O APOCALIPSE, para mim, não é um ataque de zumbis que cozinham sua carne a altas temperaturas antes de te devorar semivivo. Na verdade, o perigo é invisível, na forma de microorganismos patogênicos.

Meu apocalipse se revelou como uma tortura incomparável pela qual passei recentemente, na região central do Alasca, nos EUA. Foi depois de eu ter comido carne de urso mal passada, contaminada pelo parasita Trichinella spiralis. Esses nematódeos se alojaram no meu organismo e liberaram uma prole gigantesca, criando túneis nas paredes do meu sistema vascular até chegar aos tecidos musculares. Os problemas gastrointestinais que se seguiram foram horríveis, mas não chegaram aos pés das dores nos músculos. Parecia que um grande acidente com pesos de academia havia destruído todo meu corpo. A urina cor de Coca-cola era um indício visual de como meus músculos conquistados com tanto sacrifício estavam, literalmente, indo por água abaixo.

Ë GUERRA: Parasitas da malária atacando células do sangue

Os “vermes” foram os invasores mais recentes de uma série de parasitas e bactérias microscópicos que se infiltraram no meu organismo nos últimos anos. Em termos de gravidade, o destaque desses episódios de horror com microorganismos patogênicos foi o período da Doença de Lyme, provocada por uma bactéria transmitida por picada de carrapato, que se manifestou em sintomas como amnésia e terminou alguns agonizantes meses mais tarde, com quatro semanas de antibióticos por via intravenosa administrados por um cateter que ia de um furo no meu braço até meu coração.

Antes da Doença de Lyme, tive um caso complexo de giardíase, uma infecção intestinal provocada por um parasita que me fez ir ao pronto-socorro duas vezes no mesmo dia e ficar internado por quatro noites. Depois, veio a triquinose. As larvas desses parasitas agora vivem em meus músculos, protegidas por cistos calcificados. Elas não podem me fazer mal de novo, embora transformem em um inferno a vida de qualquer zumbi que consuma minha carne não cozida e, assim, libere a “peste”.

Muitos desses problemas envolvendo microorganismos patogênicos surgiram como parte dos riscos que corro por causa do meu trabalho. Eu apresento uma série de TV chamada Meat Eater (Comedor de carne) no canal norte-americano Sportsman Channel, que explora o universo da caça e das comidas selvagens. Sempre gostei de passar o máximo de tempo possível na natureza e nunca me sinto mais feliz do que quando vou para minha casinha sem eletricidade no sudeste do Alasca e preparo filés de salmão, pescados com meus irmãos. Esse estilo de vida me colocou em todos os tipos de perigo, incluindo um ataque de alces e de um de urso, além de algumas lutas com javalis. Entretanto as criaturas microscópicas tiveram mais sucesso em suas tentativas de me derrubar. Escute o que eu digo: qualquer pessoa que diga que não se preocupa com essas criaturas minúsculas não passou tanto tempo na natureza.

POLÊMICO: O norte-americano Steven Rinella, autor deste texto e apresentador do programa de TV Meat Eater

ANOS ATRÁS, fui a uma palestra de um montanhista que voltara recentemente do Everest. Durante a palestra, ele falou sobre um estudo do final dos anos 1990, em que os pesquisadores orientaram os participantes a assistirem a um vídeo de seis pessoas brincando de arremessar duas bolas. Os voluntários receberam a tarefa de contar quantas vezes a bola passava de mão em mão entre as pessoas que jogavam, identificadas por camisetas brancas ou pretas. Enquanto isso, no vídeo, uma mulher vestida de gorila se juntou ao grupo no meio do jogo. Metade dos participantes não viu o gorila devido ao que os pesquisadores descrevem como cegueira por desatenção, ou falha em perceber estímulos inesperados que estão bem a nossa vista. O alpinista deu sua própria interpretação sobre o experimento: aqueles que viram o gorila sobrevivem na montanha; quem não viu, não sobrevive.

Eu iria mais longe e diria que as pessoas que não veem pequenas coisas que cruzam seu caminho rumam em direção ao desastre. Um cisto de giárdia equivale a 1/50 do tamanho do ponto final dessa frase. As larvas de Trichinella spiralis são bem pequenas também – não se pode vê-las a olho nu. Precisei informar o diagnóstico de triquinose ao Departamento de Saúde Pública local, que me pediu para lhe fornecer um pedaço da carne de urso que eu havia ingerido para a realização de testes que verificariam as causas da minha infecção. O resultado foi que a carne continha cerca de 360.000 larvas para cada 450 gramas. O fato de ela ainda assim ter um aspecto suculento é a prova da invisibilidade dos parasitas.

