Safári da bicicleta

Por Mário Roma*

Eram apenas 6h30 de uma gélida manhã sul-africana e eu já estava todo equipado, com a bike entre as pernas, pronto para a maior epopéia sobre duas rodas de minha vida. Ao meu lado, meu parceiro, o brasileiro Paulo Noto, de olhos arregalados. Atrás de mim, outras 432 duplas de 32 países. O campeão olímpico e mundial de mountain bike, ali ao lado, sorri e me deseja boa sorte. Em poucos minutos eu daria minhas primeiras pedaladas nos 900 quilômetros da Cape Epic, uma das ultramaratonas de mountain bike mais longas e duras do mundo.

Minha trajetória como ciclista até chegar ao pórtico de largada da Cape Epic não tinha sido das mais longas. Depois de doze anos no mar fazendo travessias atlânticas e provas de vela oceânica, fui subir numa mountain bike pela primeira vez só em 1989. Em pouco tempo, porém, as montanhas se tornaram o que o oceano sempre tinha sido para mim: um parque de diversões ilimitado. Cada vez eu queria ir mais longe.

Em 2003, quando participei da TransAlp Challenge – espécie de Tour de France off-road e um desafio monstruoso para quem só tinha três anos de pedal –, recebi o convite para uma nova epopéia de mountain bike, a Cape Epic. Eram 600 quilômetros de trilhas e estradas na África do Sul, com 12 mil metros de desnível e oito dias de prova. Ainda com as pernas pesadas e doídas da montanha-russa européia, tive um surpreendente surto de sensatez e pedi para guardarem minha vaga para 2005. Aí sim, estaria preparado para o desafio.

Foi a melhor coisa que fiz, já que esse ano o desafio cresceu de 600 para 900 quilômetros, com 16.000 metros de desnível – o mesmo que subir duas vezes o Monte Everest, só que de bicicleta. Um ano a mais também fez diferença nos ciclistas ao meu redor. Depois do sucesso da primeira edição, os melhores mountain bikers do mundo estavam ali para ver se aquela era mesmo a corrida mais dura de todas.

O lado psicológico e a parceria são essenciais numa prova de oito dias, por isso convidei um grande amigo, o Paulo Noto, para me acompanhar nessa roubada. A dupla Webike-Imigrantes.org estava formada. Antes que o Paulo pudesse se arrepender, botei nós dois para treinar. Durante a semana, suávamos das 5 às 8 da manhã, em treinos de musculação ou bike. Nos fins de semana as pedaladas iam longe, na estrada ou em trilhas. Uma rotina difícil pra quem tem família, trabalho e vive numa megalópole com 18 milhões de habitantes.

CAFÉ COM BOLACHA

O quartel general da pré-prova era a bela vila de Knysna, de cara para o Oceano Indico, uma enorme baía com o metro quadrado mais caro da África do Sul e as melhores trilhas para corrida e mountain bike no país. Dois dias de fortes chuvas antes da largada serviram para, entre um café e outro, rever velhos amigos e conhecer novos espécimes da fauna peculiar que se reúne nesse tipo de prova: de corredores da Maratona de Sables a figuras do Livro Guiness dos Recordes. Num desses cafés, Kevin Vermaak, o diretor da prova, me contou como nasceu a Cape Epic. “Há três anos, corri a La Ruta, uma prova de MTB de três dias na Costa Rica e resolvi fazer uma prova do tipo em minha terra natal”.

Kevin não poupou esforços para fazer da Cape Epic uma prova de nível internacional. Seu objetivo era oferecer pedaladas intensas e descanso confortável. Cada biker recebeu quatro chips: um, no tornozelo, marcaria os tempos de prova. Outro, em formato de relógio, daria acesso às áreas exclusivas e às refeições. O terceiro identificava os sacos com as roupas e suplementos dos ciclistas, já que seria transportado pela organização. Por último, um chip ficaria na bike.

Na contagem regressiva para a prova, minha cabeça não parava. “Será que esqueci algo? Treinei o suficiente? Minha bike vai agüentar?”. Megabytes e megabytes de dúvidas eram processadas constantemente pela minha mente. Mas a pior era: “vou conseguir ir até o fim dessa loucura?”. Para aumentar o nervosismo, eu e o Paulo recebemos da organização, numa espécie de gentileza assassina, o número 39, que nos colocava no olho do furacão, dentro do pelotão de elite, junto aos 100 bikers mais bem classificados no ranking mundial. Não me pergunte o que eu fazia entre eles.

