De olhos bem abertos

Por Tim Zimmermann*

JOE HARRIS SABIA que estava encrencado. Mesmo assim ele estava vencendo a Transat 2004, uma regata masoquista de 4.505 quilômetros em solitário de Plymouth, na Inglaterra, até Boston, nos Estados Unidos. Harris, um americano de 45 anos, fazia seu debute na elite das competições oceânicas e exultava por estar na liderança. Embaixo da adrenalina, ele estava exausto. Há quase 24 horas ele não saía do convés do Wells Fargo-American Pioneer, seu barco de 50 pés (15 metros), conduzindo-o por ventos impiedosos e ondas escarpadas – “no limite”, como ele se referiria mais tarde à situação.

Desde o começo da Transat, uma semana antes, Harris resistia bravamente com três a quatro horas diárias de sono, divididas em cochilos de 20 minutos. Mas quando viu que estava a apenas 160 quilômetros do então líder, a embarcação Artforms, e que aquela era sua chance de dar um sprint, seu instinto competitivo assumiu o controle e ele parou de dormir totalmente. Hora após hora Harris buscou os quilômetros que o separavam da primeira colocação e, quando a manhã chegou, ele estava à frente da regata. Agora ele teria que lidar com uma tênue liderança ao mesmo tempo em que seu corpo e cérebro imploravam por umas horas de sono.

Harris lutava para manter seu barco em movimento enquanto ventos leves sopravam naquele trecho do oceano, mas sua coordenação havia se deteriorado como se ele tivesse tomado cinco Martinis. Finalmente, depois que tropeços e trapalhadas começaram a se repetir, ele se rendeu e dormiu por duas horas e meia enquanto o Wells Fargo ficava à deriva. Quando acordou, o staff da regata deu por rádio a notícia cruel: Artforms estava de novo na liderança. “Sabia que tinha atirado no meu pé”, Harris disse. “Me forcei muito além do meu limite”.

CRONOBIOLOGIA

Manejar a escassez de sono nas regatas em solitário é um dom e Harris, que terminou em segundo depois de mais uma semana em condições estressantes, sabia que estava arriscando uma sobrecarga com sua busca alucinada pela liderança. Quatro meses antes da Transat, ele tinha visitado a clínica do Dr. Cláudio Stampi, 51, proprietário do Instituto de Pesquisas em Cronobiologia, fundada em 1997, e especializada na requintada arte de obter o máximo de desempenho com o mínimo de horas de sono. Stampi, a quem os navegadores se referem como Dr. Sono, é o guru a se procurar quando se quer velejar barcos de competição em solitário dormindo ridículas porções de tempo.

Dr. Cláudio interessou-se por cronobiologia – estudo dos ritmos biológicos – quando estudava na Universidade de Bolonha, na Itália, onde se graduou como médico em 1977, tirou um Ph.D em engenharia biomédica em 1983 e outra graduação, dessa vez em neurologia, no ano seguinte. Desde então ele ficou obcecado pela relação entre sono e desempenho. Publicou mais de cem pesquisas sobre o tema e, em 1992, um livro intitulado Why We Nap (Porque Cochilamos). Com o passar dos anos, Stampi atraiu uma clientela diversa, de astronautas da NASA a CEOs com jet-lag. Porém, sua especialidade é ajudar velejadores solitários privados de preciosas horas de sono. “Se eles dormirem muito, não ganham”, fala ele. “Se não dormirem, quebram”.

Stampi freqüenta docas há 20 anos e já colocou monitores de pulso em mais de 100 velejadores para “rastreá-los” enquanto dormem. Sua pesquisa, nada tradicional, foi contestada por alguns cientistas acadêmicos, mas, de acordo com James Maas, professor de psicologia da Universidade Cornell e especialista em privação do sono e desempenho, o trabalho de campo de Stampi tem se mostrado muito útil. “As pessoas sempre se perguntam como caras como Charles Lindbergh (piloto americano que fez o primeiro vôo solo sobre o oceano Atlântico) conseguem fazer o que fazem”, diz ele. “Cada prova que tivermos sobre como as pessoas reagem a condições extremas com o mínimo de horas dormidas, acrescenta muito à nossa compreensão sobre o assunto”.

“Para aqueles que velejam a sério, Stampi é uma necessidade”, afirma Brad Van Liew, um californiano de 37 anos que começou a trabalhar com o especialista em 1998 e tornou-se o velejador solo mais completo dos Estados Unidos, ganhador da regata Around Alone em 2002-2003 – a mais longa corrida da Terra para um só indivíduo, com apenas quatro paradas em terra firme, em 46.266 quilômetros de circunavegação pelos mais remotos e revoltos mares do mundo. “Você tem que dormir eficientemente ou é como ter um jogo de velas ruins ou um casco impróprio para a embarcação”.

Stampi também ajudou a inglesa Ellen MacArthur, 28, a tornar-se a primeira mulher a vencer a Transat em 2000 e, este ano, ela circunavegou o planeta de uma só vez em 71 dias e 14 horas, esmagando o recorde oficial em 32 horas. “Quanto mais tempo você ficar acordado e alerta, mais rápido seu barco vai navegar”, conta o velejador britânico Mike Golding, um dos melhores solistas do mundo e ganhador da Transat 2004 na classe monocasco de 60 pés (18 metros). “Cláudio fez com que minha quantia média de sono caísse de 5,5 horas para 4,5 por dia”.

