Haenyeos são pescadoras artesanais sul coreanas adeptas do mergulho livre

Por Bruno Romano*

AS PEDRAS VULCÂNICAS são lapidadas pelo vento forte e pela força da água salgada, dando um tom dramático ao visual de Jeju. O cenário intimidador do litoral dessa ilha da Coreia do Sul não impede que as haenyeos se sintam à vontade. Prontas para o mergulho do dia, as mulheres partem para uma jornada puxada de pesca braçal, caminhando com habilidade – mesmo com roupas de borracha, óculos e pesos na cintura, carregando pés de pato, boias e redes artesanais. Ao vê-las em ação, não restam dúvidas: estão mesmo no seu hábitat natural.

Vestidas dos pés às cabeças, fica difícil identificar quem é quem. Mas, ao observar tudo mais de perto, a magia começa a ser revelada. É o conjunto de suas histórias pessoais, todas com uma profunda conexão com o mar, que formam um poderoso e particular coletivo de mais de 4.000 mergulhadoras. A enorme maioria está acima dos 50 anos, mantendo viva uma tradição que vem do século 17 e que, desde 2016, é reconhecida como patrimônio cultural intangível da humanidade pela Unesco.

Espalhadas por Jeju em diferentes grupos, as haenyeos (pronuncia-se rê-ni-os) sustentam suas famílias seguindo rotinas bem semelhantes. Toda a atividade, tão exaustiva quanto peculiar, chamou a atenção da documentarista carioca Lygia Barbosa, 50, e do fotógrafo paulista Luciano Candisani, 47, que encararam uma verdadeira imersão por três vilarejos locais para registrar a cena. Seus olhos (e lentes) captaram o que provavelmente seja a última grande geração de haenyeos.

A presença dos estrangeiros não muda a rotina dedicada das mergulhadoras. Cada grupo tem uma capitã, responsável por avaliar as condições do dia e decidir onde e quando os mergulhos vão rolar. As saídas pelos costões ou as investidas de barco em mar aberto são delicadas. As pedras escorregadias e o movimento da maré exigem perícia e atenção. O objetivo central é claro: procurar no fundo do mar moluscos, como polvos, e conchas, muitos dos animais específicos da região – sorahs, suguri, komegui e bomar. Além de encher os pratos nas suas casas com algas, peixes e polvos grande parte da coleta dos grupos, sobretudo o sorah, é exportada para o Japão, o que gera renda à comunidade.

As investidas em si costumam durar até cinco horas. E todas as haenyeos cumprem suas missões usando apenas o ar dos pulmões. Ao viver tudo de perto, Luciano ficou espantado. “A força delas não vem dos músculos, mas da sabedoria”, diz. “Seus corpos, que aparentam ser frágeis, têm uma desenvoltura incrível dentro d’água, e isso é muito bonito de se ver”, completa o fotógrafo, que já registrou populações tradicionais ligadas ao mar em vários cantos do mundo, do Brasil e América Central às Filipinas, um dos seus últimos grandes projetos antes da viagem à Coreia do Sul.

“Enquanto trabalham, as mergulhadoras entram em uma espécie de transe”, relata Luciano, que viu de perto sua concentração extrema, embalada por subidas e descidas constantes e por breves pausas com técnicas de respiração. Ao se prepararem, as haenyeos hiperventilam, emitindo um som característico, chamado por lá de sumbisori. No retorno à superfície, lançam outro barulho no ar, semelhante a um lamento.

Todo o processo é descrito por Lygia como um estado físico diferente. “A conexão delas com o lugar e com o grupo é muito forte”, conta. “Tudo é feito em sintonia, com extrema atenção e com uma preocupação grande com as demais, mas sempre começa e acaba com muita risada”, completa a diretora-geral da produtora Tru3Lab e autora de Haenyeo: A Força do Mar, documentário fruto da expedição dos brasileiros.

Lygia e Luciano se conheceram bem longe dali, no Pantanal, curiosamente um lugar afastado de um elo comum da dupla: a paixão pelo mar. Enquanto Lygia acumula boa experiência em natação de águas abertas, Luciano pratica há décadas vela e mergulho, o que ajudou nas gravações do filme. Mais que isso, foi a ligação mútua com a fotografia documental que os colocou lado a lado em Jeju. Documentar o processo criativo de Luciano e suas lentes virou o fio condutor de Lygia para contar a história das haenyeos – filme incentivado por um edital da agência sul-coreana KOCCA em parceria com Brasil e Coreia do Sul, exibido nos últimos meses pela Nat Geo e TV Cultura e que deve circular em festivais no futuro.

