cachoeira em Queensland, na Austrália, enquanto a esquiadora, em seu perfil, descansa numa van em uma road trip pelas Montanhas Rochosas.

Muita gente presume que a transformação de redes sociais em anúncios para venda de produtos – que, no caso das duas, vão de fones de ouvido a bebidas energéticas – seja o motivo para que postem tantas fotos com pouca roupa. Leticia já conquistou sete medalhas nos X Games e figurou como primeira atleta do ranking mundial em sua modalidade. Já Sierra é linda e ganhou dinheiro como modelo por quase uma década. Ambas se mostram claramente confortáveis em mostrar o corpo. Fossem elas apenas modelos, ninguém estranharia. Mas como as duas construíram nomes como esportistas extremas, suas fotos com pouca roupa muitas vezes atraem certo desdém de outros atletas de alta performance.

“Sierra é melhor como modelo do que esquiadora”, disse uma esquiadora profissional. “Mas ela sabe mesmo esquiar?”, rebateu outra. Isso tudo mesmo diante do fato de Sierra ter competido no Freeskiing World Tour e cravado na neve linhas alucinantes em filmes de produtoras especializadas no esporte, como a Sweetgrass Productions. No feed de Instagram da atleta, aparecem alguns comentários criticando- a, dizendo, em resumo, que a moça deveria se cobrir mais.

Dá para entender esse tipo de ressentimento. Para atletas que se dedicam a ciclos de treino exaustivos e duríssimas sessões de aperfeiçoamento da técnica, o sucesso de pessoas atraentes e espertas em se autopromover como Leticia e Sierra (e existem muitas pelo mundo hoje) pode parecer meio truque.

Alguns anos atrás, Andrew Bisharat, escritor especializado em escalada, postou no seu site, o norte-americano Evening Sends, um texto lamentando a “era das atletas-modelo” na escalada, surf, skate, esqui e outros esportes. “Se a meta é um patrocínio lucrativo, parece que há dois jeitos de atingi-la”, ele escreveu em um texto bastante compartilhado. “Você pode dar tudo de si para se tornar um dos melhores do mundo ou pode conquistar uma vasta legião de seguidores nas redes sociais sendo apenas bonito e fazendo qualquer coisa legal para mostrar sua beleza.”

A esquiadora profissional Lynsey Dyer, uma conhecida militante do esporte feminino, disse recentemente à Outside norte-americana que marcas passaram a valorizar mais a personalidade, acima mesmo do talento. “Há um milhão de meninas bonitinhas no Instagram recebendo dinheiro para colocar uma hashtag em um lançamento novo a cada semana, tendo como cenário alguma paisagem bonita”, contou a norte-americana. “Mas poucas são realmente feras em seus esportes.”

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Não estamos aqui para celebrar as selfies sensuais de Leticia ou Sierra. Como mulheres, mães e atletas dedicadas a nossos esportes outdoor, acreditamos que, dependendo da situação, essas imagens podem ser prejudiciais. Mas também já deu, independentemente do gênero de quem faça isso, tentar dizer às mulheres sobre qual seria a maneira correta ou errada de exporem sua imagem. Por tempo demais, atletas mulheres tiveram que seguir normas estabelecidas por federações esportivas dominadas por homens e aderir a padrões de beleza ditados por uma indústria comandada por homens. Na era digital em que vivemos, elas ainda precisam lidar com pressões enormes dessas indústrias, mas podem desenvolver carreiras independentes que permitem que vivam do lifestyle que escolherem. Em vez de criticálas por mostrar pele demais, é preciso dar liberdade para que sejam quem quiserem.

Da mesma maneira, estrelas do esporte masculino, como o waterman norte-americano Laird Hamilton e o jogador de futebol português Cristiano Ronaldo, também postam fotos “colírio” fora do contexto do esporte – e costumam passar longe de qualquer crítica. Reparei que atletas-modelo homens, como Tommy Puzey, um ex-ultramaratonista de elite que hoje modela para a H&M e parece ter dedicado seu Instagram para louvar a glória de seu abdômen rasgado, raramente recebem um olhar torto por aparecerem sem camisa.

Então por que tanto ódio contra mulheres como Leticia e Sierra? É justo dizer que elas estão usando seu sex appeal para receber uma atenção que não viria apenas por seu talento esportivo. Entretanto, para atletas outdoor mulheres, o desafio de ser percebida sempre exigiu mais do que serem talentosas em seus esportes. Graças às redes sociais (leia-se, principalmente, o Instagram), agora é possível monetizar essa atenção. As atletas interagem diretamente com os fãs, produzem as próprias sessões de fotos e agenciam suas marcas. Não é preciso validar 100% das fotos que elas postam para reconhecer e apreciar o signifi cado dessa mudança e desse empoderamento.

