Não ganhe se não quiser a tatuagem


CARNAVAL: Vestir-se de mulher e expor-se indecentemente é praticamente uma regra no SSWC

Por Bike Snob NYC

Fotos por Brian Vernor

UM HOMEM COM UM MAIÔ ESTILO BORAT ME ULTRAPASSA como se fosse um super-herói desafiador da gravidade e pervertido sexual, subindo facilmente a ladeira pedregosa em que sofro para empurrar minha bike. Agarro minha caramanhola empoeirada e observo seu traseiro de fio dental diminuir ao longe. Em aproximadamente uma hora ele será nomeado o Campeão Mundial de Single Speed de 2008. A única coisa que eu quero é sobreviver.

Mas que diabos estou fazendo aqui? Bom, tudo começou há alguns anos, quando meu câmbio traseiro decidiu se desfazer durante uma pedalada. Obviamente, isso aconteceu quando eu estava o mais longe possível da entrada da trilha e eu, muito esperto, não havia trazido nenhuma das ferramentas que precisaria para tornar aquela geringonça pedalável de novo. E mesmo se tivesse, as várias pecinhas e parafusos haviam se espalhado pela trilha feito granola. Então, enquanto eu caminhava pela floresta, de volta à relativa civilização dos subúrbios de Nova Jersey (EUA), empurrando a bike nas subidas e descendo na banguela, decidi convertê-la numa single speed.

Se você ainda não sabe, uma single speed é uma bike com uma única relação de marchas: uma coroa na frente, um pinhão atrás – como uma BMX. Sem alavancas ou câmbio para falhar, sem volantinho para dar uma folga e nada para se preocupar enquanto pedala, a não ser pedalar. Em vez de caçar a marcha certa nas ladeiras, você ataca em velocidade, para que o embalo te leve até o topo. O resultado é que em todas as subidas (menos as mais inclinadas e técnicas) você chega ao topo mais rápida e eficientemente. Em suma, a single speed é tanto totalitarismo quanto meritocracia, no sentido de que nem te dá escolha, nem rede de segurança.

Com o passar dos anos, o “movimento” single speed atraiu um grande número de devotos cujos intrincados padrões de barbas e tatuagens contrabalanceiam a simplicidade de suas bicicletas, e cujo desdém por coisas como corridas oficiais, bermudas de lycra e sobriedade é proporcional à sua aversão às marchas.

Foi com este espírito que o Campeonato Mundial de Single Speed (Single Speed World Championships – SSWC) nasceu, em 1995. Apesar de seu nome, o SSWC não tem a chancela de nenhuma organização, a não ser um consenso entre dedicados ciclistas de single speed. A cada ano a competição muda de um país para outro, como o fugitivo da decência e legitimidade que é. Desta vez o evento foi em Napa,Califórnia, no Skyline Wilderness Park, nos Estados Unidos.

Quando você vence o SSWC, não ganha uma camiseta, troféu ou dinheiro. Ganha uma tatuagem. É obrigatório, você só escolhe o lugar. E ao mesmo tempo que o SSWC é um evento festivo, é também muito duro e, acredite se quiser, competitivo. O vencedor de 2007 foi o campeão norte-americano de mountain bike cross-country, Adam Craig, que estava competindo nas Olimpíadas de Pequim enquanto eu estava em Napa. É tentador pensar que uma corrida como essa não é tão difícil quanto uma corrida “real”, mas o fato é que é até mais difícil. Uma competição de mountain bike com proporções épicas como essa vai machucar, mesmo que você treine feito um crente embrulhado em lycra, faça dieta, durma cedo e siga a cartilha do Chris Carmichael na revista Bicycling. Mas correr um SSWC de ressaca e mal preparado, como dita o costume da prova, é absolutamente torturante. Especialmente quando não tem nada entre você e o selim, a não ser uma cueca de algodão.

Fantasias ridículas são uma tradição no SSWC. Acessórios como vestidos de renda, maiô fio-dental neon, perucas loiras, meias arrastão, boás de marabu e casacos de pele sintéticos praticamente superam o número de kits tradicionais de ciclismo – e isso só para homens.

SE O CICLISMO PROFISSIONAL ESTÁ POVOADO por dopados, o ciclismo amador está povoado de pessoas reclamonas, pomposas e posudas, que levam a si e a seu esporte muuuuito a sério (e também tem seus dopados). Apesar de adorar competir, guardo um desdém especial pela atmosfera nociva e pretensiosa que permeia as competições de bike. Você tem que tentar relaxar e se divertir na bike.

