Fé no vento, pé na tábua


A FAVOR: Além do vento, Louis contava com a força dos nativos das praias por onde passava

Por Maria Clara Vergueiro
Fotos por Club Ventos

TEM GENTE QUE ACORDA UM DIA e não se reconhece no espelho, se estranha, acha que a vida está chata e decide fazer alguma coisa a respeito. Alguns mudam de emprego, terminam um relacionamento que não anda bem, começam a correr na academia – ou simplesmente troca de espelho e pronto. Outros, de espírito mais parecido com o nosso, conseguem transpor a mesmice cotidiana e empreender desafios um pouco mais ousados.

Louis Tapper, 36 anos, é um bom exemplar deste grupo: tirou férias do banco em que trabalha na cidade de Wellington, na Nova Zelândia, para passar um mês viajando pelo nordeste da costa brasileira, percorrendo os 2.000 quilômetros que ligam Salvador a São Luiz do Maranhão, pelo mar, sobre uma prancha de kitesurf. O vento, por sinal, foi um dos protagonistas dessa história, pontuada por imprevistos, aprendizados e o acolhimento típico dos brasileiros. Confira os melhores momentos dessa viagem.

O COMEÇO

Louis começou a pensar numa viagem solo de kite há três anos, pouco tempo depois de começar no esporte. Já havia praticado caiaque e surf, e dado aulas de esqui e snowkite.

NÚMERO UM

A primeira lição que Louis Tapper aprendeu foi a seguinte: a brincadeira só começa quando o vento dá as caras. Nessas, o “dia 1” pode ser, na verdade, o dia 7. Preparado para zarpar de Salvador no dia 22 de julho de 2010, o destemido kiwi precisou ser paciente e só começou a trip no dia 29, quando finalmente soprou um vento de 12 a 15 nós. “Desde o início eu sabia que os primeiros 500 quilômetros seriam os mais difíceis. Nessa época do ano, o vento é guiado por frentes frias que, assim que passam, trazem um céu limpo e ventos fracos, abaixo de 6 nós”, diz ele.

CAPRICHO

Quando finalmente Louis conseguiu sair de Salvador, começou a se enroscar de praia em praia. Em alguns dias, tinha que parar para esperar a boa vonatde do vento. Ficava na praia, debaixo do kite, às vezes dormindo, às vezes rezando, e muitas se perguntando por que mesmo ele tinha despencado de Welington até aquelas prainhas de nomes impronunciáveis. “Eu planejava uma coisa de cada vez. Não se pode planejar nada com o vento. A viagem toda somou 33 dias. Deles, 24 eu estava efetivamente velejando, três dias percorrendo as praias a pé (na falta de vento) e seis dias eu tive que simplesmente esperar.”

RECORDE

O Neozelandês não foi o primeiro a se aventurar sozinho com o kite numa longa distância, mas bateu, de lavada, o recorde mundial oficial, de 330 quilômetros em 24 horas, e o recorde não-oficial, de 1.450 quilômetros em 13 dias, estabelecido pelo francês Eric Gramond, em 2007, também em águas brasileiras.

PREPARO

Para dar conta do desafio físico, Louis treinou 20 horas semanais, fazendo kite, ioga, corrida e musculação.


EQUIPAMENTOS: Louis também contou com a ajuda da meia dúzia de equipamentos que ele levou na mochila de 35 litros

PAÍS TROPICAL

Ele escolheu o Brasil apenas quatro meses antes de chegar aqui. O que o atraiu foram as condições climáticas, o tamanho da costa e a fama mundial da hospitalidade brasileira. Os incidentes criminosos eram o único temor de Louis, que não fez maiores pesquisas e resolveu ver de perto o que é que o Brasil tinha. “Descobri um país com praias maravilhosas, pessoas especiais e uma comida deliciosa.” No topo da lista dele: camarão e as praias de São Miguel do Gostoso (Rio Grande do Norte) e Barra Grande (PI).