Quando perguntamos à Sierra sobre as fotos mais sexy de seu feed, ela disse que alguns dos posts são focados especificamente em patrocinadores de marcas de biquíni, enquanto outros promovem a imagem de uma mulher forte. “Passei por desafios pessoais imensos quando eu estava na indústria de modelo, me sentindo um peixe fora d’água por ser musculosa”, lembra. “Tive que lidar com muita coisa para chegar a um lugar onde eu realmente possa me orgulhar do que meu corpo é capaz.”

De acordo com Mary Jo Kane, diretora do Centro Tucker de Pesquisa sobre Mulheres e Meninas no Esporte, da Universidade de Minnesota, nós estamos atravessando uma mudança geracional de atitude sobre imagens sexualizadas. A pesquisa de Mary mostra que essas imagens alienam a audiência central de uma atleta e não fomentam o interesse no esporte, mas um número crescente de mulheres discorda. “Atletas mulheres – especialmente a geração mais jovem que está confortável com as redes sociais – dizem sem sentimento de culpa que ser bonita é poderoso”, conta Mary. “Pessoas mais velhas tendem a se ofender mais com imagens que sexualizam atletas mulheres, porque isso historicamente significou uma marginalização delas nos esportes.

Sierra é a primeira a admitir que não é a melhor esquiadora do mundo. Seu sucesso não deriva de vitórias em competições ou de manobras mais arriscadas. O público se sente atraído por ela própria. “Minha abordagem sempre foi de treinar duro, aprender novas técnicas e habilidades e usá-las para algo que fosse realmente meu”, disse.

É, em última análise, o que achamos atraente na moça. É comum pularmos suas fotos de biquíni – e muita gente não a segue por causa disso. Esse tipo de imagem não impede que conheçamos sua história como um todo, essa que ela está escrevendo ela mesma, com alegria. Recentemente, Sierra tirou uma foto de uma amiga esquiando na Noruega com pranchas de surf e wetsuits presos na mochila. Na legenda, escreveu sobre comer sanduíches de queijo na estrada e o medo de surfar em temperaturas congelantes. Fotos assim me fazem querer planejar aventuras em lugares onde nunca estive. E sabe o que mais? Essa foto teve o dobro de likes e três vezes mais comentários do que outra dela fazendo yoga de calcinha e sutiã.

“Minha maior base de seguidores é devido ao skate”

 

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Uma publicação compartilhada por Leticia Bufoni (@leticiabufoni) em 13 de Abr, 2019 às 11:51 PDT

A skatista brasileira Leticia Bufoni tem mais de 2 milhões de seguidores. É um fenômeno de mídia, e tudo o que ela faz desperta interesse: com quem namora, o que veste, para onde vai. Além, claro, de seu desempenho no esporte, como o 2° lugar no pódio que levou no campeonato mundial de skate, no Rio de Janeiro, no início deste ano. “Minha maior base de seguidores é devido ao skate e, consequentemente, meu lifestyle ajuda a fomentar esse alcance. A combinação de skate e estilo de vida é o que mostra exatamente quem eu sou, e talvez por isso meus seguidores curtam”, fala Leticia, que, como outras atletas, delega a uma equipe especializada a gestão de sua imagem.

“Hoje é muito difícil pensar em uma carreira esportiva de alto nível sem uma equipe por trás. Tenho uma estrutura que me permite focar e concentrar toda minha energia apenas em minha performance como atleta. Isso me deixa tranquila e faz com que eu possa maximizar meu tempo nos treinamentos e competições”, conta Leticia. “Acredito que minha imagem tem influenciado de uma maneira positiva o esporte, pois sempre recebo mensagens de apoio de meninas que se inspiram em mim.”

“Nunca apaguei nada das minhas redes sociais”

 

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Uma publicação compartilhada por Karina Oliani (@karinaoliani) em 1 de Set, 2018 às 8:15 PDT

O currículo da brasileira Karina Oliani, 36 anos, enche os olhos: a médica especializada em emergências em áreas remotas foi a brasileira mais jovem a escalar o Everest, consagrou-se bicampeã brasileira de wakeboard, tem recorde de apneia e ainda é piloto de helicóptero – para citar algumas de suas realizações outdoor.

