Mortirolo costuma causar arrepios até em atletas profissionais

Por Erika Sallum

No peculiar mundo do ciclismo de estrada, a simples menção da palavra Mortirolo costuma causar arrepios até em atletas profissionais. Os mais exagerados adoram dizer que a estreita estrada encravada no coração da Lombardia, no norte da Itália, é de longe a mais dura subida do mundo. Superlativos à parte, o fato é que escalar de bike essa pirambeira é tarefa para os fortes, destemidos ou — como eu — desavisados (que vim para cá fazer o já duríssimo desafio do Triplo Stelvio e achei que um Mortirolo antes não seria nada mal…).

Diferentemente de majestosas montanhas como o Passo Gavia (26 km) ou o Stelvio (25 km, dependendo da face), ambas na mesma região italiana, o Mortirolo é “curto”. São 12 km, porém com algumas das curvas e inclinações mais doloridas do ciclismo. Há diversas rotas para se chegar ao cume, mas a clássica — imortalizada em batalhas épicas do Giro d’Italia — começa em Mazzo di Valtellina. Os números e exageros variam, entretanto o consenso quase geral é que, para vencê-los, o ciclista precisa enfrentar uma média de 11% de inclinação, com trechos de até 18% ou 19% e ascensão acumulada de 1.315 metros. Não é pouca coisa.

São 12 km da mais pura sofrência ciclística (Foto: Erika Sallum)

Pois alguns dias atrás lá fui eu, meio sem saber o que me esperaria. Percebi certa tensão e risadas nervosas no pelotão durante o trecho bem plano de cerca de 30 km que liga a cidade de Bormio, onde estou hospedada, até Mazzo. Na parada rápida no pé do Mortirolo para tirar corta-ventos e comer, eram nítidas a apreensão e a ansiedade do grupo prestes a encarar aquela que está entre as subidas mais míticas do road cycling. A fama do lugar estourou a partir de 1994, quando a estrela italiana Marco Pantani atacou os adversários durante a escalada do Mortirolo, deixando todos para trás e protagonizando uma fuga dramática que até hoje é contada e recontada pelos compatriotas — que amam o ciclismo tanto quanto o futebol.

(Pantani teria posteriormente a carreira manchada por escândalos de drogas, mas seu carisma e as cenas cinematográficas no Mortirolo jamais serão apagadas da história do esporte.)

Lá pelo sétimo quilômetro da cruel subida, surge um monumento e faixas em homenagem a Pantani

Os primeiros dois quilômetros do Mortirolo são “leves”, não muito inclinados, ótimos para aquecer as pernas. Mas não se engane. A coisa começa a ficar feia logo depois. Plaquinhas em cada curva fazem contagem regressiva de quantas faltam até o topo (são mais de 30!). Para os europeus, a subida nem é tão bonita, com mata fechada e poucas oportunidades de admirar a paisagem montanhosa da Lombardia. Para nós, brasileiros, no entanto, não há como não amar a vegetação refrescante, a sombra oportuna, os passarinhos cantando e os poucos carros e motos que ali trafegam. Sim, o Mortirolo esbanja beleza, mesmo em meio à tanta crueldade!

Marcha leve e concentração de monge budista são exigidos nos trechos que ultrapassam os 18% — mais uma plaquinha terrível revela a inclinação, em tom certamente sádico. Nessa hora, a respiração fica mais ofegante e bate pânico: por quanto tempo mais eu consigo suportar esse sofrimento?! Há algo meio mágico ali: parece que Pantani enviou dos céus boas vibrações, pois os pedais continuam a girar, como que por encantamento.

Lá no cume, só uma pedra sem graça te cumprimenta pela façanha épica

A hora não passa, o desespero começa a bater. Melhor não ler mais as placas numerando as curvas. Foco no asfalto. O tiozinho italiano não esconde o desânimo ao me ver ultrapassá-lo, e eu tento esconder a empolgação de estar pedalando mais rápido que ele — o ciclismo tem dessas coisas.

De repente o olho não consegue ignorar uma nova placa: faltam apenas 8 curvas! A piramba alivia, e agora 12% de inclinação parece uma reta! Dá até para ensaiar uma pedalada fora do selim, à la Contador. O sorriso cola no rosto quando a curva número 5 é avistada lá em cima. Opa, rola até colocar uma marcha mais pesada que a 32! A dor na lombar também some rapidamente, talvez pela endorfina do momento histórico.

No cume, nada te recebe com glamour. Apenas um Mortirolo tosco pintado no chão e duas pedras de gosto duvidoso com sinalização de estética básica. Mas quem liga para isso no cume da mais dura subida do ciclismo profissional?!

Depois de tanto perrengue, você se sente um gigante das duas rodas. Com um sorrisinho no rosto, até entende a lenda que contam sobre Pantani. Ali na sofreguidão do Mortirolo, em determinado trecho bem inclinado, Il Pirata vira para seu gregário e diz, com cara marota: “Quando é que a gente vai começar realmente a subir?”.







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