LIMITES

O desafio de Louis não estava apenas em completar os 2.000 quilômetros que ele havia se proposto. A regra auto-imposta era fazer isso sem prancha ou pipa sobressalentes, o que significa escolher muito bem o equipamento capaz de domar ventos fracos e fortes, mares lisos ou mexidos. A opção foi uma pipa de 11 metros e uma prancha bidirecional, mais confortável em situações de ventos mais fracos, como a que Louis encontrou no início à viagem.

SEGUUUUURA!

O problema é que mais pro norte Louis encontraria ventos de até 30 nós, além dos recifes, que poderiam bater nas quilhas compridas da prancha. Apesar de ficar preocupado, Louis optou por administrar a força do vento no segundo trecho e garantir o velejo no marasmo do primeiro trecho, até Pernambuco. “A pipa de 11 metros foi a escolha perfeita para a viagem. Consegui administrar ventos de 7 a 30 nós, sem problemas.” Chegando em Natal, onde as condições de vento eram mais favoráveis, a combinação de prancha e pipa o fazia ser arremessado como um míssil no ar. “Era mais ou menos como fazer um downhill com um carro de fórmula 1, no gelo”, diverte-se. Na praia de Ponta Negra, Louis conseguiu uma prancha emprestada – uma Cabrinha 140 cm Custom, mais adequada aos ventos do extremo nordeste do país.

BAGAGEM

A mochila de 35 litros (à prova d’água, claro) foi feita e refeita uma dezena de vezes até que Louis se decidisse pelo estritamente necessário: um par de bermudas, uma camiseta, uma bomba para inflar o kite, GPS, câmera à prova d’água, um celular, alguma comida e uma rede. Por satélite, Louis atualizava sua localização, que podia ser verificada no blog yakers.co.nz.

CAIU NA REDE, É GRINGO

Quando o vento era generoso, Louis atravessava 90 quilômetros (a média diária na viagem). Mas, como diz a sabedoria popular, quando alguém não está com a sorte a favor, tende a atrair logo uma série de desventuras, que podem variar de tamanho e de intensidade. Na categoria peso médio, está o episódio em que teve que nadar cerca de 600 metros até a areia, com as linhas do kite enroladas nos tornozelos. Era o sétimo dia da expedição. Louis havia deixado Aracaju (SE) e avançado um bom trecho quando o vento subitamente mudou. Ele achou mais prudente voltar 10 quilômetros e garantir o pouso em algum vilarejo mais civilizado, do que correr o risco de ficar preso, sem vento, em alguma praia remota, esperando dias até que as condições tornassem a mudar.

Mas quando tentava voltar, a pipa caiu na água e Louis não conseguiu fazê-la redecolar. As quilhas cortaram as linhas, as linhas enroscaram nos tornozelos. Conforme nadava em direção à terra firme, as linhas enroscavam ainda mais. Assim que chegou à praia, um pescador gente boa o ajudou e os dois começaram a tentar libertar Louis das linhas, sem cortá-las. Duas horas depois ele estava livre. Louis queria seguir adiante, e teve que tomar uma dura decisão estratégica para não desistir ali mesmo e se contentar “apenas” em bater o recorde mundial: ele andaria 30 quilômetros até o rio São Francisco e atravessaria o rio a nado, com todo o equipamento nas costas, para chegar ao Pontal do Peba. Dali, estaria bem mais perto de Maceió e dos ventos fortes. “Saber contornar os problemas fazia parte da aventura. Não sei falar português, não conhecia a costa e fatalmente teria obstáculos para enfrentar. Resolver qualquer coisa era muito difícil sem conseguir me comunicar direito, então eu tinha que, na maioria das vezes, achar uma solução sozinho.” No 13º dia, a sorte de Louis mudou e ele consegui fazer uma perna de quase 130 quilômetros até Barra de São Miguel (AL), com ventos que chegaram a 15 nós.

