Aguçando os sentidos

Expedição desbrava cânion inédito na Chapada dos Veadeiros (GO)

Por Ion David*, Mônica Esteves, Marcio Ramos e Luiz Viana

A Chapada dos Veadeiros é um daqueles destinos turísticos no Brasil que devem ser conhecidos. Além das belezas naturais que afloram por toda parte neste pedaço do Goiás, há outros motivos que justificam a visita: natureza, cachoeiras, misticismo, espiritualidade, vida saudável e até contatos com extraterrestres fazem da região um local único de convergência de várias tribos.

Uma destas tribos é o grupo Veadeiros Canionismo, que se reúne eventualmente para descidas de cânions. Entre os dias 4 a 11 de setembro de 2016, alguns canionistas desse grupo saíram para mais uma expedição por lá, em quatro cânions da região: Cânion do Garimpão, Cânion do Jardim, Bocaina do Farias e Cânion do Borrachudo.

Mas o que é mesmo canionismo? É descer um rio confinado em paredões, a pé, vestindo roupas de neoprene e mochilas de apoio, vencendo os obstáculos à medida em que vão surgindo. O acesso inicial geralmente é por trilha. A seguir, caminha-se por dentro d’água ou sobre blocos de pedras, desescalando, saltando em poços, nadando por eles e, quando surge uma cachoeira, a descida é de rapel. Há praias, montanhas e outros atrativos naturais… Cada cânion possui suas características e beleza que os tornam únicos.

Nesta última aventura descemos, pela primeira vez, o Cânion do Garimpão, dentro do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Foi uma importante vitória não só para o canionismo brasileiro, como também para todo o ecoturismo no país – uma conquista da ‘anfitriã’ dessa expedição, a Travessia Ecoturismo. Importante frisar que a negociação entre a Travessia e o ICMBIO – órgão que administra os Parques Nacionais brasileiros – durou inacreditáveis 12 anos, tempo necessário para estudos de impactos ambientais e apresentação de um minucioso projeto de implementação de vias e de segurança. Mas a espera valeu a pena. A descida pelo rio inicia-se logo após as Corredeiras do Rio Preto, um atrativo bastante conhecido dos praticantes de trekking que visitam o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Primeiro, um rapel leva os canionistas para dentro de uma boca escura em meio às enormes pedras amontoadas por onde corre o rio. Saindo do buraco, as belezas vão se sucedendo a cada obstáculo transposto na caminhada sobre o leito rochoso.

A próxima descida de corda é na Cachoeira do Carrossel, um enorme complexo de cachoeiras e poços para banho. A descida prossegue por um trecho a nado confinado, cercado por paredões nas duas margens. Então, uma parada estratégica para um lanche em um local bem pouco acessado: o topo do Salto do Garimpão. Popularmente conhecido como Salto 80, ele compõe, com seu ‘irmão maior’, o Salto 120, uma imagem conhecida do Parque e um cartão postal da Chapada dos Veadeiros. A sensação é de não existir um lugar melhor para finalizar a tarde, com uma descida de 68m muito técnica na corda, farta em água, que é fracionada em duas bases intermediárias. Entre uma parada e outra no meio da descida, uma olhada para trás presenteia com uma vista maravilhosa do poço e do Vale do Rio Preto. Finalizando a atividade no Parque, a travessia a nado por uma enorme piscina, antes de retornar pela trilha de visitação.

No dia seguinte, fomos à vila do Moinho, distante cerca de 10 km da cidade de Alto Paraíso. Ali encontramos o Cânion do Jardim. Uma caminhada sob a sombra de um cerrado bem preservado nos levou à entrada do Rio Areal, que corta este cânion. Nesta época do ano – fim do inverno – o rio está baixo, o que não tira sua beleza, além de nos possibilitar a experiência em um cânion mais seco. A mata fechada permitiu uma descida refrescante, facilitando o grande número de trabalhos em cordas que são necessários nesta progressão. Ao longo de boa parte do trajeto, fomos acompanhados por macacos prego curiosos, que nos observavam pelos galhos nas partes altas do cânion. Um lugar mágico que nos levou de volta à infância por uns instantes.

Em seguida fomos ao Cânion do Farias, o mais distante desta expedição. Ele está situado no município vizinho de São João d’Aliança, e é de difícil acesso. Veículos 4×4 são altamente recomendados, o que afasta alguns aventureiros à procura de cachoeiras e camping selvagem. Mas para os praticantes do canionismo, estes obstáculos são o preço a pagar, principalmente por se tratar de um dos cânions mais famosos do Brasil. A fama criou muita expectativa, porém as surpresas do dia começaram muitos quilômetros antes de entrarmos no rio. Ainda na estrada poeirada que corta as lavouras da região, curtimos um safári no cerrado. Um enorme lobo guará exibia-se em plena luz do dia, vasculhando a palha seca do milharal. A empolgação do grupo ao vê-lo foi demais, e o lobo, bem menos empolgado com a nossa chegada, virou-se e seguiu seu caminho pouco tempo depois. Uma curva adiante e outra surpresa: cerca de quinze emas, assustadas, corriam desordenadamente pela terra seca. Pouco mais distante, um ágil veado catingueiro sumia saltitando no cerrado remanescente. Com o dia ganho, seguimos rumo ao cânion. O Bocaina do Faria é um cânion conquistado há mais de dez anos, um roteiro clássico do canionismo brasileiro, tanto pela dificuldade técnica quanto pelos seus paredões confinadíssimos, que o torna praticamente uma caverna em alguns trechos. É uma formação realmente única.

