Ossos do ofício

Por Maria Clara Vergueiro
Foto por Matthew Septimus

AINDA NA MACA, antes de conseguir sequer se mexer depois de um tombo de bike, Flávia Araujo, 34 anos, perguntava ao médico: “Vou poder ir para o Mundial? Será que dá tempo?”. Além do ombro, completamente fraturado, Fuca, como ela é conhecida pelos amigos, ainda tinha um buraco no cotovelo, que precisou ser refeito com plástica, depois de retiradas, uma a uma, as dúzias de pedrinhas da trilha onde ela pedalava com outros dois amigos naquela manhã de quinta-feira, dois meses antes de embarcar para o Ecomotion Pro de 2008. “Depois de cair, ainda consegui caminhar uma hora na trilha segurando o braço, que sangrava muito e doía idem – os meninos levando a bike para mim. Fui dirigindo sozinha, com uma mão só, até em casa, tomei banho, e encontrei minha mãe. Só quando cheguei ao hospital consegui chorar”, conta Fuca, nutricionista e atleta de provas de aventura.

Ao longo daquele ano, ela havia tido seu melhor rendimento em treinos, participou de sete competições e fez sete pódios, com os olhos brilhando para o Ecomotion Pro, mundial que reuniria as melhores equipes do mundo. De repente, viu suas chances serem reduzidas para menos da metade. Uma fratura leva, em média, seis meses para se calcificar totalmente. E ela ainda teria que absorver a perda de parte da performance conquistada nos meses anteriores à queda, a interrupção dos treinos e a dor. Para um atleta apaixonado, não pode haver quadro mais trágico. Mas, na opinião dos especialistas, quanto menos drama e mais sangue frio, melhor. “O desfecho das histórias de lesões, traumas e quedas depende muito das escolhas do paciente e da maneira de encarar a própria situação”, diz o ortopedista Paulo Barone, especialista em medicina esportiva. “A pessoa que tem bom senso é aquela que vai se sair melhor na recuperação. É necessário ouvir os sinais do corpo e entender as razões que levaram à lesão.”

No caso de lesões como tendinites e fraturas por estresse, o mais importante, segundo Barone, é agir rápido. “A medicina esportiva é preventiva. Detectar rápido o problema é a maior defesa que um atleta tem.” Quando um médico como ele vê entrar na sala um novo paciente, o passo seguinte ao diagnóstico é entender o perfil psicológico dele – que pode, por exemplo, ser mais ansioso, competitivo e dependente da atividade que pratica, ou do tipo Caxias, determinado a seguir à risca as orientações – para decidir qual a melhor abordagem e o melhor procedimento. “É preciso levar em conta a relação daquele paciente com o esporte dele: se é profissional, se pratica por lazer, por estética, para ter qualidade de vida, além de analisar o grau da lesão, a idade, o histórico esportivo. As chances de se fazer a melhor escolha – entre cirurgias, imobilizações e terapias – aumentam consideravelmente quando tudo isso está claro”, ensina Barone.

ASSIM QUE FLÁVIA SAIU DO HOSPITAL e chegou em casa, ligou para o capitão da equipe com a qual ia correr o Ecomotion dizendo que, infelizmente, estava fora. Do outro lado da linha, veio o que ela precisava para definir como ia lidar com a fratura inesperada. “Ele me disse ‘somos uma equipe que está unida nos momentos bons e ruins. Se cuida, trate do seu ombro. Você teve um ótimo ano de treinos, então agora cuida do seu lado psicológico.’ A partir do momento que vi que ainda estava na equipe, só pensei na recuperação”, diz a atleta, que uniu médico e treinador na missão de ajudá-la a compor um treino especial, de duas a três horas diárias na academia, com o braço na tipóia, ao longo dos dois meses que precederam a prova. “Tudo era difícil: prender o cabelo, descer do carro, tomar banho. Treinava com um corte aberto no cotovelo, enxugando o suor do braço para que não caísse no machucado, para não infeccionar. A cada semana tirava um raio-X e levava no consultório do médico para avaliar a recuperação”, conta.

A psicóloga Carla de Pierro, 32, é especialista em psicologia do esporte e terapeuta analítico-comportamental, e pode falar com propriedade da importância de ser ativo no momento da recuperação. “O atleta que está em habilitação e se coloca como agente, no centro do processo, certamente tem um resultado melhor. Transferir a responsabilidade para o médico torna tudo muito mais difícil”, diz. Pensar a respeito da lesão, entender o processo e os limites dados pelo corpo são parte fundamental do amadurecimento do atleta.

