Um glorioso bastardo


PEIXE GRANDE: Martin Strel passeando pela rua Oxford, em Londres

Por W. Hodding Carter
Fotos por Brian Vernor

POR UM MOMENTO, achei que o Homem que Nadou o Amazonas estava tirando a roupa para ficar pelado. Então, apesar do monte de gente passando pelo lago Bled, no noroeste da Eslovênia, segui sua deixa e comecei a tirar minha camisa e calças para acompanhá-lo. Foi só quando ele me passou uma toalha para trocar de roupa com mais modéstia que percebi meu engano. Sempre preparado, o maior nadador de resistência do mundo estava usando um calção por baixo das calças cáqui desde o começo.

Eu já devia saber. Aquele era, afinal de contas, Martin Strel, o cara que, aos 55 anos de idade, nunca viu uma extensão de água que não quisesse atravessar nadando. Em 2000, ele conquistou seu primeiro recorde mundial de natação de longa distância ao descer os 3.005 quilômetros do rio Danúbio, na Europa, em 58 dias; em 2002, nadou os 3.782 quilômetros no rio Mississipi, nos Estados Unidos, em 68 dias; em 2004, percorreu todos os 4.000 quilômetros do sujo Yangtze, na China, em 51 dias; e, em 2007, fez 5.269 quilômetros dos 6.937 quilômetros do Amazonas, o maior rio do mundo em volume de água e segundo em comprimento, em 66 dias. Naturalmente, supus que o cara que passou tanto tempo da última década usando sunguinhas molhadas não se incomodaria em tirar a roupa em público. Mas, aparentemente, nadar pelado em um dos pontos turísticos mais populares de seu país está fora de questão.

Uma olhada rápida confirmou que ele ainda era o nadador de resistência de elite mais pesadão do mundo, de peito largo e barriga rotunda. A orgulhosa e famosa pança balançou – uma, duas, três vezes – quando pulamos na água juntos. A água surpreendentemente quente do lago glacial estava ótima e sorri em antecipação nas primeiras braçadas juntos: Martin Strel e eu, embarcando em uma jornada épica! Mas, logo depois, quando paramos para ajustar nossos óculos de natação, ele apontou para uma boia não muito distante como nosso objetivo.

Eu estava esperando por um trecho mais longo. Martin normalmente treina cinco horas por dias, e, sendo eu mesmo um nadador de competições de longas distâncias a minha vida toda, estava esperando entender o homem pelo modo como nadava. Mas, na verdade, ele nem mesmo estava treinando. Sua principal razão para estar nadando naquele dia era promover o documentário de seu trajeto pelo Amazonas, Big River Man, que deixou o público de queixo caído no Sundance, sem falar do resto do circuito de festivais de cinema. Na semana antes da minha chegada, Martin estava nadando e falando na Noruega; no dia depois da minha partida, estava no Tamisa, na Inglaterra; e, uma semana depois, passou pelo Texas onde respondeu à antiga pergunta feita a todo nadador gordinho: você coloca a sunga por baixo ou por cima da barriga?

Mas Martin não me desapontou. O Homem-Peixe, como era chamado com admiração pelos brasileiros, acabou mostrando toda a sua força. Ele tem uma braçada natural e redonda que usa o corpo inteiro para se impulsionar pela água. É o tipo de braçada necessária para um cara se tornar a primeira pessoa a nadar da África até a Europa – que foi o que ele fez, em 1997. Quanto mais longe nadava, mais seu quadril girava de um lado par ao outro, levando-o para frente com facilidade. “Não dá para ficar nadando daquele jeito rebuscado, colocando o cotovelo para cima, por 80 quilômetros, Hodding”, me disse ele, como se estivesse explicando a um menino de 5 anos que um guardachuva não funciona como páraquedas. “Nadar no Amazonas não foi o mais difícil. Não era um lance de técnica. Era um lance de continuar vivo. Você precisa ser diferente quando fica com os animais muito tempo. Precisa mudar seu jeito de pensar. Virar parte da selva.”

Essa é a mentalidade não ortodoxa que permite a um homem nadar os rios mais longos do planeta enquanto alguém como eu prefere ficar dando voltas numa piscina. Soprava um vento leve pelo lago Bled, trazendo um friozinho, então voltamos. Ao nos aproximarmos da margem, o grisalho Martin disparou na frente, evidentemente para ser o primeiro a chegar. “Eu nado pela paz, pela amizade e por água limpa”, ele gosta de dizer e, embora não seja a história completa, é a mais perfeita verdade. Martin quer salvar o mundo nadando nele todo.

