Arquitetando o futuro


SONHO: Luciano e Gustavo em meio ao seu projeto de vida

Por Renata Leão

Fotos por André Brandão

ALÉM DE VICIADOS EM ESPORTES outdoor e corridas de aventura, os irmãos Luciano, 32 anos, e Gustavo Junqueira, 34, têm outras afinidades que ultrapassam o âmbito familiar e o gosto por adrenalina. Arquiteto formado pela Universidade Mackenzie, em São Paulo, o mais novo é surfista nas horas vagas, corre com os Mamelucos – uma das melhores equipes de corrida de aventura do Brasil – e ganha dinheiro projetando casas, pousadas e hotéis. O mais velho, contaminado pelo vício do irmão, também tem uma equipe de aventura, também pega onda nas horas vagas, é engenheiro agrícola e tem uma bem-sucedida empresa de consultoria ambiental em Campinas. Mas o mais legal que os dois têm em comum não é nada disso. Eles são visionários. Inconformados em levar a profissão que escolheram apenas para faturar seu trocado e, assim, curtir a vida, eles descobriram, quatro anos atrás, algo que agita de verdade suas veias e ainda faz o elo entre a profissão e a aventura, a natureza e a ecologia: o bambu.

Luciano já saiu da faculdade empregado. Trabalhou no escritório do renomado arquiteto Sidônio Porto, em São Paulo, por dois anos, de onde saiu para montar seu próprio negócio. Hoje tem clientes fiéis e projeta casas em diversos points do litoral brasileiro. Mas faltava algo que realmente o instigasse. Em 2000, depois de voltar de uma viagem de seis meses pela Austrália e Indonésia, encontrou um amigo que o fez chafurdar a alma com uma pergunta: “Luciano, o que realmente te interessa na arquitetura?”. Ele disse que gostava muito de mexer com madeira e o amigo sugeriu que desse uma olhada em algo diferente, o livro do arquiteto Renzo Piano, o italiano que projetou o Pompidou [museu de Paris que é o mais visitado do mundo] e que trabalha com bambus misturados a estruturas metálicas. “Tinha visto muitas construções com bambu na Indonésia, mas não sabia que existia toda uma tecnologia para o uso do bambu na arquitetura e na construção civil”. Quando Luciano viu que o top do top da arquitetura estava vislumbrando a qualidade do bambu em suas obras, pensou: “Alguma coisa tem aí e eu quero ver o que é”.

Nessa época, Gustavo, apesar de apaixonado por ecologia, meio-ambiente e natureza, trabalhava em um banco, na área de mercado financeiro. Ia bem na carreira, cuidava de commodities agrícolas, mas o dia-a-dia com números, elevadores, terno e gravata não tinha nada a ver com ele. Ao saber das descobertas do irmão com o bambu, pegou carona na idéia e mergulhou no assunto. “O Luciano comprou um livro chamado Bamboo World, do arquiteto australiano Victor Cusack e eu me apaixonei”, lembra. “Fui tomando gosto pela coisa e fiquei com uma vontade imensa de trabalhar com bambu no Brasil”. Rapidamente descobriu um grupo no Yahoo que discutia o assunto e, através da troca de informações, soube da existência de um curso na China, o International Training Course on Bamboo Technology, oferecido pelo China National Bamboo Research Center. Encantado, pediu as contas no banco em que trabalhava, deixou o terno e a gravata no fundo do armário, e se mandou para Hangzhou, cidade a uma hora de trem de Xangai, leste do país.

A CHINA É O PAÍS-MESTRE na tradição do cultivo e na transformação do bambu em bens de consumo. Lá, a utilização do bambu na construção civil e no artesanato tem mais de cinco mil anos e a cultura dessa gramínea é encarada como um baita agronegócio. A área de cultivo supera os três milhões de hectares e as diversas formas de utilização da planta movimentam mais de um bilhão de dólares por ano. São os chineses que detêm a mais alta tecnologia em maquinários de processamento de bambu. “Estava em crise com minha carreira, pois não fazia algo que gostava realmente. Então pedi demissão, vendi o carro e fui para a China”, conta Gustavo.

