Meu primeiro cume andino


Bons tempos: Pedro, Maximo e os dois amigos argentinos

Por Pedro Hauck, do site Alta Montanha

O Cordón Del Plata é uma pequena cadeia de montanhas andinas localizada na Província de Mendoza, no oeste da Argentina. O local, considerado um paraíso para o montanhismo de altitude, entrou para minha vida meio sem querer. Quando eu tinha 18 anos, lancei-me em uma viagem transformadora. Com pouco dinheiro no bolso e muita vontade de conhecer o mundo, me joguei na estrada de carona com Maximo Kausch, e juntos percorremos 10 mil quilômetros na mais precária condição. O Cordón Del Plata foi exatamente minha primeira experiência andina, em uma jornada que durou 5 meses.

Avistei os picos nevados dessas montanhas pela primeira vez dentro da cabine do caminhão do Sidnei, caminhoneiro de Foz do Iguaçu que nos pegou na estrada, nos levando de San Luis até Mendoza. Ver os Andes pela primeira vez foi algo marcante, ainda mais daquela maneira e ali na pampa árida a centenas de quilômetros da “grande barreira”. Enquanto íamos conversando no caminhão, eu enxergava nuvens brancas no horizonte, que foram se desenhando enquanto nos aproximávamos. A cena foi, para mim, uma grande surpresa.

Outra bela surpresa revelou-se Cordón Del Plata. Como todos os marinheiros de primeira viagem, nós não conhecíamos bem as montanhas. Nosso destino era o famoso e inalcançável (por causa do preço) Aconcágua. Sem grana para a permissão, descobrimos o Plata e fomos para lá de carona. Lembro-me de ter conseguido uma carona que nos levou para um lugar errado, e tivemos que andar bastante a pé para chegar à estrada de acesso até a montanha. Mesmo com essas dificuldades, fiquei impressionado com a paisagem. A primeira noite na montanha já foi em um local mais alto que qualquer lugar no Brasil: Las Veguitas, a 3.200 metros de altitude, é um grande anfiteatro gramado onde nascem diversos rios, com ótima grama para acampar.

O segundo acampamento, Piedra Grande, não ficava muito longe, mas era necessário subir sem pressa para deixar o corpo se acostumar com a altitude. Caminhamos na companhia dos irmãos argentinos Leonardo e Alejandro, que se juntaram a nós na montanha. Naquela tarde, fiquei no acampamento arrumando nossas coisas e costurando roupa rasgada, e o Maximo subiu até o acampamento base da montanha Salto, de onde veio com notícias. Uma expedição argentina estava lá e contou a ele as dificuldades da escalada. Apesar de botarem medo, eles foram gente fina e deram um pouco de queijo para o faminto Maximo, apelidando-o de “Animal” por causa da disposição e empolgação com a montanha.

No dia seguinte nos encontramos com esses argentinos. Estavam bravos porque queriam subir a face Sul do Cerro Plata, mas foram impedidos por um fazendeiro. Foram então pelo lado normal, mas nem fizeram o cume. Contaram-nos um monte de histórias medonhas de que lá em cima: não havia ar e que qualquer erro levaria à morte. Os irmãos argentinos que nos acompanhava ficaram ressabiados. Leo, que tinha uma bota semi-rígida (muito melhor que as nossas), mostrou-a para os experientes montanhistas e eles disseram: “Impossível subir com isso, você vai congelar o pé!”. Tive um frio na barriga nessa hora.
Sem dificuldade, embora estivesse com os 40 quilos de equipamentos nas costas (pois na mochila levava tudo para os meses de viagem restante), cheguei ao acampamento Salto, de onde pude contemplar a natureza. Pela primeira vez na viagem toquei o gelo no glaciar que fica na base do Cerro Rincón.


Recordação: Pedro Hauck com 18 anos, na jornada andina

Naquela noite ventou mais do que o normal na montanha. Dormi muito mal, tive dores de cabeça e alucinações por causa da altitude e diferença de pressão. Nessas condições subiram ao acampamento uns montanhistas de Mendoza. Como era sexta-feira, eles decidiram fazer um “atacão” de fim-de-semana no Plata. Dos três que subiram, um já desceu no sábado de manhã com dor de cabeça e dois seguiram adiante.
No meio da tarde, desceu um montanhista, solitário e cansado, que mal nos cumprimentou. Ele acordou horas mais tarde preocupado com o companheiro que não regressara. Ficou um tempo procurando até que, anoitecendo, percebemos que o cara podia estar em apuros. Fomos então procurá-lo, encontrando-o horas mais tarde já deitado no glaciar do Rincón, totalmente fora da rota e desorientado. Mesmo salvando a vida do experiente montanhista, fomos tratados com indiferença por não termos equipamentos para subir a montanha. Nossa moral, no entanto, estava alta e já sentíamos preparados para fazer cume.