1º DIA: Knysna – Saasveld

128,5 km

2.940 m de ascensão

Na largada da primeira etapa, olho para trás e vejo um tapete colorido de capacetes, cercado por fotógrafos, parentes, amigos e moradores da cidade. Quando a sirene gritou, as correntes se esticaram, as sapatilhas se encaixaram nos clipes e saímos. Não demorou nada para que ficássemos cobertos de lama. Sentindo minhas pernas travarem de frio, eu me perguntava onde estaria o tal calor africano. Após 7h52m16, cruzamos a linha de chegada em Saasveld, uma cidadezinha que naquele dia triplicou sua população de 500 habitantes. Começava a rotina que repetiríamos nos próximos dias: pegar os sacos de roupas e suplementos, reservar uma das mil tendas montadas pela organização, lavar as bikes, tomar banho quente no caminhão construído especialmente para a prova, deixar as magrelas no bike park e jantar.

Toda a alimentação era fornecida por um resort quatro estrelas e a comida era boa e variada. Durante o jantar víamos o filme e as fotos do dia, e os líderes recebiam suas camisetas. Às 8 da noite, cada atleta estava em seu “ovinho amarelo”, descansando pernas e bunda no colchão de espuma. As tendas eram extremamente confortáveis e quentes para um acampamento nas frias noites do deserto africano. A iluminação era minha lâmpada de cabeça, velha amiga das provas de aventura, e a única companhia era o meu MP3. Assim seria meu lar nos próximos oito dias.

2º DIA: Saasveld – Herbertsdale

144,6 km

2.720 m de ascensão

A primeira sirene, às 5 da manhã, nos arrancou dos sonhos e das tendas. A segunda, duas horas depois, nos colocou pra pedalar. Como esperávamos, a distância foi mais difícil que as subidas. O calor bateu nos 35 oC e eu não via a hora de chegar num dos pontos de água montados pela organização. Eram sempre três em cada etapa, sendo que o segundo ainda oferecia frutas, isotônicos e Coca-Cola. Uma miragem!

Após 9h10m41 finalizamos essa mega etapa em Herbertsdale, uma cidadezinha rural. Checando os resultados, descobrimos que mais de 30 equipes já tinha abandonado a prova. Numa maratona como a Cape Epic, é impossível prever como o corpo e a bicicleta reagirão. Minha bike parecia não sentir nada, mas meu corpo de 41 anos sofria. Depois dos quase 150 quilômetros de pedal, fui dormir quebrado.

3º DIA: Herbertsdale – Riversdale


104 km

1.435 m de ascensão

Ainda acordei quebrado, mas foi só ouvir a largada pro corpo “pegar no tranco”. As primeiras pedaladas foram em pé, numa vã tentativa de poupar minha já judiada bunda. Trinta quilômetros da chegada o pneu traseiro do Paulo rasgou. Perdemos uma hora fazendo um “curativo” e terminamos a etapa em 6h22m38. As crianças locais nos pediam autógrafos – eu me sentia um astro! – e faziam questão de nos ajudar a lavar as bicicletas. Queriam de alguma maneira ficar perto daquela tribo esquisita e colorida que mudava a rotina da pequena Riversdale, entre o Oceano Índico e a Serra da Langeberg, aos pés de uma montanha batizada de Sleeping Beauty (“Bela Adormecida”).

Até as 5 da tarde – horário limite de chegada para não ser desclassificado –, ciclistas cruzavam a linha de chegada, com fisionomias cada vez mais cansadas conforme o relógio ia avançando. O esforço dos retardatários era reconhecido até pelos mais pros. “Não sei como eles conseguem se preparar para uma prova como esta tendo que trabalhar durante o dia. Pedalam o dobro do tempo que nós e têm muito menos horas para se recuperar”, espantava-se Roel Paulissen, número 1 no ranking mundial de mountain bike da International Cicling Union (UCI).

4º DIA: Riversdale – Barrydale

110,6 km

2.425 m de ascensão

5h30 da manhã e o cheiro de protetor solar e vaselina já está no ar. Hoje nos esperam as temidas “Monster Climbings” (subidas monstruosas). E como eram monstruosas. Enormes e extremamente difíceis. O visual estava ficando mais árido e o sol cada vez mais forte. Os joelhos sentiam o esforço. Após a segunda subida chegamos ao Grootvadersbos Nature Reserve, onde encontramos 15 quilômetros de trilhas muito técnicas, com uma lama preta grudenta. Aí, o impossível aconteceu. Numa queda, o eixo da bike do Paulo se quebrou.

Estávamos no topo de uma montanha e sem o eixo da roda traseira. Resolvemos prender a roda com braçadeiras de plástico e um pedaço de corda para que o Paulo ao menos conseguisse empurrar a bike enquanto eu descia a montanha e procurava a peça em algum vilarejo. Faltavam três horas para o tempo limite e estávamos a 35 quilômetros da chegada. A pé, não ultrapassaríamos os 4 km/h e seríamos desclassificados. Essa idéia me apavorava.