O International Training Course on Bamboo Technology acontece uma vez por ano, dura quatro meses e é gratuito. São oferecidas duas vagas para cada país em desenvolvimento. O curso enfoca a industrialização do bambu e a tecnologia necessária para isso. A idéia dos chineses é que os alunos voltem aos seus países, convençam empresários a investir no setor e importem a tecnologia deles, que fabricam desde fibras para roupas, pisos laminados e fôrmas de concreto a telhas e alimentos à base de bambu. “Cheguei lá e vi que as possibilidades eram muito maiores do que imaginava”, conta Gustavo. “A idéia era aprender a produzir o bambu para que meu irmão pudesse utilizá-lo em seus projetos de arquitetura”.

Gustavo passou quatro meses estudando, mais dois conhecendo as quebradas chinesas na companhia da namorada e, quando chegou ao Brasil, coincidiu de um amigo estar abrindo uma empresa de consultoria ambiental. Ele sabia que o negócio com o bambu era algo para longo prazo e investiu na nova empreitada, que deu certo e vai muito bem, obrigada. Paralelamente, ele e o irmão montaram um viveiro onde cultivam diversos gêneros de bambus no sítio da família, no interior de São Paulo.

“Quando o Gustavo chegou, estávamos cheios de sonhos, mas não podíamos viver só de bambu”, manda Luciano. “Por isso cada um foi fazer uma atividade paralela para poder continuar, aos poucos, investindo na história”. Gustavo explica que o bambu no Brasil é algo que ainda está para acontecer e que pouquíssimas pessoas trabalham com ele. “Mas sabemos que os investidores vão querer depositar suas fichas nesse negócio e, quando isso acontecer, nós teremos as mudas para um grande plantio”, planeja. “O bambu será uma grande opção de atividade agrícola porque, além de barato e rentável, é um recurso completamente amigo do meio ambiente, diferente da madeira, porque tem um crescimento muito rápido e um manejo sustentável. Além disso, o bambu é um grande seqüestrador de gás carbônico”. Segundo ele, o Brasil, que tem a maior variedade da planta nas Américas, mas poucas áreas de cultivo, tem condições de sobra para isso, já que conta com terra e clima favoráveis.

A certeza dos irmãos Junqueira não se baseia só no feeling. Existe a hipótese de um “apagão da madeira”, previsto por entidades como a Sociedade Brasileira de Silvicultura e pela Associação Brasileira da Indústria de Madeira para 2007. Os plantios anuais de madeira não têm ultrapassado 250 mil hectares no Brasil. E a necessidade, para não haver um “apagão”, é de 630 mil hectares – e não estamos falando em extração ilegal. O custo da madeira dobrou no Brasil nos últimos três anos. E o tal “apagão” significa oferta menor e mais aumentos. Tudo muito propício ao advento do bambu.


RENDA: Senhor Miyazaki e sua plantação de bambu em Guarulhos (SP), a melhor do Brasil

ENQUANTO GUSTAVO SE ESPECIALIZAVA NA CHINA, Luciano foi procurar quem entendia do assunto por aqui. Não demorou muito, encontrou a arquiteta carioca Celinna Llereno. Depois de 25 anos trabalhando com arquitetura tradicional, ela se apaixonou pela bioarquitetura, como gosta de chamar os projetos com bambu, e passou a se dedicar somente a ela. Hoje, é uma das principais autoridades em termos de bambu na arquitetura e construção civil no Brasil. Foi em 2001, em um casamento no Hotel do Frade, em Angra dos Reis, que tudo começou. “A estrutura do restaurante do Frade é toda feita de bambu. Quando vi aquilo, pirei”, lembra. “Descobri que o autor do projeto era o colombiano Simón Vélez e fui procurá-lo em seu país”.

Apesar de a China deter a maior tecnologia em artesanato e laminados, a Colômbia é o país com a maior tradição em arquitetura e construção civil com bambu. Quem começou com essa história, por lá, foi o arquiteto Simón Vélez, que hoje em dia viaja o mundo ensinando o que sabe. “Passei um tempo na Colômbia com ele e com o Marcelo Villegas, o grande executor das obras do Simón, uma espécie de carpinteiro do bambu”, lembra. “Isso me estimulou muito, porque tinha perdido o interesse pela arquitetura tradicional por causa dos preços caríssimos dos materiais e da falta de consciência ecológica”.

