Umas garrafas de vinho e eu

Por Bill Vaughn*
Fotos por Elizabeth Zeschin

Quando me convidaram para escrever matérias de turismo, me deram duas opções: poderia voar para a Coréia do Norte e tentar escapar dos funcionários do governo americano, dos quais eu estaria sob tutela, para achar recreações ao ar livre que poucos ocidentais já tiveram a chance de experimentar, ou eu poderia me juntar a um seleto grupo numa viagem de bicicleta para explorar os sentidos – principalmente o paladar – na região de Provence, no sudeste da França. Ah, pedalar pelos campos repletos de lavanda, oliveiras e vinhedos franceses, sob os cuidados da Butterfield & Robinson, agência canadense especializada em roteiros sofisticados de bicicleta e caminhada pelos melhores points do planeta… Não é difícil adivinhar qual dos dois eu escolhi.

Enquanto o trem bala seguia rumo ao sul a 290 km/h acompanhando o rio Rhône em direção a Avignon, fiquei pensando nos consagrados sabores dessa região francesa delimitada a leste pelos Alpes e pela Itália, a oeste pelo Rhône e ao sul pelo Mediterrâneo. Ali, é proibido entrar em um restaurante, comer e sair correndo. Apreciar o aroma e a arte dos saborosos pratos feitos delicadamente para servir aos mais finos e requintados paladares é quase obrigatório. Nosso roteiro levava em conta a beleza da paisagem – quase sempre por estradas secundárias, entre campos floridos e alamedas de árvores – e a facilidade de acesso com bicicleta a locais que valem a pena ser vistos.

Na manhã seguinte à chegada em Avignon, entrei num ônibus fretado para uma viagem de 25 quilômetros até a vila de Boulbon, onde nossas bicicletas nos esperavam. Senti imediatamente que nossos guias, Jean-Louis Doss e Libby Dalrymple, pacientes e amigáveis canadenses de 35 anos, seriam excelentes companhias. E o itinerário parecia um passeio ciclístico pelo céu: sete dias de petit déjeneur (café-da-manhã), almoço e jantar, intercalados por pedaladas de 30 a 60 quilômetros pelas inebriantes e ensolaradas paisagens do vale do Rhône, numa região conhecida como Côtes du Rhône Gardoise, com atrações como ruínas romanas, castelos medievais, vinícolas, lugarejos com vielas estreitas demais para a circulação de carros e restaurantes de alta gastronomia.

CICLOGLAMOUR

Eu divagava sobre a pequena fortuna de US$ 9.790 por casal que meus queridos amigos ciclistas-gourmets desembolsaram pela viagem – sem contar as passagens de avião, seguro e comprinhas num país com preços exorbitantes, onde um café expresso pode custar US$ 6 – e meu bobo e preconceituoso instinto me fez julgá-los como uns cinqüentões reacionários e chatos.

Quando Jean-Louis me apresentou à minha bicicleta, vi que levava o rótulo “Dálmata” impresso em seu quadro e um crachá com o meu nome. Olhando melhor, vi que todas as bikes tinham uma alcunha e a graça de seu proprietário. Eram magrelas para cross country superleves, manufaturadas especialmente para a B&R pela Rocky Mountain Bicycles. Afinei-a como um violino, ajustando banco, suspensão, guidão e até toquei a buzininha. Passeei por suas 27 marchas e desci quarteirão abaixo, à frente do grupo.

O glorioso “Dálmata” curtia o momento quando bateu no meio-fio e caiu. Olhou para cima e viu uma estonteante arquiteta loira da Califórnia, rotulada “Mundo Maravilhoso” e seu marido, “Dando duro”, um régio investidor do mercado imobiliário, olhando para ele. Verdade seja dita, o pobre “Dálmata” não pedalava há 15 anos. E esse casal tinha as pernas definidas de quem pedala forte todo o dia. “Mundo Maravilhoso” parecia me olhar como quem diz “Pare com as macaquices e nunca mais se distanciar do grupo dessa maneira”. Mas depois ela me ofereceu, sorrindo, um tubo de vaselina. Bikers veteranos lambuzam suas virilhas com a pasta melequenta para evitar assaduras indesejáveis.

Era demais para o pensamento pré-concebido do “Dálmata”. Ele examinou novamente o grupo, e viu que homens e mulheres adultos vestidos com bermudas de bike, camisetas apertadinhas de poliéster, luvas sem dedo e capacetes moldados como cabeças de insetos não podiam ser esnobes. Além disso, quando você está na estrada suando mais do que uma top model num rodízio, é impossível parecer altivo.

PARADA ESTRATÉGICA

No banheiro de um café, “Dálmata” lambuzou-se com a pomada de vaselina e, ao retornar, já se perdera do grupo. Sem problemas. Ele libertou sua bike do poste em que estava presa e seguiu as direções de um mapa impresso dado por Jean-Louis (ou J-Lo, como o grupo começou a chamá-lo, já que ele não fazia idéia de quem é a cantora americana Jennifer Lopez). A primeira pedalada atravessava florestas verdes, oliveiras e uma plantação de maçãs até o primeiro hotel, em St.-Rémy. Haveriam muitas paradas durante o trajeto, incluindo um almoço no Oustalet Maïanen, em Maillane, o qual, como a maioria dos locais onde nos fartaríamos durante toda a semana, é um dos restaurantes premiados da bíblia da cozinha francesa, o guia Michelin.