Depois de alguns quilômetros de pedal desesperado, cruzei com um grupo de cicloturistas e expliquei minha situação. Imediatamente, um deles retirou o eixo de sua bike e me deu. Não tenho idéia de como ele fez para seguir seu passeio sem o eixo, mas nunca vou esquecer sua atitude. Montamos a roda do Paulo e descemos a montanha sorrindo. Demoramos 8h17m, mas o gosto era de vitória. Pela primeira vez senti que nossas chances de completar a Cape Epic eram boas. Já tínhamos feito metade da prova.

5o DIA: Barrydale – Montagu

107,4 km

1.135 m de ascensão

Essa foi uma manhã de adrenalina e medo. Pela primeira vez uma prova de mountain bike cruzaria a Sanbona Wildlife Reserve, uma reserva que abriga os “Big Five”, ou os cinco grandes animais africanos: leões, leopardos, rinocerontes, elefantes e búfalos. Na estrada, vários Rangers monitoravam os animais. Num ponto de água, dois deles comentaram que leões estavam a 150 metros de nós. Não vimos nada. Quase na saída da reserva, pedalávamos junto com um sul-africano que nos chamou atenção para os búfalos. Só mesmo um olho nativo para captar esses animais no meio da paisagem. Chegamos depois de 6h30m54 e o Paulo aproveitou para fazer uma massagem – mais um mimo oferecido pela organização. Chegar cedo tinha essas vantagens. Dava mais tempo para descansar e cuidar das roupas, que começavam a cheirar a carniça.

6o DIA: Montagu – Villiersdorp

127,3 km

2.030 m de ascensão

Bem que a organização avisou que a sexta etapa seria lembrada pelos espinhos. Batemos a marca de oito pneus furados, cinco do Paulo e três meus. Pelo caminho, diversas equipes na mesma situação. A certa altura, passou por nós um amigo italiano que, depois do enésimo furo, gritava e xingava a mama, a santa dona e daí por diante. Após o segundo ponto de água, ainda veio uma grande seção de areia branca e um “empurra-bike” sofrido que nos levou ao topo da montanha e a uma descida espetacular para o rio Poesjeuls. As montanhas pareciam um anfiteatro rochoso em torno de nós, uma espécie de cenário do filme Senhor dos Anéis. Mais uma etapa vencida, desta vez em 7h56m54.

No jantar, um momento especial: mais de 800 bikers aplaudindo de pé o participante mais velho da prova, o sul-africano Dennis McCann, com 75 anos e em sua segunda tentativa de terminar a Epic. Em 2004 ele teve de abandonar a prova após machucar o ombro ao escorregar no banho uma noite antes do último estágio. Este ano, só para garantir, ele convidou seu ortopedista para correr com ele. Sorte. Dennis sofreu uma queda no 4o dia de prova e quebrou o quadril. “Me arrisquei mais do que podia no downhill e caí. Mas já é um privilégio estar neste grupo de elite. A amizade e o companheirismo nesta corrida me emocionam. Obrigado”, disse ele em discurso.

Essa foi também a noite dos grilos. Uma nuvem invadiu a área da competição. Deitado, eu ouvia o barulho deles se chocando contra as paredes da tenda. Na manhã seguinte, o visual era ainda mais surreal. Um chão coberto por grilos mortos que estalavam sob nossas sapatilhas.

7o DIA: Villiersdorp – Boschendal

103,7 km

1.875 m de ascensão

Na penúltima etapa, uma contradição total. De um lado a sensação do corpo e do outro um coro interno gritando: “vamos lá, falta pouco!”. Dois minutos antes da largada, o diretor de prova informou a morte, durante a noite, de Leon Steenkamp, 62 anos. Ele sofrera uma parada cardíaca em sua tenda. Fizemos um minuto de silêncio em sua homenagem, enquanto os sinos da igreja local batiam. A largada foi silenciosa e triste.

15 quilômetros depois, uma subida de duas horas nos levou ao ponto mais alto da prova, o Monte Lebanon, a 1.201m. Na base da montanha pedalamos com sol. No meio da subida atravessamos as nuvens e logo depois estávamos acima delas, vendo os picos como se fossem ilhotas num mar de algodão. Todo mundo parava pra fotografar a cena. À noite fiquei sabendo que até os atletas de elite esqueceram a competição e pararam ali para curtir o visual.

Depois da subida veio um downhill longo e técnico que causou vários acidentes. O corpo estava cansado e pilotar as bikes era cada vez mais difícil, ainda mais em velocidades superiores a 65 km/h. Presenciei um pelotão de seis bikers cair inteiro, em plena reta, após baterem neles mesmos.

