Pisando em brasa

Incêndios florestais como os que castigaram a Chapada dos Guimarães nos últimos meses são tão brutais como delicados: por trás da fumaça há um complexo problema nacional que consome nossos recursos (e se repete) todos os anos

Por Bruno Romano

ANO APÓS ANO, nosso verde fica mais cinza. Nem as áreas mais sensíveis do país, os parques nacionais, têm escapado da época de incêndios. A grande vítima do período de seca de 2015 foi a Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso. Chamas espalhadas pelo mês de setembro destruíram 13 mil hectares da Área de Proteção Ambiental e outros 5.900 hectares dentro do Parque Nacional – 18% de um dos maiores redutos da biodiversidade brasileira. Por meio do fogo, queimam-se recursos: o gasto anual com incêndios florestais já atinge R$ 40 milhões, contando somente verbas federais. O prejuízo turístico e ambiental é gigantesco. E incalculável.

O trabalho articulado de cerca de cem combatentes (entre bombeiros, brigadistas, voluntários e autoridades) evitou que o estrago nos Guimarães fosse ainda maior, como mostram os relatos a seguir. Enquanto as estratégias de luta contra o fogo evoluem – ainda que esse arsenal oscile bastante, dependendo dos recursos disponíveis na época –, a origem do problema segue a mesma. Sejam intencionais ou acidentais, incêndios como esses da chapada são considerados criminosos por lei – um crime classificado como “leve”, que dificilmente traz consequências aos incendiários. E, como consequência, o espaço fica aberto para as chamas ganharem mais força.


MATO ADENTRO: Brigadistas se unem em combate na Chapada dos Guimarães (Foto: Mayke Toscano)

Para gente que lida constantemente com o problema, como Cintia Brazão, chefe do Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, a impunidade e a falta de consciência formam a essência da questão. “Quem provoca incêndio não percebe que são seus próprios recursos que vão para o combate”, diz Cintia. “Nosso trabalho é sempre melhorar a cada luta, porém os focos de incêndio não devem sumir tão cedo”, acredita.

Nesse cenário nebuloso, ouvimos três pessoas-chave no combate dos Guimarães em 2015. Em meio a tanta fumaça, eles expõem suas visões e formas de atuar. E mostram as dificuldades e os caminhos para superar o problema. Mesmo que os meses de chuva (entre dezembro e março) estejam a caminho, a previsão para os próximos anos é de bastante seca – mas a solução não virá dos céus.


ERA VERDE: Triste cena do estrago dentro da área de parque nacional (Foto: Mayke Toscano)

> Ronaldo Santos, 40 anos, brigadista voluntário

No pior incêndio dos últimos anos nos Guimarães, em 2010, quando pelo menos metade do parque nacional foi queimado, Ronaldo lutou contra o fogo por 58 dias seguidos. “Naldão”, como é conhecido no município de Chapada dos Guimarães, foi brigadista contratado do parque nos anos de 2003, 2006, 2010 e 2013. O trabalho exige janelas de “folga”, devido aos maus causados pela inalação de fumaça. Mesmo assim, fora do serviço pago e oficial, nada segura Naldão de proteger o pedaço.

“Sinto uma imensa vontade de estar ali combatendo o fogo, por gostar demais do parque”, diz. Ele sabe bem o que é a vida de brigadista: começa muito cedo e segue varado até noite, muitas vezes colocando o corpo em risco. O esforço esgota qualquer um, física e psicologicamente. No último combate de setembro, Naldão ajudou na logística e também partiu para o combate direto. Pela experiência, recebeu crédito e foi o único voluntário em algumas das frentes em que atuou.

No dia-a-dia, ele convive com a raiz do problema. “O fogo é causado por pessoas que não têm responsabilidade nenhuma, nem por si próprios”, diz. “Tem de tudo, até gente que foi autuada por invasão de propriedade e resolve tacar fogo, só para fazer mal”, conta. “Só que essa fumaça nos prejudica, principalmente aos idosos e as crianças que moram aqui, isso sem falar na natureza.” Mesmo assim, a população local fica com receio de denunciar incendiários, com medo de represálias. Se alguns usam o fogo para atormentar a vida alheia, Naldão coloca a dele em risco sempre que as chamas aparecem.

> Paulo Barroso, 44 anos, comandante do Corpo de Bombeiros (MT)

À frente do Batalhão de Emergências Ambientais do Corpo de Bombeiros (MT), o tenente-coronel Barroso já liderou combates nos três principais biomas do Mato Grosso: cerrado, pantanal e floresta tropical – e já perdeu as contas das batalhas contra incêndios. Em meio à luta, as causas dos estragos costumam ser reveladas. E são muitas: há fogo malfeito para limpar vegetação, descuidos de diversos tipos, atividades de caça, maldade e até oferendas religiosas. Independentemente da razão, o time dos bombeiros costuma ser acionado.

Em meses como o de setembro, auge da seca, o cenário fica feio. O calor aumenta, e a umidade do ar despenca no Mato Grosso. Os fortes ventos e o relevo acidentado de regiões como a Chapada dos Guimarães deixam tudo mais complicado. Quando estão em um parque nacional, os bombeiros não podem, por lei, usar uma técnica eficaz no combate: o fogo contra fogo. É preciso vencer o incêndio com inteligência e agilidade, já que erros podem custar muito caro. “De todas as missões extremas, o incêndio florestal é o que mais mata bombeiros militares no Brasil e no mundo”, conta o comandante.