Assim como na psicanálise tradicional, a seqüência negação-raiva- negociação-depressão-aceitação é quase sempre o caminho natural para fechar esse ciclo de uma maneira mais saudável. Pular uma dessas etapas pode significar adiar um problema. “É o mesmo processo de aceitação da morte de alguém querido, por exemplo. O modo como a pessoa age no primeiro momento, o da negação, diz muito sobre o tipo de atleta que é. Os atletas de endurance têm um espírito muito competitivo, buscam o próprio limite o tempo todo e costumam ter boa tolerância à dor. Por isso, muitas vezes demoram mais nesse primeiro momento, do diagnóstico das lesões de sobrecarga, e costumam resistir mais a interromper os treinos”, avalia a psicóloga. Carla e Barone, psicóloga e ortopedista, ambos especialistas em medicina esportiva, concordam que aqueles que aproveitam o período de recuperação para aprender com a experiência ganham uma maior habilidade para lidar com o próprio corpo e com futuras lesões.

Uma semana antes da largada do Ecomotion, Flávia foi até a casa do médico para levar o último raio-X antes da prova, e ter o veredicto final. Como numa partida de xadrez, avaliaram juntos ponto a ponto, negociaram aqui e ali. A prova começava em Lençóis (MA) e terminava em Jericoacoara (CE). Eram 560 quilômetros para serem percorridos em sete dias, com uma perna de 24 horas de canoagem – nada apropriado para uma pessoa em processo de reabilitação de uma fratura no ombro. O médico ponderou, calculou um possível tombo de bike, que resultaria na abertura da fratura e numa cirurgia, pensou na dor que ela possivelmente sentiria durante a parte de canoagem. Liberou a moça, devidamente instruída e medicada, num desfecho perfeito de história com heróis e final feliz. “Ele me deixou ir porque confiava no meu estado psicológico. Foi a melhor prova que fiz. Segurei as pontas na parte da canoagem (apesar de usar um remo de madeira pesadíssimo emprestado por um pescador depois que perdemos um dos nossos) e tive o maior apoio dos outros três integrantes da equipe, que me distraíam nos momentos de dor. Chegamos entre os trinta primeiros, um resultado excelente para um mundial.”

ANATOMIA DA DOR

As lesões típicas das modalidades outdoor

CICLISMO

Lesões por sobrecarga >> Sobrecarga na região lombar e na cervical (o que provoca lombalgias e pressão nos discos), síndrome da banda iliotibial (tendinite na região lateral do joelho). Dependendo do jeito que o atleta abraça a manopla, pode ter compressão do nervo da mão, que causa formigamento e dor.

Lesões traumáticas por queda >> Fratura de clavícula, luxação acromioclavicular e fraturas das costelas.

CORRIDA

Lesões por sobrecarga >> Acontecem basicamente nos membros inferiores – joelhos, tornozelos, pés e quadril. As mais comuns são as tendinopatias, fraturas por estresse, facite plantar (inflamação na planta do pé) e condromalácia patelar (sobrecarga na cartilagem da patela joelho).

CANOAGEM

Lesões por sobrecarga >> Principalmente no ombro. Tendinopatias nos ombros, cotovelos e punhos. Também acontece sobrecarga na região lombar, gerando protusão discal e hérnia discal (lombalgias).

ESCALADA

Lesões de sobrecarga >> Nos ombros e dedos das mãos, e lesões de polia na mão.

Lesões por traumas >> Fraturas em geral

SURF

Lesões por sobrecarga >> Lombalgias e cervicalgias (na remada, a cervical fica em hiperextensão), lesão meniscal e ligamentar (provocada por torções de joelho na hora das manobras), tendinites no ombro por conta das remadas.

Lesões por traumas com a prancha >> Cortes provocados pelas quilhas ou pela ponta da prancha, e queda sobre a prancha.

QUEM É QUEM NA HORA DE PARAR

Os perfis mais comuns dos atletas lesionados

Inconformado >> Acha que o mundo está conspirando contra ele, que o tênis provocou a lesão e que o cara da bike da frente atrapalhou a curva e provocou a queda. Não consegue pensar em ficar duas semanas longe dos treinos e quase sempre reincide nas lesões.

CDF >> É o preferido dos médicos. Faz tudo certinho, presta atenção em todos os detalhes, só volta duas semanas depois da alta médica para garantir que vai estar 100%.

Culpado >> Acha que tudo aconteceu por causa dele – porque estava distraído, porque não está treinado o suficiente, porque treinou demais ou porque estava sendo um mau menino e mereceu um castigo. Sofre mais de arrependimento que de dor.


Médico >> Presta tanta atenção no processo todo que se torna um especialista, dando palpites no tratamento e encomendando remédios que descobre na internet. Adora falar da lesão e explicar aos outros os pormenores da “fissura tibial, provocada pela sobrecarga decorrente do excesso de treino”.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de Janeiro de 2011)







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