De mestre para mestre

Ueli treinando escalada em gelo

Por Alexandra Kohler, do Neue Zürcher Zeitung*

LOGO APÓS A NOTÍCIA de que o suíço Ueli Steck, um dos alpinistas mais formidáveis ​​do mundo, perdera a vida em um domingo de escalada no Nepal, toda a comunidade de montanhistas ficou de luto. Enquanto diversos embaixadores do esporte expressavam sua gratidão pelas formas com que a “Máquina Suíça”, como Ueli era conhecido, havia influenciado suas vidas e carreiras, a notícia da morte também vinha carregada de um lembrete dos perigos inerentes desse esporte.

O lendário Messner

Em outras palavras, se isso aconteceu com alguém tão experiente e meticuloso quanto era Ueli, poderia se passar com qualquer um. Ou então, como afirmou o escalador norte-americano Alex Honnold: “Sempre haverá um grau de imprevisibilidade envolvido no que fazemos”. O sentimento também ecoou em uma entrevista com o italiano Reinhold Messner, que falou sobre a perda de Ueli a Alexandra Kohler, do jornal suíço Neue Zürcher Zeitung. Aos 72 anos, Reinhold é o maior nome desse esporte, reconhecido pela inédita subida ao cume do Everest sem oxigênio suplementar, além de ser pioneiro em escalar todas as 14 montanhas acima de 8.000 metros do planeta. A seguir, ele comenta sobre a tragédia.

O que passou pela sua mente assim que ouviu que Ueli Steck havia nos deixado?
Para ser bem honesto, foi uma enorme surpresa para mim. Eu não esperava que, aos 40 anos e com o seu altíssimo nível de experiência em montanhismo, Ueli pudesse sofrer uma queda nesse momento de sua carreira. Ele era do tipo de cara que sabia exatamente o que estava fazendo.

A queda de Ueli ocorreu no Nuptse (de 7.861 metros), montanha perto do Everest, uma área que você conhece bem. Como avaliaria a dificuldade dessa escalada?

Ao que parece, ele estava planejando escalar o Nuptse pela face norte da montanha, uma rota que não deve ser subestimada. E ainda não é claro para mim por que ele teve esse desejo do Nuptse em primeiro lugar. Antes, Ueli havia anunciado que estava à procura de uma rota que ligasse o Everest ao Lhotse, o que explica a ideia de se aclimatar na região. A única explicação que posso imaginar, portanto, é que ele estava visualizando a chamada “ferradura”: fazer o cume do Nuptse, do Lhotse e do Everest na mesma expedição. Não preciso nem dizer que se trata de um desafio significativo no montanhismo. Muitos alpinistas, aliás, sonham em realizá-lo.

Ueli no Everest, em abril de 2012

Ueli não chegou a anunciar que a ferradura era sua intenção, certo?
Não. Há uma tendência comum em todos nós, montanhistas, de tornarmos públicas as intenções, digamos, mais modestas. Assim, quando conseguimos cumprir algo mais ambicioso, podemos posteriormente anunciar nosso sucesso. A ferradura em si é extremamente difícil. Até hoje ninguém fez isso. Mas, se alguém seria capaz de fazê-lo, apostaria minhas fichas em Ueli.


Ueli foi um alpinista que testou novas fronteiras do esporte e assumiu enormes riscos. Você acha que ele foi longe demais?
Não é uma questão de tomar uma decisão certa ou errada. É uma questão de saber se uma escalada é possível ou não. E Ueli foi uma pessoa que tornou possíveis coisas que não eram realizáveis antes. Nos meus tempos, dez horas já era considerada uma subida bem rápida da face norte do Eiger [3.970 metros, nos Alpes suíços]. Seu recorde de 2h23 para essa escalada era absolutamente impensável naquela época. Ueli sempre teve aspirações ousadas e estava em constante evolução, razões pelas quais eu o admirava. Mesmo assim, eu nunca me senti instigado por suas expedições de escalada em velocidade.

Ueli durante uma de suas muitas ascensões velozes


Por quê?
Para mim não é tão importante se alguém escala o Eiger em três ou dez horas. Fiquei muito mais impressionado, por exemplo, quando Ueli conseguiu escalar todos os 82 picos acima de 4.000 metros nos Alpes em um único verão. Nos últimos 15 anos, sua influência no esporte foi algo realmente essencial.

Você disse certa vez que um bom alpinista precisa ser forte e rápido se quiser ter maiores chances de sobrevivência. Você acha que o que ocorreu com Ueli desafia essa teoria, já que ele não era apenas rápido, mas extremamente rápido, o que o colocava em situações de grande risco?
Qualquer um que testemunhasse Ueli escalando em alta velocidade rumo ao cume do Eiger podia sacar na hora que ele estava no controle de suas ações. Ele se movia com imensa precisão e segurança. Ainda assim, um elemento inerente de risco sempre existirá. Se uma grande pedra cai lá de cima e te atinge, você vai morrer. Entretanto há uma regra básica: uma pessoa só deve tentar algo que seja capaz de executar. Isso significa que se deve ficar um pouco para dentro da margem do limite pessoal. Só o alpinista sabe dizer onde fica esse limite. É por isso que, quando falamos dos riscos que os outros decidem tomar, não há espaço para julgamentos.


Quão desafiante é ser um alpinista de elite hoje, quando todas as grandes montanhas foram escaladas e todas as “face norte”, conquistadas? Nos dias atuais, montanhistas pró precisam procurar projetos com alto risco de vida para receberem alguma atenção?
Isso é verdade se olharmos para o fato de que, antes, havia menos alpinistas muito bons, em comparação com hoje. Era um pouco mais fácil se destacar. Atualmente, a lista de escaladores profissionais é extensa. Por outro lado, viajar é mais fácil agora do que costumava ser, e tudo é mais acessível também. Para muitas pessoas, tornou-se viável voar para o Himalaia. Há também muito mais patrocinadores no alpinismo e nos esportes de montanha em geral, logo há mais dinheiro envolvido. É verdade, porém, que para expandir os limites agora é necessário fazer pelo menos uma destas três coisas: a escalada precisa ser mais difícil, mais perigosa ou mais exposta. Quanto mais experiência se tem, mais você pode expandir esses limites. Estou absolutamente convicto de que Ueli tinha um forte impulso interno para continuar evoluindo. E que ele estabeleceu padrões muito elevados para si mesmo.

*A Go Outside e a Outside norte-americana agradecem ao jornal Neue Zürcher Zeitung por permitir a publicação deste artigo.

 







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