NO MEIO DO NADA

As noites e dias de descanso ou espera foram eventualmente divididos com pescadores, estrangeiros de passagem e locais – Adriano, Glauber, Theodoro, Rafael, Bruno, Yuri, Carlos, Jorge. Os nomes ganharam novas pronúncias no português do gringo e entraram para a história da viagem como personagens que serviram de companhia, anfitriões e colaboradores. “Não sou nenhum Bear Grylls, aquele cara do programa À Prova de Tudo, mas lembro de uma das máximas dele: sempre há recursos e ninguém passa fome se olhar para o lado certo”, disse ele numa das passagens do seu blog. “Sou muito grato às pessoas que me ajudaram pelo caminho. Até em lugares que julguei estar no meio do nada surgia algum pescador com um prato de comida e um lugar para eu pendurar minha rede – que chamava a atenção deles por ser muito mais fresca e confortável que as de lá.”


TUBARÃO: Peixões pouco amigáveis fizeram Louis ir embora rapidinho de Recife

VOCÊ NÃO TEM MEDO DOS TUBARÕES?

Mesmo tendo pesquisado pouco sobre a costa brasileira, de uma coisa Louis sabia: quando chegasse ao Recife seria recompensado pela benção dos melhores ventos para kite, mas também desafiado. Como o nome da capital pernambucana entrega, ele encontraria um fundo de recifes sob o mar lisinho de regiões como Maracaípe. Além disso, seria a hora de encarar um dos perigos sobre os quais mais o alertavam: os tubarões. “Por onde eu passava me perguntavam ‘você não tem medo dos tubarões?’”, diz o neozelandês, que saiu de Recife em disparada, para driblar não apenas os peixões, mas também os oficiais do Porto, que poderiam confiscar seus equipamentos e impedi-lo de seguir, segundo alertaram alguns kitesurfistas de lá. Quando chegou em João Pessoa (PB), Louis sentiu-se num oásis: encontrou um clube de kite, o BessaKite Club, e infraestrutura suficiente para ele tirar dois dias de folga, cortar o cabelo com a ajuda do Google Translator, dar uma volta no shopping e curar de vez os pés cheios de feridas provocadas pelos ouriços-do-mar.


FLUINDO

Depois de trocar de prancha no Rio Grande no Norte, Louis seguiu até o seu destino final sem grandes problemas, curtindo os bons ventos na passagem pelo Ceará, e a repercussão da aventura nas TVs locais. “Encontrava pessoas que me perguntavam se eu era o ‘crazy gringo’ de quem eles tinham ouvido falar”, conta.

PENSANDO O QUE?

Enquanto velejava de uma praia a outra, os pensamentos de Louis sopravam em torno do vento, do mar e das coisas à sua volta. “Tinha que ficar muito atento.” Nesses dias de muita concentração e excelente velejo, Louis finalmente entendeu o que significava “fluir”. No seu blog, escreve sobre o estado mental que alguns esportistas descobrem quando um desafio de alto nível e as habilidades pessoais necessárias para vencê-lo estão em equilíbrio. Essa igualdade de forças nos leva, segundo as observações dele, a um estado de atenção tão profundo que chega a esvaziar a mente, como num momento de meditação pleno – só que em movimento, com a água deslizando sob seus pés.

FIM

O saldo final da aventura foi o seguinte: 2.000 quilômetros percorridos, 33 dias de viagem (24 dias no kite, três andando e seis esperando o vento), três quilos a menos (e músculos a mais) no corpo, uma meia dúzia de equipamentos quebrados pelo caminho. Louis chegou a fazer 180 quilômetros em 9 horas, e 115 quilômetros em 3h15. As recompensas maiores foram a nova marca no livro dos recordes – como a mais longa viagem de kite – e o estímulo para o desenvolvimento de uma modalidade que ainda é jovem. “Não sou o primeiro a fazer isso, mas torço muito para que minha experiência impulsione o esporte. Se tiver inspirado outras pessoas a experimentar isso, me sinto bem-sucedido.”

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de Janeiro de 2011)







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