E foi assim que na tarde de sexta-feira, 22 de agosto, me vi em frente à loja American Cyclery, que fica na ponta do Golden Gate Park, em San Francisco (EUA). A grande corrida seria no domingo e a loja estava organizando um “rali e festa pré-evento… Uma oportunidade única para se misturar com o submundo da cultura ciclística de San Francisco e pedalar com eles nas trilhas do ambiente urbano”. Se coisas como tatuagens gratuitas e adesivos onde se lê ONE FUCKING SPEED contam como cultura, então eu estava presenciando nada menos que uma renascença.

A calçada estava pululando com 40 ou 50 ciclistas, que vinham desde o bairro vizinho quanto da Europa, e que estavam passando o tempo batendo papo em voz alta e tomando cerveja. Perto de mim, alguém enrolou um baseado, que foi imediatamente atacado pelo cara ao lado. “Tem tabaco misturado”, avisou o dono do beck, mas o alerta não deteve o ladrão.

Como estávamos em San Francisco, o tempo começou a esfriar de verdade. Ainda bem que logo todo mundo estava montado em suas bikes e, com muito barulho e alegria, o passeio começou, descendo a rua Stanyan na contra mão para começar o ataque ao parque Golden Gate, que estava lotado de gente esperando pelo início de um show do Radiohead. Estava claramente óbvio, pela nossa maneira de pedalar, que grande parte do nosso grupo estava intoxicada.

Entramos numa trilha de terra para pedestres, onde havia placas alertando que pedalar era terminantemente proibido. O cara na minha frente, pedalando uma bike de pinhão fixo sem freio com pneus de cyclocross logo foi derrotado pelo terreno arenoso. Ele tomou um chão quase imediatamente, levando alguns outros consigo. Logo entramos num bosque de árvores baixas e emergimos de volta ao pavimento, para confusão dos muitos pedestres que estavam a caminho de ouvir os lamentos chorosos de Thom Yorke.

Enquanto nosso enxame se dirigia à ponte Golden Gate feito abelhas raivosas, eu estava eufórico por estar pedalando em San Francisco com um bando de ciclistas enlouquecidos, mas sentia uma pontada de culpa cada vez que passávamos em alta velocidade por algum casalzinho, com seu cachorro de roupinha de pet shop, tentando curtir em paz um passeio de fim de tarde no parque. Mas, na verdade, os pedestres não pareciam estar tão incomodados assim. Alguns até nos achavam divertidos: marchas pequenas, apesar de perfeitas para trilhas técnicas, te fazem pedalar com uma urgência cômica em terreno pavimentado.

Cruzamos a ponte e viramos à esquerda, pegando uma rua bem inclinada em direção a Marin Headlands, onde supostamente havia comida. A esta altura, os pelotões já haviam se afastado, então, no topo da ladeira, tivemos tempo suficiente para parar e consumir mais cerveja enquanto esperávamos o reagrupamento. Uma vez juntos de novo e mais corajosos devido ao consumo de álcool, lançamo-nos impetuosamente ladeira abaixo, por uma inclinada e sinuosa estradinha até Kirby Cove, uma pequena clareira com linda vista da baía. Ali não encontramos um grande banquete, mas uma oferenda patética de cachorros-quentes vegetarianos frios. Por sorte, alguém liberou uma garrafa de Jack Daniel’s, e um outro sacou um baseado quase tão gordo quanto o cano de cima da bike.

O sol começou a se esconder, fazendo com que a bruma e o horizonte da cidade ficassem alaranjados. Scot Nicol, fundador da Ibis Cycles, apareceu com uma jaqueta enfeitada com uma castanha falante, sugerindo que os espectadores SUPER-RELAXASSEM. À medida que escurecia, restou-me subir de volta a longa estradinha de volta à ponte, uma amostra das muitas árduas subidas por vir. Enquanto voltava, pensei que finalmente havia entrado no espírito do evento. Normalmente não curto muito coisas que trazem reminiscências típicas da adolescência, como movimentos, culturas e vestir fantasias, mas estava feliz por estar na minha bike, deslumbrado pela paisagem, um pouco bêbado e doido. Não vou me preocupar com a perspectiva de estar agindo como adolescente, eu disse a mim mesmo. Vou fazer o que a castanha falante manda. Vou suuuuuuperrelaxar.

COM A MANHÃ VEIO A SOBRIEDADE e o caminho até Napa, e com a sobriedade veio a apreensão. Essa não seria uma excursão para qualquer lugar. Seria mais como 50 quilômetros de subidas e descidas íngremes e técnicas, num circuito que já foi sede da Copa do Mundo de mountain bike. E mesmo que eu não tivesse aspirações por um grande resultado, ainda desejava ir bem, o que significava terminar – e não em último lugar. A perspectiva de voltar a Nova York sem um abridor de latas de finisher do SSWC era algo horrível de se pensar.