“De cara, a história já seduzia”, conta Lygia. “E, depois de fazer o filme, se tornou ainda mais surpreendente”, fala. Para se inserir no ambiente e quebrar a barreira inicial, Lygia levou um presente feito por um grupo de mulheres na Serra do Caparaó (ES-MG). Aos poucos, ganhou confiança e começou a acionar sua câmera, ainda de longe. “A maior resistência delas é dentro do mar, pois nossa presença parece atrapalhar o rendimento”, conta a diretora, que fez três meses de treinos específicos para a empreitada. Mesmo assim, não era fácil acompanhar o ritmo das haenyeos, como comprova Luciano: “Eu tive que me adaptar à zona de conforto delas”. Na prática, ele abandonou a ideia inicial de usar cilindros. “Foi ótimo, pois fiquei mais integrado ao ambiente e pude experimentar um pouco da verdadeira frequência dos mergulhos.”

Por trás do trabalho, Luciano estava interessado em entender se a coleta era de fato sustentável, um dos focos do seu trabalho. “Há impacto, como qualquer atividade do tipo, mas as haenyeos desenvolvem regras sustentáveis, parte de uma sabedoria natural construída com o tempo”, relata. “O que mais me impressionou é que a história vai muito além”, fala o fotógrafo. A percepção de Luciano tem a ver com a trajetória das mulheres de Jeju. E, para entender isso, só mesmo estando lá.

UM NAVIO PESQUEIRO atracado às margens da ilha divide a paisagem com um grupo de haenyeos que se prepara para mergulhar. O contraste da imagem chama a atenção de Luciano, fotógrafo da National Geografic e único brasileiro membro da Liga Internacional de Fotógrafos de Conservação (ILCP), um grupo mundial que tem usado o poder das câmeras e o talento de profissionais como ele para dar enfoque a temas urgentes para o planeta. Ao apontar seu olhar para a sustentabilidade, Luciano descobriu, junto de Lygia, uma incrível história de valorização humana. As haenyeos passaram de marginalizadas, por praticar uma atividade vista como “inferior”, a heroínas nacionais.

A revolução começa na resistência de várias gerações de mergulhadoras, passa pelo sentimento de respeito criado dentro da comunidade e alcança o despertar das autoridades sul-coreanas. Em outras palavras, o governo percebeu nos últimos anos a força da cultura dos mergulhos e passou a incentivar a prática – as roupas de trabalho, por exemplo, são fornecidas pelas autoridades. Há até um festival anual que celebra a vida das pescadoras, atraindo o turismo e gerando mais fonte de renda. “Antes ninguém se orgulhava desse trabalho, nem mesmo as famílias das haenyeos, mas o jogo virou completamente”, resume Lygia.

Isso não quer dizer, necessariamente, que o futuro das haenyeos seja longínquo. Poucas jovens ingressam na atividade, que declina em número de praticantes. Ainda que possa resistir nas próximas décadas, é bem provável que diminua. Para entender todo o contexto, os brasileiros viveram o dia a dia dos vilarejos Wollyeong-ri, Samdal-Ri e Seongsanri. Em todos eles, a mesma história se repete.

A alternativa ao mar é trabalhar no campo, um serviço que paga por colheita, dependendo da estação. Mesmo com o esforço considerável dos mergulhos, as haenyeos são unânimes em cravar que preferem o mar – algumas se divertem ao contar que inventam brigas com os maridos só para ir mergulhar. Entre as gargalhadas e os benefícios que a vida ativa na água traz à qualidade de vida, é verdade também que há tempos as mulheres trabalham pesado em Jeju.

Nas gerações anteriores, em períodos de guerra, a morte de homens da ilha foi considerável. Os sobreviventes chegaram a se casar com até três mulheres. Assim, grande parte do trabalho, seguindo a lógica local, acabava indo para elas. Criou-se até um ditado que diz que em Jeju é melhor nascer vaca do que mulher. As mais jovens conhecem bem o dito popular, o que as leva a procurarem oportunidades em cidades longe dali. Entretanto, no meio dessas transformações sociais, há um novo consenso. Agora as haenyeos são respeitadas.

“Além de um bom sustento, a atividade representou a libertação das mulheres, que são aceitas em seus grupos e podem ditar regras que não dependem dos homens”, analisa Luciano. “Acho que grande parte da força delas no mar vem desse sentimento”, conclui, admirado com o entusiasmo de senhoras mergulhadoras que seguem na ativa – de volta ao Brasil, ele busca agora incentivo para exposições fotográficas com o material captado. Lygia também sentiu o vigor da rotina haenyeo na pele. “Voltei com mais saúde, mais forte e feliz; estar ao lado delas é uma sensação indescritível”, fala.

Em uma cena marcante do documentário, um grupo de mergulhadoras canta karaokê na sala de uma casa simples à beira- mar, próxima a um local clássico de coleta. Do lado de fora, Luciano conversa com Hyun Sun-Jik, haenyeo de 90 anos. “Eu vivi a minha vida inteira no mar. O mar é minha casa, meu patrimônio, minha família”, diz Hyun, antes de uma antiga parceira de aventuras lhe interromper. “E você vai mergulhar até quantos anos?” Hyun não hesita na resposta: “Até os 100! Dá para pegar ouriço-do-mar com 100, não dá?”.

*Reportagem publicada na edição nº 151 da Revista Go Outside, maio de 2018.







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