Sangue bom

Por Mario Mele

MARCOS* NEM OLHA PARA TRÁS enquanto Carla*, sua namorada, injeta 10 ml de sangue em sua nádega, volume que ela retirou da veia do braço dele minutos antes. Em seguida, é a vez de ele repetir o procedimento na parceira. O casal é adepto da auto-hemoterapia, que consiste em administrar o próprio sangue numa região intramuscular. Esquisito? Sim, um pouco. Mas trata-se de uma terapia alternativa secular que, como qualquer outra que foge dos métodos da medicina convencional, está rodeada de polêmicas.

Numa ponta, uma corrente de médicos afirma que não há um estudo científico que comprove a eficácia do método e que, por isso, o mesmo não tem fundamento. “É a mesma coisa que dizer que água de coco com café cura câncer”, compara o hematologista Dante Mario Langhi Júnior, membro da comissão técnico-científica da Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (SBHH). Do outro lado da mesa, adeptos/defensores da auto-hemoterapia lotam fóruns de discussão na internet para compartilhar resultados às vezes milagrosos. Há até soropositivos que juram que tiveram a carga viral diminuída graças ao controverso tratamento.

Marcos e Carla são atletas multiesportistas de elite, que conheceram a auto-hemoterapia por meio de seus pais – por isso não hesitaram. “Meu pai trabalha na área da saúde, pesquisa muito sobre métodos alternativos”, diz ele. “Desde que descobriu que reaplicar o sangue no músculo também pode ser uma forma de manter o organismo livre de enfermidades, não só se tornou um praticante, como insistiu para que eu experimentasse”, completa. Já o pai de Carla usou a auto-hemoterapia para combater uma hepatite C, há nove anos. “Me tratei com uma terapeuta holística, que prescreveu oito aplicações, em ciclos semanais, de 3 ml de sangue no meu músculo”, conta ele, um engenheiro eletricista de 67 anos. Além da auto-hemoterapia, ele fez uso de outros métodos alternativos que usam argila e chás, e garante que hoje está completamente curado. “É um tratamento barato, e acredito que realmente pode ajudar a combater alguns males que atacam nosso organismo.”

Carla confessa que ficou apreensiva no começo, mas finalmente tomou coragem depois de descobrir a propensão em comum que pai, namorado e sogro tinham pela auto-hemoterapia. “O grande benefício é manter a imunidade sempre alta, mesmo mantendo uma rotina pesada de treinamentos”, diz. “Não acho que eu tenha ficado mais forte ou coisa parecida”, esclarece.

A primeira vez de Marcos foi no final de 2008, após participar de uma etapa do mundial de corrida de aventura, no Ceará. “Dali a somente três semanas eu iria para outra competição na Colômbia. Seria uma prova dura, de 450 quilômetros. Decidi então testar a auto-hemoterapia, não pensando em melhorar meu desempenho, mas como uma maneira de acelerar minha recuperação da prova anterior e ficar pronto para o próximo desafio”, conta Marcos. “Meu volume de treino é muito grande, mas depois das sessões de auto-hemoterapia, nunca mais senti minha resistência imunológica baixa. Também as dores que eu tinha na canela devido ao esforço exagerado sumiram.”

APESAR DE SER UMA TÉCNICA BEM DIFUNDIDA em vários países, no Brasil a auto-hemoterapia tem apenas um guru: o clínico geral Luiz Moura, de 85 anos. Por meio de um DVD, produzido em moldes caseiros e divulgado gratuitamente por simpatizantes, Moura inicialmente explica no que consiste a prática. A narrativa segue com ele, num discurso sereno, comentando casos que já tratou – desde um simples problema de pele até quadros infecciosos avançados, todos revertidos graças à auto-hemoterapia. “É uma técnica simples, em que, mediante a retirada de sangue da veia e a aplicação no músculo, estimula-se um aumento dos macrófagos”, declara ele no vídeo, também disseminado na internet.

Os macrófagos são a peça-chave da auto-hemoterapia. Trata-se de um tipo de célula que todos nós carregamos e que entra em ação durante qualquer infecção, para combater os organismos estranhos. Segundo o doutor Luiz Moura (como é conhecido pelos seus seguidores auto-hemoterápicos), depois de uma única aplicação – que pode conter até 10 ml de sangue – a taxa dessas células no sangue sobe de 5 para 22% e se mantém nesse nível por cinco dias. Tal reação seria provocada pela simples presença do sangue no músculo, um lugar onde ele definitivamente não deveria estar. Mas, apesar de ser reconhecido pelo corpo como um antígeno, esse sangue não causaria nenhuma reação alérgica, já que foi retirado da própria pessoa. O resultado, dizem os adeptos, é um organismo protegido, pronto para liquidar doenças. Já os especialistas condenam duramente a auto-hemoterapia. “A medicina não é empírica. Ela necessita de uma metodologia de pesquisa quando se quer provar algo”, refuta Dante Mario Langhi Júnior, o hematologista da SBHH. “A auto-hemoterapia é um procedimento invasivo, e isso se chama propaganda enganosa”, enfatiza.

Discussões à parte, é bom deixar claro que a auto-hemoterapia não pode ser colocada no mesmo balaio do doping sanguíneo, apesar de o sangue ser a matéria-prima de ambos. Diferente da “terapia dos macrófagos”, o doping com sangue é uma reinfusão do líquido vermelho, que pode ser do próprio atleta ou de outra pessoa, na veia, com o único objetivo de melhorar o rendimento físico. O volume extra de sangue aumenta os níveis de hemoglobina, o que por sua vez melhora a capacidade de o organismo transportar oxigênio. Portanto, nesse tipo de doping, o sangue serve para turbinar o potencial aeróbico. É por isso que o doping sanguíneo é proibido pela Wada (a agência mundial de controle ao doping), que quebra a cabeça para desenvolver um exame capaz de detectá-lo – afinal, o atleta não tem nada além do próprio sangue, ainda que em maiores quantidades, correndo nas veias.