Minha apreensão não diminuiu com a dolorosa pedalada de reconhecimento do percurso depois da inscrição. Peguei minha placa com o número (literalmente um pratinho de papel descartável com um número escrito em giz de cera) e meu vale burrito para depois da corrida, e me fui. Havia marcadores de percurso, mas eram contraditórios, e perguntar aos colegas me fez perceber que ninguém sabia muito bem qual o caminho. As únicas sinalizações que faziam sentido eram aquelas alertando para tomar cuidado com os leões da montanha.

Segui algumas setas vermelhas e me vi numa subida muito longa e íngreme. As festividades da noite anterior não ajudaram no meu desempenho e o ar e o terreno eram tão secos que eu temia que uma simples pedalada pudesse tocar fogo no parque inteiro. Finalmente, depois de parar muitas vezes, alcancei o topo da subida. Observei o vale de Napa com a mesma solidão que o cara do livro The Road, de Cormac McCarthy (que acaba de ser adaptado para a telona no filem A Estrada), observa a estrada, e comecei a perversa e pedregosa descida, que parecia mais como descer uma escada em caracol.

Isso me fez lembrar de um post no blog da SSWC que perguntava: “O que você acha de sentir-se um lixo no dia seguinte? Gosta? Então vá de garfo rígido”. Apesar disso, optei pelo garfo rígido, em parte para dar uma de machão, mas principalmente porque não tenho suspensão dianteira. Enquanto tomava meu caminho cuidadosamente pelos meandros pedregosos, me dei conta que realmente iria me sentir um lixo. O pessimista que achei que havia abandonado em San Francisco havia voltado. Amanhã, ele previu, a coisa vai ficar feia. Ainda assim, cheguei na manhã seguinte pronto para lutar enfrentar o terreno, a desidratação, os leões da montanha, o bom senso e centenas de outros ciclistas. Entretanto, ao contrário de vários deles, eu não estava usando vestido nem calcinhas.

Num 7-Eleven ali perto, fiz fila atrás de um cara de preto – quero dizer: máscara negra de bandido, capa e biquíni – comprando um pão doce. Até conseguir prender meu número ao guidão, já havia visto um macaquinho de lycra laranja, um collant de leopardo, uma máscara de luta livre mexicana e uma sunga dourada com, claro, capa combinando. Quase metade do campo de batalha estava vestido de maneira afeminada, e muitos deles estavam perigosamente perto de expor seus genitais.

Era para ser uma largada estilo Le Mans, então o organizador da corrida, Curtis Inglis, nos fez andar uns 200 metros, deixar as bikes e voltar à largada. Ele então nos fez um briefing sobre o percurso e informou que apenas os primeiros 150 ciclistas (dos 350 inscritos) ganhariam o abridor de garrafa com a colocação inscrita. “O quê?”, engasguei. Como eu havia mencionado, tinha que conseguir um daqueles abridores. Agora eu teria que competir de verdade. Olhei feio para um cara próximo, usando sutiã e orelhinhas de coelho. Curtis então anunciou que havia algumas cuecas branquinhas e apertadas com o logo SSWC08 no traseiro. Quem quisesse uma teria que pedalar usando-a, sendo que o que terminasse primeiro ganharia US$ 600 em brindes. Um grupo de ciclistas saiu correndo, agarrou suas cuecas e foi se trocar. Torci o nariz para a imagem do que lhes esperava: suas virilhas irritadas e cheias de hematomas. Então, após mais umas poucas palavras, Curtis deu a largada. E lá fomos nós.

AS HORAS SUBSEQUENTES de subidas horrendas, secas e sob um calor sufocante só podem ser comparadas a (1) estar preso numa sauna cheia de estudantes loucos de ecstasy em roupas de veludo ou (2) carregar uma poltrona namoradeira até o quinto andar, sozinho, sem elevador, num dia de verão infernal.

Uma vez encontrada minha bike, que eu havia estrategicamente deixado próxima a uma tandem, tomei a estradinha. Já participei de várias corridas na vida e, sendo um ciclista de técnicas parcas, já fui forçado a olhar para muitos traseiros, mas nunca me vi obrigado a olhar tal sortimento de partes posteriores tão grotescamente adornadas. Estou falando, em particular, daqueles cobertos com as cuecas oficiais SSWC08 que, quase imediatamente, ficaram encharcadas, caídas, deformadas e marrons.