Para finalizarmos a expedição, fomos em direção ao Cânion do Borrachudo, na região da Chapada Alta, estão as terras mais elevadas do estado de Goiás. Este atrativo foi aberto oficialmente há pouco tempo para a exploração de cachoeiras e trilhas, mas vem provando ser um promissor destino para a prática do canionismo. Fomos recebidos pelos moradores da propriedade, seu Augusto e sua família. Fazer o visitante sentir-se em casa é a especialidade deles. Um grande gramado para camping, chalés, banho e comida boa tornam o local uma base perfeita para se explorar os arredores dos córregos Borrachudo e Buriti.

Assim que chegamos, arrumamos as coisas para que seu Augusto e seu filho, Rogério, pudessem por as bagagens nas mulas e levá-las para a base avançada, onde acamparíamos no dia seguinte. Em seguida fomos descer a primeira parte do cânion. Quatro descidas longas e bem íngremes, quase contínuas, apenas intercaladas por poços para banho. Um total de 200m de desnível. Vencido o desafio, subimos por trilha de volta ao camping. Fechamos o dia com um autêntico jantar goiano de roça: salada, arroz, feijão, carne de panela, frango ensopado, abóbora e pequi cozido. E. como digestivo, nada melhor do que a também autêntica noite de acampamento: fogueira, risadas, vinho e muita música ao som de violão e flauta.

No segundo dia desta etapa, partimos do acampamento até o segundo trecho do cânion que acessamos por outra trilha, cortando uma linda parte de cerrado quase intocado. Chegando ao rio Borrachudo, nos equipamos e seguimos por algumas cachoeiras e poços até chegarmos a dois surpreendentes tobogãs em série. O primeiro, menor, que carinhosamente chamamos de “toboguinho”, foi utilizado para relembrar as técnicas de segurança de descida neste tipo de formação. Depois do treino, hora de descer o maior, o “tobogão”. Uma rocha lisa e inclinada por onde o rio passa e despenca dentro de um poço, quatro metros abaixo. Há a opção de descer fazendo rapel na cachoeira. Na sequência, avistamos algumas formações rochosas curiosas onde camadas sedimentares foram forçadas por algum movimento geológico e que, ao invés de fraturarem como esperado, entortaram, formando curvas impressionantes.

Chegamos ao acampamento, poucos metros acima da Cachoeira do Sol. Após o banho no rio, preparamos a comida, jantamos, curtimos um pouco a “noite chapadeira”, iluminada pela lua, e logo nos recolhemos nas redes abrigadas pelo céu da Chapada. Dormimos às margens do cânion, em redes penduradas em árvores, olhando o céu negro pontilhado de estrelas… Encantados. E não existe maior sensação de comunhão com a natureza do que acordar ouvindo os pássaros cantarem. Abrir os olhos e se deparar com os lindos paredões do cânion, ornados com a belíssima vegetação do cerrado.

Nosso último dia começou com uma linda descida pela Cachoeira do Sol, fracionada em duas partes, sendo a primeira em terreno seco e, a segunda, pela água. Este trecho do Borrachudo é o ‘Beach Park’ da Chapada: descidas em corda pela água, pelo seco, muitos trechos de progressão por salto e natação por poços impressionantes. Seguindo o rio, nos deparamos com uma pequena formação em forma de concha que lembrava uma capela de santo. Que imagem! Chegamos ao trecho final, dois belos rapeis de 25 metros, cada em um cânion confinado em meio a enormes paredões.

Além de termos desfrutado desses prazerosos atrativos neste cânion exuberante, com muitos saltos e tobogãs, e apreciado suas formações geológicas incríveis, ao finalizarmos a descida, no terceiro dia, encontramos seu Augusto com as mulas cargueiras, que estava ansioso para nos levar a um lugar que ele mesmo havia descoberto recentemente: uma belíssima ponte de pedra, gigantesca, ladeada por uma incrível caverna, com um salão imenso, vários túneis, estalactites, estalagmites e uma colméia de abelhas incomodadas com a rara presença de pessoas por ali – fato que nos deixou apreensivos e preocupados. Após tantas experiências que a natureza nos proporcionou, hora de retornar ao acampamento base. Dez quilômetros de trilha morro acima, em percurso muito bem projetado, onde o desnível de 400 metros pareceu ser mais generoso do que na maioria das trilhas. A Chapada nos ofereceu um entardecer agradável e avermelhado de seca, com vistas para seus campos de cerrado, o Vale do Borrachudo e a Serra Geral do Paranã ao fundo. A noite nos alcançou no final da trilha sem nos incomodar, e felizmente chegamos bem ao acampamento. Claro, com os pés inchados e latejantes, os ombros cansados pelas mochilas, os rostos queimados de sol, mas com um sorriso no rosto que teimava em não nos abandonar.

Ao longo de seis dias, desfrutamos da agradabilíssima companhia de nossos amigos canionistas – Mônica, Raquel, Ion, Marcelo, Eder, Márcio, Ricardo e Dado – contando piadas e dando risadas. É incrível como estar em áreas remotas, praticando uma atividade que envolve certo risco, une as pessoas, tornando-as quase uma família. Ao mesmo tempo, tanta endorfina, tantos saltos e tobogãs e tantas visões exuberantes aguçam a diversão, em um grau difícil de igualar e descrever.

(Ion David é fotógrafo e guia de canionismo pela Travessia Ecoturismo. É um dos maiores incentivadores da modalidade no Brasil, com inúmeras conquistas no currículo) 







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