POR FALAR EM LÍQUIDOS que correm pelo corpo, chegamos à urinoterapia – a técnica em que se bebe a própria urina para reaproveitar substâncias benéficas que seriam sumariamente despejadas esgoto afora. “Um sangue cheio de vitaminas e nutrientes de primeira qualidade corresponde a uma urina com a mesma composição”, relacionou a médica Maria de Fátima Assunção Pimenta na palestra que deu durante a 3ª Conferência Mundial de Urinoterapia, realizada em 2003, em Belo Horizonte.

Tomar um copo de xixi fresco logo ao acordar não parece muito animador. Mas, segundo ela, é uma maneira fácil de o organismo reabsorver hormônios e nutrientes importantes para seu bom funcionamento – com menor gasto de energia, inclusive. “a urina é um espelho fiel do que se passa dentro do corpo. Essa imagem culturalmente criada de que a urina é o lixo do sangue, não se justifica”, defende. “A quantidade de toxina que ela carrega depende da quantidade de toxina que está no sangue. O rim não tem a característica de selecionar o que é sujo ou limpo; a função de desintoxicação é, principalmente, do fígado”, finaliza. O médico nefrologista Antônio Junqueira acha repulsiva a ideia de tragar urina, mas admite. “Do ponto de vista técnico, urina é sangue filtrado. Ao menos que o indivíduo tenha uma infecção urinária, por exemplo, ela é estéril”, explica.

Recentemente, o lutador brasileiro Lyoto Machida chamou atenção para a urinoterapia depois que assumiu ter herdado a prática de seus ancestrais orientais. E certamente muita gente tomou coragem para beber o próprio xixi quando soube que, além do brasileiro, outros “mãos-pesadas” como o boxeador mexicano Juan Manuel Márquez e os norte-americanos Adam Paolino, atleta do taekwondo, e Luke Cummo, do MMA, também declararam publicamente que curtem o líquido amarelo.

MAS A TÉCNICA QUE MAIS TEM SIDO USADA pelos esportistas dos ringues é a do plasma rico em plaquetas (PRP). Segundo os entusiastas, o PRP não serve para dar mais potência a socos e chutes, mas acelera a recuperação de uma lesão, seja em tendão, osso, músculo ou cartilagem. Outro ponto a favor, defendem os usuários, é que o PRP diminui inclusive as chances de cirurgia no indivíduo que alguma vez já rompeu alguma dessas estruturas.

No Brasil, o ortopedista Carlos Henrique Bittencourt é um dos pesquisadores do PRP, e já utiliza a técnica em seus pacientes. Ele explica como funciona: “Tira-se, com uma seringa, 50 ml de sangue da pessoa. Em seguida, esse sangue é centrifugado, e dividido por peso molecular. As hemácias, que são mais pesadas, ficam embaixo. O plasma ‘pobre’, o mais leve, estaciona em cima. Entre esses dois, estão cerca de 8 ml de plaquetas, o ‘plasma rico’. Um exame de sangue numa pessoa com a saúde normal indica 200 mil plaquetas por milímetro cúbico. Com a centrifugação, é possível conseguir um material com concentração de 2 milhões de plaquetas por milímetro cúbico.”

Esse processo de reunir as plaquetas tem um objetivo: nelas estão as proteínas de regeneração básica. Diferente das células-tronco primárias, que contêm todas as proteínas necessárias para formar órgãos e tecidos do nosso organismo, e que se extinguem ao final da gestação, as de regeneração básica são menos complexas e formam osso, cartilagem, pele e músculo. É por isso que as plaquetas, condensadas, são reinjetadas exatamente no lugar da lesão. “Por um fenômeno gênico conhecido, quando ela chega ao osso, forma osso; quando chega ao tendão, forma tendão, e assim por diante”, garante Carlos Henrique, que hoje tem atletas profissionais – de lutadores a jogadores de futebol – entre os pacientes. Não há risco, portanto, de as plaquetas iniciarem a produção de um tecido muscular onde deveria haver osso.

Pela maneira de administrar o sangue com uma seringa, a PRP já foi apelidada de “auto-hemoterapia de rico”. “Não tem nada a ver”, defende o ortopedista. “Ao contrário da auto-hemoterapia”, diz ele, “a PRP tem uma finalidade específica: intensificar a regeneração natural. Uma fratura na tíbia leva cinco meses em média para ser corrigida, porque chega pouco sangue à região. As plaquetas aceleram o processo, e podem diminuir esse tempo pela metade”.

O “rico”, no caso, não tem ligação com as plaquetas, mas com o preço de uma sessão, que pode ultrapassar R$ 1.000. “O que encarece é o kit, que é importado, e custa entre R$ 5 mil e R$ 6 mil”, explica Carlos Henrique, referindo-se à máquina centrífuga para deixar o sangue trifásico. “Porque a matéria-prima (o sangue) é barata”, emenda.

Para dar sua última defesa em favor da PRP, Carlos ainda relembra o que ouviu de um dos pesquisadores presentes no congresso mundial de cartilagem em Varsóvia, na Polônia, promovido pela Sociedade Internacional de Reparo de Cartilagem (ICRS; cartilage.org), em 2007: “Senhores ortopedistas, vocês têm que se preparar para, num futuro não muito distante, trocar pregos, parafusos, próteses e placas por injeções”. Pode ser mais um indício de que novas descobertas ainda devem vir do sangue.

*Os nomes de alguns personagens dessa matéria foram omitidos para preservar a privacidade deles

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2010)







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