“A chapada é especial para nosso Estado, e essa luta impacta a gente. Vendo cartões-postais como esses pegando fogo, não dá para negar que levamos emoção e paixão extra para o combate”, diz. Mesmo trabalhando diariamente na capital, Cuiabá, Paulo vive com a família na Chapada dos Guimarães. Quando não está liderando combates, dedica-se a equipar ainda mais o batalhão e concentra esforços na preparação de bombeiros e brigadistas, além de ações de prevenção. “Já estou há 20 anos nessa luta e só agora conseguimos formar equipes completas e bem estruturadas, o que gera resultados, claro, mas ainda não é o suficiente.”


CALDEIRÃO: Equipe de combatentes parte para o corpo a corpo contra o fogo nos Guimarães
(Foto: Mayke Toscano)

> Christian Berlinck, 42 anos, coordenador-nacional de Emergências Ambientais do ICMBio

O incêndio nos Guimarães atingiu este ano o nível máximo de uma escala de 1 a 3 estabelecida pelo Sistema de Comando de Incidentes (SCI), uma ferramenta usada para unificar a linguagem em combates. No primeiro nível, recursos locais (como os 35 brigadistas contratados anualmente pelo Parque Nacional da Chapada dos Guimarães) resolvem o problema. No segundo, estruturas regionais são acionadas. E, no terceiro, o envolvimento é nacional. Christian Berlinck coordena, de Brasília, a maior parte das ações – e em casos como o dos Guimarães também vai a campo. Sob seu radar estão 1.500 brigadistas contratados para proteger 86 unidades de conservação de norte a sul do país, em uma coordenação que ele exerce desde 2010.


AJUDA DOS CÉUS: Frentes aéreas e terrestres atuam em conjunto no
Mato Grosso (Foto: Lucas Ninno/)

O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) assumiu o controle das emergências ambientais em 2009 e começou a atuar de vez no ano seguinte. “O fogo é uma questão nacional e também aparece frequentemente em áreas indígenas e assentamentos. Ele impacta moradores e incha outros sistemas como o de saúde, aumentando ainda mais os custos”, conta Christian. “No ICMBio, nós falamos de uso sustentável do fogo, feito de forma correta, com autorização, e na época adequada. Ele nem sempre é ruim, já que muitas espécies dependem dele para se renovar. Mas, claro, há áreas e ecossistemas certos para isso”, explica.

A impunidade para os incendiários criminosos dificulta bastante os trabalhos. Se não for pego em flagrante, o infrator é autuado, recebe multa e pode responder a processo criminal. Como o crime é de pequena monta, normalmente o incendiário é dispensado e responde em liberdade. “Fica claro para nós que o combate aos incêndios florestais envolve todos os setores, e que precisamos de envolvimento geral para resolver isso. A postura da sociedade civil é fundamental: só vamos ter o fogo sob controle quando a sociedade estiver engajada no processo”, defende Christian. “Quando a gente chega a um incêndio, na verdade nós já perdemos. Só podemos minimizar o problema.”

Pobre Diamantina

A temporada de incêndios não perdoou outro importante parque nacional brasileiro

No auge da seca em setembro e outubro, a Chapada Diamantina, na Bahia, ardeu com o fogo. As regiões dos Gerais do Vieira, no caminho da consagrada trilha do Vale do Pati, além da serra do Roncador, em Andaraí, foram fortemente afetadas. Outros focos próximos a Lençóis, Mucugê e Rio de Contas também sofreram com as chamas.

Em uma área imensa, onde só o parque nacional ocupa 152 mil hectares, apenas 42 brigadistas são contratados pelo ICMBio por ano. Por isso a força voluntária de moradores das comunidades é fundamental para minimizar os estragos dos incêndios. Impunidade e falta de recursos também são temas recorrentes nos grupos de combatentes locais. Estima-se em 12 o número de brigadas voluntárias na ativa, somando cerca de 250 pessoas. Ao lado dos parques nacionais da Serra do Cipó e da Chapada dos Veadeiros, com cerca de cem combatentes voluntários cada um, tratam-se das maiores concentrações de brigadistas não pagos do país, de acordo com o ICMBio.

Em ação conjunta de voluntários, brigadistas do ICMBio e bombeiros militares de Salvador, o fogo foi controlado depois de destruir pelo menos 9 mil hectares ou 7 % da área total de preservação.

Matéria publicada originalmente na Go Outside 124, de novembro de 2015

NOTA DA REDAÇÃO:

Após a publicação da matéria “Pisando em brasa”, o fogo voltou a arder ainda mais forte na Chapada Diamantina (BA). Até a região do Morro do Pai Inácio, um dos principais cartões-postais da área foram atingidas. Arredores do Vale do Capão e localidades próximas ao Morro Branco, Barro Branco e Serra do Sobradinho foram fortemente afetadas. Estima-se em 30 mil hectares a área total atingida até agora.

De acordo com a Brigada de Resgate Ambiental de Lençóis (BRAL), grupo voluntário que atua há 15 anos na Chapada, a situação pode ser descrita como dramática: “A BRAL cobra do poder público que medidas preventivas sejam tomadas para evitar os incêndios, que nos últimos anos tornam-se cada vez mais frequentes”.

Falta de monitoramento e infraestrutura inadequada para combate também são temas levantados pela BRAL – e ecoam em todas as brigadas locais – assim como questões sociais e estruturais. Para o coordenador de operações da brigada Jânio Souza Rocha, o Feijão: “A economia do turismo não inclui todos os moradores, por isso, existem indícios que os incêndios ainda sejam causados, em muitos casos, por atividades como o garimpo, criação de animais e a extração de plantas”.

A única boa notícia é que as chuvas começaram a aparecer na Chapada Diamantina durante esta semana e devem ajudar os combatentes a controlarem o avanço do fogo nos próximos dias.







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