Depois de 6h53m09, chegamos em Boschendal, uma das vinícolas mais antigas do mundo, num lugar superprivilegiado. O bar da prova ficou cheio de atletas já brindando a conquista. Era a última noite na “bolinha amarela”, e senti uma ponta de melancolia. Amanhã à noite a vida voltaria a ser igual.

8o DIA: Boschendal – Spier

47 km

1.210 m de ascensão

O clima na largada era de festa. Faltava pouco e ninguém se importava de serem os 47 quilômetros mais técnicos da prova – 1.200m de subida de pedra solta, com um “empurra-bike” violento na parte final. Do outro lado da montanha, nada menos que a pista do mundial de downhill de 1997. É, a Cape Epic nunca fica fácil.

Ao avistar a placa “1 KM TO FINISH”, tirei as bandeiras do Brasil e de Portugal do bolso e cruzamos a linha dos 900 km. À nossa volta, ciclistas se abraçavam, choravam, comemoravam. A sensação de conquista e realização era coletiva. Ficamos em 150o de 250 equipes na categoria masculina. Pedalamos 56h40m em oito dias. Ganhamos as tão sonhadas camisetas de “FINISHER”, e lembranças e experiências insubstituíveis que vão durar mais que o algodão das camisetas.

Os vencedores entre os homens foram a dupla formada pelo belga Roel Paulissen e pelo dinamarquês Bart Brentjens, campeão olímpico em 1996 e um dos mountain bikers mais bem sucedidos do mundo. Eles fecharam a prova em 31h20m, depois de terem ganhado sete dos oito estágios. Entre as mulheres, a dupla local Hannele Steyn-Kotze e Zoë Frost foi a campeã. Hannele foi a melhor mountain biker sul-africana por muitos anos, mas Zoë, ex-jogadora profissional de golfe, começou a pedalar há pouco mais de um ano, para recuperar a forma depois de dar a luz a gêmeos. Antes da Cape Epic, ela tinha participado somente de duas provas de mountain bike. “Foi bem mais difícil do que eu esperava. Acho que minha força está em minha mente”, dizia ela aos repórteres na chegada. As duas completaram a prova em 41h05m.

Números da Cape Epic 2005

• 433 duplas de 32 paises largaram

• 310 equipes abandonaram a prova

• 16.020 m de ascensão total

• 901.1 km de distância total

• 500.000 litros de água transportada

• 1.000 cookies, 3.000 bolos e 700 pães em cada café da manhã

• 60 veículos de apoio

• 100 toneladas de equipamento deslocados diariamente (incluindo 500 malas, 800 cadeiras, 130 mesas, 1.000 tendas e 1.000 colchões)

• 240 assaduras causados pelo selim

• 232 bikes compradas exclusivamente para a prova

• Preço médio das bikes na Cape Epic: 4 mil dólares

• 43% das bikes têm freio a disco

• 52% dos homens raspam as pernas

• 714 atendimentos feitos pela equipe médica

• 588 horas de serviço mecânico nas bikes

• 96 ferimentos nos olhos, 54 joelhos machucados e 4 fraturas

• Competidor mais novo: 18 anos

• Competidor mais velho: 73 anos

• Consumo médio de 6.000 calorias/dia.

A OUTRA METADE

Por Paulo Noto

Minha aventura pela Cape Epic terminou há algumas semanas e ainda sinto o gosto bom de ter conseguido terminar uma das mais longas provas de mountain bike do mundo.

Divago pelos lugares que passamos e pelas pessoas que conhecemos. É engraçado… quase nem lembro mais do sofrimento físico e psicológico. Hoje, contando a aventura para amigos, mais parece que o que fizemos foi um grande passeio de bike do qual só ficaram os bons momentos. Não falo dos oito furos de pneu num só dia, da quebra do eixo traseiro de minha roda, no meio do nada, das dores e do medo de não chegar ao fim.

O melhor de tudo agora é a sensação que fica de “missão cumprida”, registrada para nunca mais sair e para sempre me lembrar que, com determinação, garra e planejamento, somos capazes de tudo – até de coisas que nos parecem, num primeiro instante, impossíveis.

CAPE EPIC 2006

A Cape Epic 2006, marcada para começar no dia 22 de abril, terá a estréia da categoria speed ou bike de estrada, que fará um percurso mais longo (1200 km) em menor tempo (7 dias). A largada e a chegada serão nos mesmos locais deste ano, mas o percurso entre elas mudará a cada ano. A rota exata permanece em segredo até a largada da prova. A inscrição custa 1.400 euros por equipe (dois ciclistas) e inclui infraestrutura de alimentação e hospedagem durante toda a prova e serviços de mecânica de bike. Mais informações no site www.cape-epic.com.

* Mário Roma, 41 anos, mora no Brasil desde 1989, é casado com uma brasileira e tem duas filhas. Ele pedala desde 1989 e compete em mountain bike desde 2001.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2005)







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