Mas, no começo, ele nadava para fugir de seu pai. O jovem Martin era uma criança normal sendo criada em Mokronog, uma cidadezinha a 65 quilômetros da capital eslovena de Liubliana, que na época fazia parte da Iugoslávia. Ele quebrava regras, objetos e partes do corpo (como seu nariz, numa briga com outro garoto), e seu pai batia nele por isso. Strel fugia para onde pudesse; dormia no celeiro da família com tanta frequência que sua mãe começou a deixar comida e roupa lá. Um dia, seu pai estava correndo atrás dele quando um riacho cortou sua rota de fuga. Ele pulou, e com seu pai o seguindo a pé pela margem, acabou nadando por quilômetros. Foi sua primeira prova de longa distância. Em que também aprendeu uma lição muito importante: nadar sempre a favor da corrente.

A infância de Martin é cheia de histórias incríveis como essa. Ele aprendeu a nadar, segundo o próprio, em uma piscina feita que fez ao represar o rio Mirna, perto de sua casa. Evidentemente, o serviço foi muito bem feito, pois quando ele tinha 10 anos uma tropa de soldados decidiu fazer uma prova na piscina improvisada – o vencedor levaria um barril de cerveja. Martin entrou na competição e, embora tivesse metade do tamanho e da idade deles, acabou levando a cerveja. Reza a lenda que desde então ele nunca mais parou de nadar e beber.

Martin fugiu para Liubliana quando era adolescente, onde acabou arranjando um monte de bicos, incluindo entregador de jornal, mecânico e pedreiro. Foi só quando tinha 24 anos, durante férias no mar Adriático – depois de se formar em uma academia de música onde aprendeu violão flamenco – que ele começou a cumprir seu destino aquático. Nadava todos os dias um longo trecho em frente a um quebra-mar cheio de gente, até que numa tarde um homem o chamou. O que aconteceu então pareceu mais uma cena de filme. “Você poderia ser um bom nadador, talvez”, o homem disse. Era o treinador da equipe de natação de longa distância da Iugoslávia. “Você treina todo dia?”, perguntou. “Não”, respondeu Martin. “Você quer ser um nadador de maratonas profissional? Competições em lagos e oceanos ao redor do mundo?”, continuou o treinador. “Quero”, finalizou Martin.

Isso foi em 1978. Martin assinou a papelada necessária naquele dia e, menos de três meses depois, completou sua primeira prova de 20 milhas (32 quilômetros). Daquele dia em diante, exceto por um ano no exército da Iugoslávia – onde ele fugiu do quartel 42 vezes, mas ficava tudo bem por causa de sua habilidade como nadador e porque concordou em ensinar seus superiores como resolver um cubo mágico em menos de um minuto (seu recorde é 46 segundos) –, Martin tem sido nadador profissional e professor de violão, com uma renda extra com jogatina em noites insones. Casou-se (ele e sua esposa, Nusa, uma arquiteta, agora são separados) e teve dois filhos, Borut, de 28 anos, que mora perto do pai em Liubliana e trabalha como seu gerente de projetos, relações públicas e principal torcedor, e Nina, uma estudante de 24 anos que mora em Monte Carlo, em Mônaco.

Martin se saiu bem o suficiente no circuito de competições para manter um estilo de vida bem confortável. Mas a natação em águas abertas é um esporte invisível, e ele não era o melhor. Por isso, em 1992, um ano depois de Eslovênia se separar da Iugoslávia, Martin deixou para trás as provas competitivas e nadou pelos 101 quilômetros do rio Krka em 28 horas, sem parar. Foi um desafio gelado e miserável, mas ele saiu dele com uma missão: nadar as maiores distâncias possíveis ao mesmo tempo em que ajuda a salvar o planeta. Seu método tem sido o mesmo desde então: achar um rio no mapa, arranjar patrocinadores, planejar a expedição, nadar. E repetir tudo.