Mas é difícil ignorar que Karina também é uma loira atraente com corpo modelado por horas de treino, eventualmente exposto em alguma foto de biquíni em seu Instagram – com cerca de 180 mil seguidores e hoje gerido por uma equipe, com sua supervisão. “Penso bastante nas fotos que postamos. Mesmo se for alguma foto de biquíni, é porque fui para aquela praia fazer algo legal, e a pessoa vai me ver na foto como me veria pessoalmente”, diz Karina, que defende que até um corpo em forma pode ser uma ferramenta de incentivo. “Faz diferença para muitas que acabam trocando o sofá por um treino, seja para ter um corpo mais bonito ou para fazer uma expedição”, fala.

Para ela, exemplos públicos de mulheres fortes são positivos, acredita a também produtora e apresentadora, que estreia uma série mundial de aventura e exploração científica lançada pelo Facebook. Recentemente, em uma foto sua de biquíni, ela escreveu, em tom de protesto e deboche: “O preconceito em relação às mulheres é fundamentado na história. Adoro isso! Qualquer surpresa pode ser mera competência”.

“Rotular uma pessoa por sua rede social é errado”

 

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Uma publicação compartilhada por Chloé Calmon (@chloecalmon) em 8 de Abr, 2019 às 11:27 PDT

A surfista brasileira de longboard Chloé Calmon, 24 anos, convive com a água desde criancinha e não é de hoje que lida com polêmicas sobre como atletas expõem ou deixam de expor suas imagens. “Sempre se falava que o surf feminino não tinha apoio no Brasil. Na época de crise no país, o corte nas verbas de marketing secou muitos patrocínios. Certos veículos de mídia falaram que algumas surfistas mantiveram o patrocínio porque eram modelos de Instagram com muitos seguidores. Eu mesma ouvi isso e deixo muito claro que tenho carreira e resultados. É por isso que estou colhendo esses frutos”, conta Chloé, que possui 207 mil seguidores no Instagram.

“O lifestyle está ao redor do esporte: quem surfa gosta de acordar cedo, curte praia, tem uma relação com a natureza. Com isso, o surf fica mais popular e podemos trazer ainda mais mulheres para o esporte.” Ela ressalta também que as redes sociais hoje acabam realizando a ligação entre atleta e fãs.

A surfista é bem clara sobre a relação entre estilo de vida e mercado. “Lifestyle é importante para patrocinadores, as coisas que fazem parte da minha rotina por causa do surf valem muito para as marcas, que querem vender produtos e ver as pessoas consumindo. Mas, além da foto bonita que eu posto, mostro também as dificuldades do dia a dia, a ralação de treino, o rosto queimado de sol”, conta.

“Posto e apoio as mulheres que querem postar”

 

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Uma publicação compartilhada por Pati Antunes (@patiantuness) em 4 de Nov, 2018 às 6:14 PST

A escaladora mineira Patrícia Antunes, 33 anos, faz parte da seleção brasileira de escalada e usa suas redes sociais para ser porta-voz de causas nas quais acredita. “Uma das minhas parceiras é a Poti Romã, uma empresa local de produção de lingeries. A dona é esportista amadora, ela entende a importância do esporte na sociedade e sabe o quanto é importante ajudar as mulheres a olharem seu potencial”, conta Pati, que, entre fotos de treinos e viagens de escalada, posta também fotos mais pessoais, como as de um ensaio que fez usando as peças da marca, junto a um texto em que fala sobre aceitação do corpo e amor próprio.

“Eu postaria as fotos de qualquer jeito porque sustento o movimento que aquilo está causando na minha vida: defendo a gente se olhar com menos julgamento, se olhar como a gente é, ser nossa melhor versão.” E dá de ombros para quem diz que ela só quer “chamar a atenção de marcas”. “É um tipo de comentário totalmente machista. Estou falando de coisas que também fazem parte do meu mundo, de como eu me sinto, sem ferir ninguém”, afirma.

Ainda assim, críticas são inevitáveis. “Uma mulher comentou em uma foto em que eu estava escalando de top de frente única que eu provavelmente nem deveria escalar bem. O Brasil é um país quente, escalo com a roupa que eu quiser”, questiona a atleta. “Incomoda uma mulher fazer esse tipo de crítica, mas a gente não pode se acostumar com isso. Estamos juntas no mesmo barco”, diz.

*Reportagem publicada na edição nº 158 da Revista Go Outside, de abril/maio de 2019







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