Microameaças dificilmente estão confinadas à vida selvagem. Do resfriado comum ao vírus Ebola, vários perigos podem te atacar toda vez que você aperta a mão de uma pessoa. Porém na natureza existe uma ampla gama de predadores em miniatura, bizarros, que querem, desesperadamente, dar um salto do mundo animal para o mundo humano. Eu poderia ficar falando horas sobre o tema, tentando nomear todos eles: febre maculosa, leishmaniose, raiva, malária, criptosporidiose, hantavírus, tularemia, leptospirose…

Eu já estive ao ar livre neste mundão de Deus o suficiente para ter acumulado uma experiência básica sobre a maioria dessas doenças – um fato que minha esposa, Katie, usou contra mim quando contraí triquinose. “Você deveria ter vergonha. Você sabe sobre esse tipo de problema!”, disse ela. Ela jogou na minha cara um argumento válido, que talvez seja a parte mais engraçada, ou mais triste, disso tudo: eu havia aprendido sobre cada uma das doenças que peguei recentemente bem antes de tê-las contraído. No caso da triquinose, eu não só sabia sobre a doença, mas havia alertado outras pessoas sobre ela em um livro, em artigos publicados e vários episódios do Meat Eater.

Em relação à giardíase, eu havia até lido artigos acadêmicos sobre o protozoário, e já tinha contraído formas mais brandas da doença em duas ocasiões anteriores ao dia em que tive o mais recente episódio, durante filmagens no Arizona (EUA). Naquela manhã, eu estava na beira de um cânion, após passar uma noite em um acampamento sem água no topo de uma chapada alta. Mergulhei minha garrafa em um riacho, enchi-a com um pouco de uma água que deve figurar entre as mais bonitas do planeta e joguei dois comprimidos de iodeto dentro. É preciso esperar cerca de 15 minutos para o produto fazer efeito, mas aguardei cinco impacientes minutos e bebi um longo gole.

Cerca de uma semana mais tarde, eu estava filmando uma caçada a porcos selvagens no norte da Califórnia quando meu intestino começou a apresentar sérios problemas. Continuei, apesar do desconforto crescente, e acabei pegando um belo porco. Mas ele deve ter rolado em alguma erva venenosa, pois após dois dias eu estava coberto por erupções cutâneas da cintura para cima e com febre, além de sofrer da diarreia provocada pela giardíase. O médico me deu esteroides para tratar a erupção cutânea, o que acabou com meu sistema imunológico e, sem dúvida, aumentou o efeito da Giardia sobre meu intestino. Em pouco tempo, eu estava eliminando abundante quantidade de sangue no hospital. Quando recebi alta, quatro dias mais tarde, o médico me perguntou sobre “medidas de prevenção” que eu poderia adotar em futuras aventuras na natureza. Me lembrei do gorila da tal palestra do montanhista. Isso tudo não aconteceu por eu não ter visto o problema, por menor que fosse. Mas em vez de sair do caminho dele, escolhi deixar o inimigo me invadir e me derrubar, quase me levando à morte.

microorganismos patogênicos
BÁRBARO: Steven mata, cozinha e come os mais diversos animais em frente às câmeras (Todas as fotos: Omikron/Getty)

O QUE EU ADMIRO nos microorganismos patogênicos, essas pequenas criaturas, é o quão traiçoeiras elas são. O tempo que leva entre o dia da infecção e o início dos sintomas pode variar de semanas a meses. Se pensarmos sob a perspectiva da doença, o intervalo de tempo é uma estratégia inteligente: ele torna o diagnóstico extremamente difícil. Quando peguei triquinose, eu estava filmando um episódio do Meat Eater em que deveríamos levar um oficial das forças especiais da Marinha norte-americana em sua primeira caçada. Ele queria uma experiência intensa, e achei que caçar e comer ursos no oeste da Cordilheira do Alasca seria perfeito. No total, três integrantes da minha equipe e eu adoecemos. Em geral, há menos de uma dúzia de casos relatados de triquinose nos Estados Unidos a cada ano. Estou orgulhoso em ser um percentual importante das vítimas recentes. Nós comemos a carne de urso no dia 6 de junho, mas os sintomas só apareceram em 4 de julho. Se eu e meus colegas de trabalho não tivéssemos conversado e trocado informação, acho que não teríamos conseguido descobrir o que, afinal, a gente tinha. Mas saber que todos nós estávamos passando pela mesma coisa nos ajudou a reduzir a lista de causas potenciais. Ainda assim, tente ir ao consultório médico e explicar que você fez um autodiagnóstico de uma doença que hoje é tão relevante quanto o escorbuto. Convencer alguém a nos levar a sério é quase tão irritante quanto os parasitas.