Enquanto o “Dálmata” passava por Boulbon, ele tentava calcular 200 metros, a distância até a primeira curva desenhada no mapa. Aparentemente seu odômetro estava desregulado, porque ele logo se viu pedalando no acostamento de uma via de tráfego pesado, que os guias tinham pedido para evitar. Nem deu tempo de fazer a volta e J-Lo e Libby apareceram em sua van branca da B&R para socorrê-lo. O “Dálmata” teve que esperar até o jantar de confraternização no fim da semana para entender o por quê deles estarem rindo.

Agora na rota certa, o “Dálmata” pegou o ritmo e um desvio para St-Michel-de-Frigolet, um mosteiro construído a mais de mil anos. Pelo resto do dia, ele foi mais esperto e não saiu de perto do “Furacão Toscano”, um ortodontista californiano e sua esposa educadora, “Relâmpago Inglês”, um casal que parecia entender de navegação.

Nosso hotel, um estabelecimento novo chamado Atelier de l’Image, era um lugar superlativo para matar o tempo até o jantar. “Dálmata” relaxou seus músculos moídos numa banheira de água quente com espuma branca e sais de flor de laranja, imaginando-se como um suculento prato principal marinado numa enorme porcelana para sopa. Embora ele achasse que seu treino para a viagem fosse suficiente – tênis, cavalgadas e uma hora de ergométrica por dia –, sua bunda dizia que ele devia ter levado a sério a sugestão do pessoal da B&R de pedalar 30 quilômetros duas vezes por semana durante dois meses.

BATERIAS RECARREGADAS

Na manhã seguinte, depois de presunto, omelete de queijo de cabra e croissants para começar o dia, encontramos todas as bikes alinhadas no jardim com um embrulho de alumínio nos bancos contendo nacos de chocolate. As caramanholas estavam cheias d’água com fatias de limão. Como seria comprovado mais tarde, o “Dálmata” precisaria de cada caloria do doce e de cada gota da bebida para enfrentar o passeio da tarde, que era curto, mas muito puxado.

Pedalamos três quilômetros ociosos até St.-Paul-de-Mausolée, um manicômio onde Van Gogh se internou em 1889, no ano mais produtivo de sua curta vida. Enquanto esperávamos na sombra pela guia Mathilde, que nos levaria num passeio pelo hospital, mostrando objetos ainda intactos pintados por Van Gogh, “Dálmata” pensava no almoço quando ouviu o som de uma banda de jazz que veio somente para entreter o grupo durante a refeição pós-visita impressionista farta de queijos, pães e salame, tudo regado ao vinho tinto Châteauneuf-du-Pape.

Mas chegou a hora de conquistar Les Baux, indiscutivelmente o ponto mais alto (no duplo sentido) de qualquer viagem a Provence. Começou com uma subida de seis quilômetros montanha acima até a vila, um aglomerado medieval de casas de pedras grudadas umas nas outras e ruínas do que um dia foi um castelo. O forte tornou-se um quartel-general dos lordes medievais que fizeram da vida na Provence o inferno. Após liderar um pequeno grupo de quatro ciclistas pelas principais vias de St.-Rémy, “Dálmata” parou para requisitar algumas informações. Nos deram a direção certa e o caminho mais curto. Porém, isso se revelou ser uma faca de dois gumes. Por ali ganharíamos tempo, mas perderíamos alguns dos mais belos cenários na viagem. Mas, como se o “Dálmata” estivesse usando uma coleira com rastreador, J-Lo surgiu com sua van, corrigindo o caminho.

FÉRIAS DE VERÃO

Um uniforme de dia, outro à noite, apelidos, descontração na piscina, brincadeiras em francês improvisado e um constante apetite, estimulado pela prática esportiva e pelo ar livre – o suficiente para convencer até o mais estóico dos puritanos a abraçar os prazeres da mesa. Subitamente, o “Dálmata” se lembrou porque tudo parecia tão familiar. Aquilo eram férias de verão num acampamento!

Esse estado de espírito tomou conta do “Dálmata” com o passar da semana. E, assim como o acampamento dos meninos terminava com uma entrega de prêmios, com o acampamento dos adultos não foi diferente. Antes do jantar final no Château de Masillan – um castelo do século 16 utilizado como santuário de caça pelo rei Henrique 2º –, “Mundo Maravilhoso” foi premiada com uma tanguinha branca por seu êxito nos 95 quilômetros de pedalada ao cume do Mont Ventoux. Por ter se perdido nos cinco minutos iniciais de pedalada e, com isso, ter quebrado o recorde da B&R, o feito de “Dálmata” foi louvado por todos com uma rodela de queijo camembert num colar, que ele pendurou em seu pescoço durante toda a última ceia, que teve de aspargos a um sensacional pedaço de cordeiro, depois morangos colhidos da horta do próprio hotel e marinados no azeite e vinhos das cidades de Gigondas e Rasteau, pelas quais passamos de bike.

Quando “Dálmata” acordou no dia seguinte entre seus lençóis com aroma de lavanda, sabia que o acampamento de férias havia acabado. Mas ele queria extrair a última gota dos sabores que a França podia lhe proporcionar. Tateando pelo quarto, lembrou de algumas histórias no jardim do castelo debaixo da luz da lua cheia e depois, foi até o minibar e pegou seu queijo.


*Bill Vaughn é autor de First, A Little Chee-Chee (Arrow Graphics), coletânea de ensaios bizarros como um jogo de golfe numa plantação de milho e uma sessão de windsurf numa ferrovia

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2005)







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