Em retrospecto, Borut diz que talvez Martin tenha ficado cansado do anonimato em um esporte obscuro. Ele, por sua vez, fala das preocupações ambientais que desenvolveu depois de uma década nadando em água suja. De qualquer modo, encarou sua missão de peito aberto. Nadou pelo Kupa, que forma parte da fronteira da Eslovênia com a Croácia, em 1993, e desde então nadou em todos os rios da jovem nação, menos um. Em sua primeira jornada fora das fronteiras de seu país – quando desceu por 3.005 quilômetros o Danúbio, em 2000 – estabeleceu um novo recorde mundial de distância. No ano seguinte, Martin voltou ao Danúbio e estabeleceu o recorde para natação sem paradas, cobrindo 504 quilômetros em 84 horas.

Quando perguntei se ele dormia de costas durante suas nadadas, talvez batendo com pé para manter o ritmo, ele riu e explicou. “Não, não. Não é possível. Dormi só nadando crawl – é o único jeito. Na primeira noite não dormi nada. Na segunda, dormi umas cinco ou seis vezes, menos de dez minutos no total. Na terceira, de novo, só uns dez minutos. Isso serve para mostrar como a mente é poderosa. Mente é poder, pode acreditar. E gordura é poder também. Você não ia durar uma semana no Amazonas”.

É difícil superestimar o desgaste físico a que as nadadas de Martin submetem seu corpo. Não é só a própria natação, que por si só já é de matar, mas tem também o isolamento e o ambiente. Ele comemorou o fim de sua descida do Mississippi – que está tão cheio de dejetos agrícolas e metais pesados que criou uma zona morta de 13.000 km2 no Golfo do México – com três dias de internação em um hospital. No Yangtze, Martin me contou, os médicos lhe aplicaram transfusões diárias de sangue novo e limpo nos últimos dez dias da jornada. “O Yangtze quase me matou”, disse. “Muito perigos e muitos produtos químicos. Quase destruiu o meu fígado, que ficou preto no final da nadada. Nadei perto de cadáveres – cadáveres humanos – todos os dias. Homens com a cara virada pra baixo. Mulheres com os peitos virados pra cima. Muitos cadáveres.”

O Amazonas também cobrou seu preço – na forma de 20 quilos perdidos, na verdade. Conforme a quilometragem ia se acumulando e o impulso ia aumentando, com milhares de fãs na Eslovênia, no Brasil e ao redor do mundo acompanhando seu progresso, Martin perdeu suas forças e sua sanidade. Nas semanas finais, Borut, além de administrar a expedição, lidando com a mídia global e traduzindo para seu pai, precisava dar comida na boca de Martin e carregá-lo para e de volta da água. “Era como cuidar de um bebê”, conta Borut no filme. “Só que o bebê é o seu pai e ele está nadando no Amazonas”.

DEPOIS DE PASSAR UM TEMPO COM MARTIN, pude rapidamente sentir em minha barriga estufada como, exatamente, ele recupera seu peso após cada descida de rio. Minha esposa, Lisa, e eu estávamos acompanhando o dia-a-dia de Martin Strel, que incluía a presença constante do dedicado Borut, enquanto passeávamos em seu Mazda 6 patrocinado pelo pequeno país da Eslovênia. Borut é o braço direito do Martin e, para mostrar o grau de intimidade entre eles, chama o pai pelo primeiro nome. Nós comemos e comemos e comemos¬ – e bebemos e bebemos e bebemos. Strel não acredita apenas que é bom ter um pouco de excesso de peso, mas também no poder restaurador da uva. Durante suas nadadas, bebe duas garrafas de vinho, feito em sua própria vinícola, todos os dias – e mais ainda quando está em casa, em terra firme. Não demorou para eu perder a conta da esbórnia.

A primeira parada foi uma lanchonete à beira do lago para uns cappuccinos e chocolates quentes depois da natação. Martin é um astro em sua terra-natal. As mulheres de uma certa idade soltam risadinhas e se enrubescem com a simples menção de seu nome. Ele é um tesouro nacional heróico, procurado para apoiar produtos e dar conselhos. Serve de jurado em concursos de beleza. Aparece em filmes eslovenos. Se encontra com chefes de estado. Basicamente, pode fazer o que lhe dá na telha. Usa a piscina e a sauna (de graça) do maior complexo aquático do país; estaciona em fila dupla na frente de hotéis de luxo; come e sai sem pagar – como descobri quando levantou e deixou a conta na mesa. Como não entendo esloveno, achei que Martin ou Borut tinham passado na minha frente e pagado tudo quando saímos de repente. “Eles me conhecem lá”, explicou Martin mais tarde ao seu preocupado filho. “Não deixam eu pagar. Além do mais, a gente nadou. Demos um show. As pessoas pararam para ver. Isso é bom para os negócios.” Eu não tinha notado ninguém tão interessado assim, mas até aí eu estava de olho nele.