Aqui no Brasil, Celinna é a maior divulgadora da arquitetura feita com bambu. Há três anos, ela comanda a Escola de Bioarquitetura e Centro de Pesquisa e Tecnologia em Bambu, a Ebiobambu. Localizada em uma área verde em Visconde de Mauá, no Rio de Janeiro, a escola recebe dezenas de pessoas interessadas nessa onda, como Luciano, todo mês. Por enquanto, essa é a única instituição brasileira empenhada em divulgar o bambu como uma opção ecológica, barata e eficaz para a construção civil. Celinna explica que cada tipo de bambu se comporta de maneira diferente e que o que falta para que o país enxergue essa potencialidade e, assim, desenvolva estudos e estimule a bioarquitetura, é cultura. A arquiteta gosta de explicar o assunto com duas perguntas: “De que maneira introduzir a cultura do bambu no Brasil?” e “De que maneira introduzir o bambu na cultura brasileira?”, indaga. “A resposta da primeira questão é: com arte, cidadania e reconhecimento dos órgãos públicos. A da segunda é: com educação, cursos e workshops”.


ANGRA DOS REIS (RJ): Restaurante do Hotel o Frade e Golf Resorts

Ela lembra que é necessário um reconhecimento tanto do Ibama quanto da sociedade civil, já que o bambu é descrito pela lei como uma construção temporária. “Isso não tem cabimento. Se projetada com os devidos cuidados, uma construção de bambu dura séculos. Na Colômbia existem edificações de mais de 200 anos”, garante, e emenda: “Meu grande trabalho hoje é estimular a criação de linhas de crédito do governo tanto para a produção, como para a pesquisa em bambu”.

Quando não está em sua escola dando aulas, Celinna está mexendo os pauzinhos no Rio, no Acre (onde existe a maior concentração de bambu no Brasil) ou em Brasília. Vira e mexe ela recebe telefonemas de empresários dizendo que querem fazer uma fábrica de laminados ou investir no setor. Ela responde que, primeiro, é necessário plantar para, depois, pensar nisso. “Não adianta querer que exista uma cultura do bambu no Brasil sem antes começar a plantar, e isso envolve estudo e tecnologia, já que cada gênero de bambu pede uma espécie de corte e uma época para a colheita”, explica.

Como ela e os irmãos Junqueira – que já têm suas respectivas plantações – outras pessoas começam a fazer o mesmo. Um pouco aqui, outro pouco ali, a cultura do bambu está pipocando pelo país e promete. Tanto a arquiteta como os irmãos esportistas têm certeza de que, daqui alguns anos, colherão todos os frutos que estão plantando com essa atividade que, além de emocionante, é viável e, mais ecológica, impossível. “O bambu é uma praga e se alastra facilmente. Cresce muito rápido e é renovável e auto-sustentável. Quer opção mais ecológica que essa?”, encerra Celinna.

Quer saber mais? visite o site da Cellina: www.bambubrasileiro.com/ebiobambu


RECEPÇÃO: Hotel do Frade

BAMBUCICLETA

Milton Felicissimo, dono de uma microempresa em Rio Claro, no interior de São Paulo, é uma espécie de Tio Patinhas do bambu. Fissurado por bicicletas, ele inventou a bambucicleta, cujo quadro é feito de bambu e o acabamento de suas junções, com resina plástica laminada. Ele é cabreiro com sua cria e não gosta de dar os detalhes de sua criação. Leva três meses para montar uma bicicleta sob encomenda, cujo quadro não chega a pesar dois quilos. Justamente por causa dessa leveza, tem conquistado muitos adeptos do meio dos esportes, doidos para testar a magrela-ecológica. “Tinha essa idéia na cabeça há anos, até que um dia resolvi pôr em prática”, conta. “Se Santos Dumont fez o 14 Bis com bambu, por que eu não poderia fazer o quadro de uma bicicleta?”, brinca. Ele cobra cerca de R$ 2.000 pelo serviço e pode ser encontrado no e-mail milton.felicíssimo@itelefonica.com.br.


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de setembro de 2005)







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