A primeira das subidas era íngreme demais para a maioria de nós, então desmontamos e nos arrastamos morro acima, finalmente chegando a uma seção mais plana, de um single track mais “fluido”, que poderia ser confundido com o árido Parque Nacional do Serengueti, na África, não fosse pelo alegre tocador de gaita de fole num entroncamento da trilha. Logo veio a descida medonha, sinuosa e técnica que eu havia descido no dia anterior, e que estava cercada de espectadores usando todo tipo de paramentos ridículos. Alguns torciam, outros tiravam sarro e uma grande parte deles parecia estar bêbada. Era como um bizarro Alpe d’Huez, em que, em vez de subir uma estrada na França, íamos morro abaixo, numa trilha forrada de pedras, desejando estar na França.

Foi mais ou menos nesse ponto que me dei conta, pela primeira vez na minha “carreira” de competidor, que eu era verdadeiramente parte de um grande evento. Já havia corrido (muito mal) em campeonatos nacionais, mas sempre em minha categoria de idade. Já entrei nas categorias mais competitivas de um evento, mas isso apenas em corridas locais, de manhã cedo, quando ninguém fica olhando ou dá a mínima. E eu até já havia competido com cyclocross durante uma feira estadual, mas os únicos espectadores além da família e dos amigos eram passantes embasbacados. Nunca havia sido parte essencial de um evento que todo mundo havia vindo olhar, um entre centenas de pessoas que haviam se rendido à humilhação e à dor, só pelo amor à bicicleta. Enfim, eu era parte do show.

Percebi que, a despeito da dor, eu estava verdadeiramente superrelaxado e me divertindo. O fato da trilha ser linda não tornava as coisas ruins. Devido à grande variação de altitude, o percurso nos levou por uma variedade de paisagens, e se eu não estivesse tão concentrado em manter-me em pé, talvez tivesse aproveitado mais tempo para saboreá-las. Mas mesmo em meu estado anaeróbico eu estava comovido. Nas partes mais baixas, a trilha nos levou ao longo de riachos e florestas fechadas e escuras. Nos pontos mais altos, passamos por picos áridos, brancos e rochosos com vistas alucinantes do vale.

Os espectadores serviam como distração. Havia mulheres sensuais, vestidas como árbitros, oferecendo surras. Um cara de dreadlocks, vestindo um terno tipo anos 1970 mostrava cartões com frases feitas, como Bob Dylan no documentário “Don’t Look Back”. O mais agonizante foi quando me vi forçado a empurrar a bike numa pequena subida, depois de não tomar velocidade suficiente por causa de uma travessia de um córrego, e ter que ouvir um cara vestido de coelho rosa me chamar de “fracassado”. Me senti como um louco acometido por alucinações.

EM ALGUM PONTO, O BANDIDO DO 7-ELEVEN passa voando, com sua capa flutuando imponente ao vento. O mascarado, descobri mais tarde, era o mountain biker profissional Carl Decker. Quando ele me passa, está dando uma volta em mim, a caminho da vitória.

Quando completo a segunda volta, tudo dói. A trilha passou a ser meu mundo. Mas eu ainda consigo manter o ritmo e estou curtindo. A terceira, entretanto, é arrastada. Sei que vou terminar, então digo a mim mesmo para tratá-la como a volta da vitória, mas minhas forças estão se esvaindo. E o espírito do evento vai ficando cada vez mais longe: quando chego à última volta, muitos dos espectadores já se foram para a festa na largada/chegada, para banhar os primeiros colocados com cerveja à medida que chegam. E, além disso, todas aquelas descidas pedregosas no meu garfo rígido finalmente transformaram meus braços em macarrão passado do ponto. Estou virando geleia.

Um tempo atrás, um cara inglês havia me perguntado quantas vezes eu já havia caído. Me recusei a responder, pois não havia caído nenhuma vez e, na minha cosmologia, falar de queda te faz cair. Mesmo com esse cuidado, caí numa curva pedregosa. Por sorte, a volta está quase no fim. Carl Decker e a vencedora da categoria feminina, Rachel Lloyd, quase certamente estão sendo tatuados. Negocio a última e mais traiçoeira descida com sucesso e, como apenas metade dos que começaram, cruzo a linha de chegada. Alguém me entrega o item que me guiou durante toda a corrida como uma estrela guia: o abridor de garrafas. É maravilhoso, como se toda minha dor se manifestasse numa pequena peça de alumínio estampado, como um irritante grão de areia transformado em pérola. Ironicamente, as muitas, muitas cervejas que consumo depois vêm em lata.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2010)







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