Esse é o Martin que se vê logo nos primeiros minutos do documentário Big River Man. O produtor e diretor John Maringouin – que dirigiu Running Stumbled, um documentário independente de 2006 sobre seu pai viciado em drogas – começa com uma pegadinha: uma introdução engraçada que pinta Strel como um Borat da Eslovênia. O vemos mostrando a barriga, dirigindo bêbado, roubando pão de uma festa da embaixada dos EUA, descendo em um tobogã para crianças e andando por Hollywood de calção – até 1º de fevereiro de 2007, o primeiro dia da jornada pelo Amazonas. Então, o filme fica furiosamente sombrio e o verdadeiro Martin Strel – o homem que sacrifica todo o seu ser e até sua sanidade para atrair a atenção do mundo para os seus rios mais poluídos – toma conta do show.

É um tremendo empreendimento coreografado, esse lance de nadar do maior rio do mundo. Tinha um barco-base que transportava cozinheiros, guias, tripulantes, guardas (por causa de ameaças de morte, traficantes de drogas e piratas), uma equipe médica e montes de repórteres locais. E ainda tinha o barco de filmagem para a equipe cinematográfica de John Maringouin e o pequeno barco-piloto que servia de ligação com o mundo para Martin durante suas nadadas diárias de dez horas e 80 quilômetros. O guia favorito de Martin era Matt Mohlke, um barman de 35 anos de Fountain City, no Wisconsin (EUA), que esteve no barco de segurança quando ele nadou pelo Mississippi. Matt, que escreveu seu próprio relato da expedição, The Man Who Swam the Amazon, era a outra metade da mente de Martin no rio, encarregado da tarefa de alimentá-lo, manter as piranhas afastadas e, o mais importante, encontrar a corrente. Enquanto algumas das jornadas anteriores tenham incluído Borut, um capitão de embarcações fluviais e talvez alguém como Matt para ajudar a encontrar as boas águas, a expedição do Amazonas foi uma produção épica, a um custo de US$ 1 milhão e movida por uma tripulação com mais de 20 pessoas.

Isso aumentou ainda mais a pressão sobre Martin. Como não conseguiu obter um patrocinador único, os Strels juntaram mais de uma dúzia, muitos dos quais fulguravam em sua roupa de neoprene. Metade do orçamento veio na forma de materiais e suporte tecnológico de gente como a marinha do Peru e as forças armadas da Eslovênia. Pai e filho têm direito a uma porcentagem não-divulgada da renda do filme, mas o ganha-pão de todo mundo, em maior ou menor grau, depende da natação de Martin – quanto mais longe ele conseguir ir, mais tempo eles mantêm seus empregos. O estresse físico e mental era tanto que a certo ponto Martin e Matt desapareceram de uma festinha no meio da expedição, só para serem encontrados mais de um dia depois e dezenas de quilômetros rio abaixo, pelados, murmurando sozinhos, encarando fixamente as

raízes de uma árvore virada.

Diferente das ameaças do Yangtze ou do Mississippi, as do Amazonas eram de origem um pouco mais natural. O rio é o lar de piranhas, enguias elétricas e o candiru, os aterrorizantes peixinhos serrilhados que podem entrar no seu pênis pela uretra. Mas as criaturas mais perigosas do maior rio do mundo o deixaram em paz. Martin acredita que isso aconteceu porque ele demonstrou-lhes o devido respeito. Antes de botar os pés no Amazonas, ele se encontrou com anciões e pajés, pedindo sua permissão para nadar por trechos sagrados do rio. Para fazer diplomacia com o mundo animal, tocou num crocodilo e segurou uma anaconda de 50 quilos. Ele conversava alto com os animais do Amazonas durante sua jornada e foi escoltado quase todos os dias por um bando de botos cor-de-rosa.