Exceto pelo ocorrido com o montanhista perdido, foram dias calmos no acampamento Salto. Nessa época o Cordón Del Plata não era popular e pudemos sentir o significado da palavra solidão. O bom de ter outros montanhistas que desistiram foi que assim conseguimos ter comida suficiente para ficar mais tempo na montanha. Como essa foi nossa primeira experiência, não calculamos direito a quantidade de comida exata para fazer ascensão e já estávamos passando fome de tanto economizar. Apesar de botarem medo na gente, aqueles montanhistas experientes nos deram comida para continuar tentando.

Assim, no dia 8 de fevereiro de 2000, junto com os irmãos argentinos, empreendemos nosso ataque ao cume do Cerro Plata. Acordamos meio tarde para a ocasião (novamente falta de experiência) e só fomos sair às 7h15 da manhã, tarde para empreender o ataque ao cume de uma montanha de quase 6 mil metros (na época acreditava que o Plata tinha 6300 metros).

Compensamos o atraso impondo um ritmo forte e rapidamente alcançando a crista que liga o Cerro Vallecitos com o Plata, a mais de 5 mil metros de altitude. Ali fizemos uma parada onde compartilhamos nosso chá quente com os irmãos argentinos. Eles já estavam sem água e, solidários, deixamos nosso chá com eles – um erro grande, pois mais tarde fiquei sem água por conta da outra garrafa que levava ter congelado.
Após essa crista, começamos a subir mais lentamente, até que a atividade se tornou penosa e difícil, combinando a indisposição física com pensamentos que perturbavam a paz. Era difícil entender o que acontecia para uma pessoa que nunca havia experimentado a altitude e que, além disso, tinha medo do que havia lido e ouvido dos outros. Não à toa existe todo um apelo da mídia para mistificar as montanhas como algo mortal.

Parando para descansar, vimos os irmãos bem abaixo dar meia-volta. Nós, no entanto, não víamos essa possibilidade, tanto é que mesmo diante da dificuldade não tocamos no assunto, embora nossas consciências pedissem cautela.
Já era tarde para uma ascensão como aquela. O relógio marcava duas horas e eu já enxergava o tempo piorar, com nuvens subindo e o medo pesando na consciência. Coloquei meu relógio para despertar a cada 15 minutos toda vez que parávamos, mas era estranho como o tempo corria desigual, pois bastava eu sentar e que o relógio já disparava. Houve vezes que logo depois de desligar o alarme, ele tocava na seqüência. Percebi que eu adormecia a cada vez que parava!

Sabendo que isso poderia ser ruim, resolvi empreender a caminhada sem descanso, me opondo ao Maximo. Após alguns passos, notei aquele fantasma levantando atrás de mim e me seguindo penosamente. Assim foi não sei por quanto tempo, até que ziguezagueando encosta acima encontrei um estranho objeto vermelho no meio da neve e percebi que era o destroço de um helicóptero.

A história do helicóptero do Plata é bastante famosa, foi resultado de uma tentativa desastrosa de pousar no cume da montanha. Eu sabia dessa história e ver aqueles destroços me despertou: Eu estava ao lado do cume!
Naquele momento, a dor de cabeça e o cansaço sumiram. Caminhei rapidamente até o ponto mais alto da montanha e comecei a preparar os registros do episódio tão especial: meu primeiro cume andino!

Enquanto isso, Maximo veio atrás lentamente, sentou-se ao lado da cruz que marcava o cume do Plata e ali ficou. Avistei uma luva largada no chão, achei que poderia usá-la, já que eu tinha apenas uma luva de motoqueiro. Quando me agachei para pegá-la, Maximo vomitou e usou aquele que seria meu futuro equipamento para limpar a boca… Quase inconsciente, Maximo estava com todos os sintomas de Mal Agudo de Montanha.

Tirei algumas fotos e logo empreendi a descida. Após 500 metros verticais, Maximo já estava bem, melhorando consideravelmente a ponto de começar a correr montanha abaixo e me deixar para trás. Cheguei ao acampamento bem mais tarde que ele, exausto, enquanto Maximo esbanjava preparo físico.
Esta foi nossas primeiras experiências em montanhismo de altitude, com direito a muito perrengue, sustos e descobertas, uma amostra do que seria nosso montanhismo dali pra frente.

No diário que escrevi durante a viagem, que batizamos de “Odisséia Austral”, há na primeira capa um mapa desenhado à mão do roteiro que fizemos com a data de início da aventura: 18/01/2000. Passado tanto tempo, mal lembro o dia em que voltei pra casa, no lugar onde aparece a palavra “fim”, está escrito a lápis: “Nunca terá um fim”. Acho que acertei no prognóstico.

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