Outro resultado da demora na manifestação dos sintomas é que a doença parece ser mais suportável. Quando nos encontramos em uma situação que pode fazer com que a gente adoeça em algum momento no futuro, é mais fácil se arriscar do que se pudéssemos ficar doentes logo. No dia em que contraí a Doença de Lyme, eu estava com um amigo em Westchester County, no estado de Nova York, que fica a 45 minutos de carro de onde eu estava morando na época. Trata-se de um dos piores lugares do país em relação à doença: a maioria dos carrapatos de patas pretas da região, que transmitem a bactéria, é infectada. Era junho, alta temporada para os seres humanos contraírem o mal. Eu estava andando no meio de uma grama alta, em trilhas feitas por veados do rabo branco, hospedeiros dos carrapatos de patas pretas. Ainda assim, passei o dia naquelas trilhas sem tomar nenhuma precaução significativa (repelente, calça enfiada nas meias ou mangas compridas), porque eu queria pegar alguns peixes ali perto para preparar tacos para a minha família. Teria eu me comportado de forma diferente se tivessem me dito que 50% dos carrapatos daquela mata eram capazes de se levantar e bater na minha cabeça com um taco de beisebol? Com certeza.

Um mês depois, eu estava em meu escritório e, de repente, não fazia ideia de como tinha ido parar ali. Não conseguia me lembrar de ter me levantado da cama nem saído de casa naquele dia. Também não conseguia reconhecer as palavras que eu havia escrito no computador. Quando tentei voltar para casa, não conseguia me lembrar do caminho. Liguei para minha esposa, com dificuldade, e ela me levou ao pronto-socorro. Inicialmente, o diagnóstico foi de amnésia global transitória, entretanto a continuação de estranhos efeitos em meu sistema nervoso, principalmente uma dormência nas pernas que dificultava a caminhada, acabou levando a um diagnóstico preciso de Doença de Lyme. O processo de recuperação de cinco meses incluiu um tratamento com antibióticos que custou US$ 20 mil. Vale a pena ressaltar que não peguei um único peixe naquele fatídico dia.

Não faz muito tempo, enquanto eu filmava nas matas da Bolívia, fui picado, no tornozelo, por uma formiga tocandira – uma criatura enorme se comparada a todas as outras minúsculas que mencionei aqui. Na Escala de Dor de Schmidt, um índice que classifica picadas de inseto, a formiga tocandira é a única que recebeu a classificação 4, a maior possível. O entomólogo norte-americano Justin Schmidt, que criou o índice, descreve a picada, adequadamente, como uma “dor pura, intensa, brilhante, algo como caminhar sobre carvão em brasa”. Para mim foi como ser picado por vespas do tamanho de frangos, o que provocou uma dor profunda e pulsante que se alastrou dos meus dedos ao joelho. Esmaguei a formiga segundos após a picada, não por maldade, mas para ela não me picar de novo. No restante da viagem, passei a apreciar todas as formigas tocandiras que cruzaram meu caminho. Essa espécie ganhou minha admiração.

Nas ocasiões em que adoeci por causa de tormentos microscópicos, tentei enxergar esses parasitas do mesmo modo como vejo animais e paisagens perigosos. Porém, por mais que eu tente, não consigo amar essas criaturas. Eu as respeito, com certeza, porém é um respeito corrompido pelo desejo de vê-las dizimadas da face da Terra.

Mas qual seria o custo de tal aniquilação, por mais improvável que isso seja? Quão diversa seria nossa percepção da natureza se não fosse pela grande biodiversidade dos pequenos bastardos que se escondem na água que bebemos, na comida que consumimos e nos insetos que nos picam? Na ausência de risco, ficaríamos satisfeitos ou tudo pareceria menos empolgante?

Eu me lembro perfeitamente daquela refeição de carne de urso preto do Alasca: um conjunto de pedaços de carne vermelho-púrpura suspenso acima do carvão, em espetos de madeira. Enquanto a fumaça passava por eles vinda do chão, a chuva caia lá de cima. Quando a parte externa da carne adquiriu uma bela cor de mogno, com algumas partes mais escuras, todos nós comemos uns pedaços e, em seguida, começamos a longa caminhada de volta ao lago onde havíamos aterrissado uma semana antes, em um hidroavião. Voando por aquele lugar, logo perdi a sensação palpável de perigo que sempre me faz sentir magnificamente vivo quando estou na natureza selvagem. Mas agora percebo que essa espécie de saudade é completamente desnecessária. Há uma boa chance de que alguma parte da natureza tenha me acompanhado, escondida dentro de mim.

Reportagem publicada originalmente na Go Outside 124, de novembro de 2015.

 







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