Mas Martin não escapou incólume. O sol tostou sua pele a tal ponto que ele teve que nadar o dia inteiro usando uma máscara que o fazia parecer um membro da Klu Klux Klan que caiu na água. O calor causou desidratação (e sua insistência em manter a dose diária de vinho não ajudou), que contribuiu para elevar sua pressão sanguínea a um ponto que quase o matou. Parasitas microscópicos atacaram-no por baixo da pele, levando-o a grudar cabos de chupeta de bateria em sua cabeça molhada numa tentativa malfadada de tentar tirá-los do seu cérebro na base do choque elétrico. A essa altura, sua médica o fez assinar um documento declarando que continuava sua aventura contra sua recomendação.

Por que ele continuou? Qualquer pessoa normal teria parado mil quilômetros antes. Matt atribuiu a perseverança insana de Martin a questões mal-resolvidas sobre os abusos de seu pai. Eu quis perguntar a John Maringouin, mas ele nunca respondia às minhas perguntas. Para Borut, a resposta era simples. “A floresta tropical não foi a principal razão para ele nadar o Amazonas”, ele me disse. “Foi pelo próprio Martin, para provar quem ele é e o que ele pode fazer. ‘Esse sou eu. Fui o primeiro a fazer isso. Arrisquei minha própria vida’”.


CABEÇA GORDA: Saindo da água, no Hyde Park de Londres. "A mente é poder, acredite", diz Martin. "Gordura é poder também".

PASSEANDO DE CARRO pela Eslovênia, passando pela surpreendentemente grande cidade de Liubliana até o interior próximo, continuamos a reabastecer nosso corpos e nossas almas. Em um restaurante/bar/açougue perto do lar de infância de Martin, em Mokronog, caímos de boca em pratos cheio de porco assado, legumes e pão. Duas garrafas de cvicek – o leve vinho tinto local –ajudaram a digerir tudo.

O banquete depois se mudou para o lar da família Strel, um aglomerado de edificações com cara de chalé suíço cercadas por morros e vinhedos. É aqui que Matin se refugia para se recuperar de suas aventuras. A fazenda tinha um ar particularmente ancestral – com um altar de uns mil anos para uma mulher que deu a luz durante sua peregrinação a Roma – e ficou imediatamente claro porque aquele lugar era tão restaurador. O silêncio do ambiente nos envolveu, e comemos peras enlatadas das árvores da fazendo dos Strels e bebemos garrafas de seu próprio cvicek, cujo rótulo mostrava Martin e sua nadada no Amazonas. Ele tocou sua guitarra flamenca e falou de travessias anteriores. Quanto a conquistas futuras, ele ficou de lábios selados, apenas dando a entender com seu sorriso largo que ia ser coisa grande.

Embalado pelo silêncio, pelo vinho e por nossa infindável e fascinante conversa sobre tudo o que é aquático (quem curte um esporte marginal adora momentos como esses), eu estava enfeitiçado por Martin, deixando de lado algumas coisas que me incomodavam, como os números estranhos que ele me mostrou no lago Bled. Depois de nossa nadada, ele grudou dois adesivos brancos no peito. Pareciam duas bandagens feitas às pressas. Quando perguntei o que eram, Borut olhou para o outro lado, mas Martin ficou todo animado e, arrancando uma delas do peito, virou-a e mostrou para mim que do outro lado havia uma série de números. “Foi um doutor que me deu isso para usar – um cientista muito famoso”, explicou. “Ele escolhe os números para mim. Se você usar esses números perto do corpo, não pode pegar câncer. É impossível.”

Martin tinha outras dicas de saúde. As prodigiosas quantidades de vinho eram necessárias, explicou, já que o vinho “ajuda com a diabete, dissolve substância prejudiciais no trato digestivo, vesícula biliar, rins”. Isso até dava para acreditar, já que um monte de cientistas modernos fala dos benefícios cardiovasculares do vinho. Mas ele exagerou quando, enquanto fatiava tomates de sua horta, apareceu com um copo especial gravado com “informações e energia” que podia repelir e curar câncer e outras doenças. Quando ele ficou insistindo que as “informações” estavam gravadas dentro do belo vidro azul, até Borut levantou uma sobrancelha.

Aprendemos mais sobre essas propriedades físicas no dia seguinte, quando fomos conhecer o médido de Strel, o bioterapeuta Vili Poznik, em sua casa e clínica perto de Liubliana. Infelizmente, não pudermos perguntar a Vili o que um bioterapeuta faz, já que, apesar de sua especialidade ser colher a energia cósmica capaz de espantar doenças que até mesmo a medicina moderna não podia deter, ele estava no hospital com dor de estômago. Mas sua filha, Mojca, nos ofereceu o tour básico.

As salas da clínica estavam cheias de máquinas que pareciam saídas de um livro do Dr. Seuss, todas solando um reconfortante zumbido. Depois fiquei sabendo que eram todas inspiradas em dispositivos mais antigos chamados acumuladores de energia orgônica, inventados por Wilhelm Reich, um colega de Sigmund Freud. Antes de ser preso, em 1956, por violar um mandato judicial proibindo-o de vender suas máquinas, Reich supostamente descobriu uma certa energia cósmica, que ele chamou de orgônio e construiu máquinas para transmiti-la aos seus pacientes enquanto ficavam sentados em câmeras construídas com esse propósito, combatendo o câncer e aumentando sua “potência orgiástica”.

Quando voltamos ao carro, minha esposa perguntou a Martin de novo como isso funcionava. Tínhamos bebido algumas garrafas de água vendidas pelos Pozniks – um produto que Martin queria comercializar nos EUA. Tinha gosto de cloro e números especiais estampados no rótulo. “Mas como a informação entra no vidro?”, Lisa perguntou. “Como ela é capturada?” Martin tinha ficado de saco cheio com nossa ignorância. “Você é uma mulher simplória, Lisa”, disse. “Levaria dias para explicar isso para você. Não é possível.”

Pois é, Martin Strel pode ser um tremendo babaca. E, sim, encontrei um monte de seus compatriotas, principalmente entre os mais jovens, que estavam de saco cheio de vê-lo mostrado como o Sr. Eslovênia e envergonhados por sua bebedeira. O país, afinal de contas, tem um dos mais altos níveis de alcoolismo da Europa. Eles até o chamam abertamente de “Plavni Les” (“Madeira boiando”, em esloveno).

Apesar disso, quando se olha os feitos de Martin e as águas onde ele mergulhou, fica o fato que ele mesmo se colocou em risco diversas vezes. O Yangtze, cheio de corpos em decomposição e espécies condenadas à morte, é um dos rios mais poluídos do mundo. Ele nadou nele 51 dias, dez horas por dia. Fez exatamente a mesma coisa no tóxico Mississipi. E ainda tem o Amazonas. Não interessa o talento para a natação, nem o potencial para babaquice; todo mundo tem que olhar esses 66 dias com respeito e admiração.

Algum lugar milhares de quilômetros rio abaixo, graças ao sofrimento legítimo de Martin e à útil justaposição de Maringouin dessa jornada ao desespero com imagens da floresta destruída, o Homem-Peixe se transforma num moderno Rei Lear, cego na tempestade, mas finalmente enxergando a verdade. Ele continua nadando – apesar das tentativas de detê-lo – para salvar o rio. Isso é o que ele faz, o que ele é, e sua insistência em continuar apesar de já ter ficado mudo, incapaz de comer ou até mesmo andar sozinho é a única chance que ele e o rio têm.

É difícil precisar o impacto de Martin nas águas que ele quer salvar. Aumento da consciência ecológica não é, afinal de contas, um bem material que possa ser medido. A jornada pelo Amazonas obteve muita cobertura da mídia na Europa, mostrando as multidões torcendo por ele no Amazonas, das aldeias às cidades e às metrópoles, ao longo de milhares de quilômetros. Deu pra ver o crescente interesse ao redor do mundo quando sua tentativa passou de piada da semana a triunfo do espírito humano. Fomos relembrados de que a floresta tropical precisa de nossa ajuda por um homem solitário e atrapalhado fazendo o impossível, sobrevivendo onde todos apostaram que morreria, se arrastando inexoravelmente para a foz do Amazonas.

Quando eu soube que a Noruega tinha recentemente prometido US$ 500 mil por ano para preservação das florestas tropicais, fiquei curioso. Um funcionário graduado do ministério de relações exteriores da Noruega negou qualquer relação, é claro, dizendo que a nadada “não teve qualquer efeito sobre a decisão da Noruega”. Entretanto, ao longo de muitos meses, Martin foi o zeitgeist da floresta tropical. Sua aventura estava na televisão da Noruega, nos jornais, e ele já foi notícia de primeira página por lá quando nadou nos fiordes noruegueses. Eles viram que quando Martin sofria, a floresta sofria. Quando a floresta sofria, Martin sofria. A Noruega está ajudando a salvar a floresta tropical. Martin Strel os convenceu a isso.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2010)







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