Então, quando Joe Harris decidiu juntar-se à fraternidade sonambulística das regatas solo, ele fez questão de mergulhar nos ensinamentos do Dr. Sono, que o ajudaram a aprender a cochilar de acordo com as necessidades do seu corpo. E eu decidi fazer o mesmo, embora por outras razões. Sou um velejador amador e pai de primeira viagem lutando contra os terríveis poderes do sono maluco de um bebê. Visitei Dr. Stampi esperando receber o código de como ter uma melhor performance com poucas horas disponíveis na “conta”.

POLIFÁSICOS

Cláudio Stampi é um cara esguio, com um charme de diplomata internacional. Filho de italianos, ele nasceu em São Paulo onde, aos três anos, começou a velejar na represa de Guarapiranga. Fotos impressionantes de suas muitas aventuras no mar, que incluem duas voltas ao mundo, estão por todo o lugar na sua casa, assim como vestígios de barcos que amou – incluindo partes de um mastro e uma cabine que ele usa como mesa de trabalho. Depois de passar a infância mexendo em barcos, ele se mudou para a Itália quando era adolescente. “Tive desejos conflitantes na vida”, conta Stampi. “Mas assim que encontrei a cronobiologia, soube que poderia achar um jeito de unir o sagrado – a medicina – com o profano, a vela”.

Os dados obtidos dos monitores por Stampi levaram-no à uma interessante conclusão: humanos insones funcionam melhor com cochilos – mais precisamente sonecas cronometradas –, como a maioria dos animais. Os benefícios de cochilos freqüentes fizeram sentido para Stampi, que entende das exigências de uma embarcação. Mas ele não tinha uma prova científica de que em situações de privação de sono, o sono polifásico – termo usado para sonecas – era mais eficiente que o monofásico, quando se dorme tudo de uma vez. Então, em 1990, ele levou sua pesquisa para o laboratório do Instituto de Fisiologia Circadiana, em Cambridge, onde dividiu voluntários em três grupos que dormiriam somente três horas por dia. Um grupo dormiria o período de uma só vez. Outro dormiria uma hora e meia à noite e tiraria três sonecas durante o dia. O terceiro grupo, os verdadeiros polifásicos, acumulariam todo o sono em cochilos de meia hora a cada quatro horas.

Depois de um mês, o grupo monofásico apresentou uma perda de 30% no desempenho cognitivo. Os que dormiam à noite e tiravam sonecas de dia tiveram 25% de perda. Já o grupo polifásico só teve uma queda de 12%. Stampi não se mostrou surpreso com o resultado. Como ele me explicou, há dois tipos de sono: o REM (rapid eye moviment ou movimento rápido dos olhos), importante para a memória e aprendizado, e o não-REM, que restaura a energia e libera hormônios do crescimento e desenvolvimento.

Um adulto normal jovem entra no sono pelos quatro estágios não-REM. Os estágios 1 e 2 são breves fases de trasnição entre estar acordado e dormindo. O primeiro dura cerca de 5 minutos e o segundo de 10 a 20 minutos. Já os estágios 3 e 4 podem durar entre 20 e 40 min no primeiro ciclo de sono e são considerados o verdadeiro sono fisiológico. O primeiro período REM realiza-se de 70 a 90 minutos após o início do sono e tem normalmente breve duração (5 a 15 min.). “A bateria é mais recarregada no começo do ciclo do sono que no fim. Então, se você tira mais sonecas, recarrega com mais eficácia, porque toma a primeira carga com mais freqüência.”

SIESTA

A pesquisa também comprovou que as siestas são altamente revigorantes, já que englobam os estágios 3 e 4 do sono não-REM, que são os mais importante para recuperar o corpo. Para Stampi parece óbvio que velejadores insones deveriam tentar dormir durante esse estágio. A chave para cochilar com eficiência, diz ele, é saber manejar as etapas de sonolência e vigilância, para não desperdiçar tempo tentando dormir. “Meu trabalho é achar ferramentas que levem ao sono e o tempo exato que cada pessoa deve dormir por etapa de soneca”.

Todo o monitoramento feito por Stampi durante anos sustentou a lenda de que há dois tipos de pessoas: as que acordam com as galinhas (matutinas) e as que acordam com as corujas (vespertinas). A distinção é importante para todos que querem se adaptar à privação de sono. Quem costuma acordar cedo, Stampi descobriu, é bom em tirar sonecas curtas, mas não é eficiente em trabalhos de madrugada e prefere uma rotina mais regular. Por outro lado, quem é “da noite”, mostra uma excelente habilidade em lidar com horários irregulares, mas prefere sonecas mais longas. Mike Golding é um exemplo de “vespertino”. Durante a Around Alone de 1998, só 23% do seu tempo de sono foi gasto com sonecas de menos de uma hora. Na contramão, a velejadora Ellen MacArthur gasta 60% de seu tempo de sono em sonecas curtas. Apesar dos estilos diferentes, ambos dormem a mesma quantidade de tempo durante uma regata – uma média entre 4,5 e 5,5 horas a cada 24 horas, quantia mínima que o ser humano agüenta, acredita Stampi.

E quanto ao resto de nós, comuns cidadãos? As pesquisas concordam que não existe melhor estratégia para ser um ser humano bem descansado e eficiente do que dormir de oito a dez horas por noite. Mas e o Dr. Sono, quantas horas ele dorme? “Capoto por seis horas à noite e tiro um cochilo de 15 minutos à tarde. É o suficiente para nunca me sentir cansado”, afirma ele. Ganhar corridas ou mesmo poucas horas extras por dia em troca de um pouco menos de tempo com os olhos fechados não é um mau negócio. O Dr. Sono tem uma pechincha para um mundo cansado. Mas não o chamem depois do almoço, porque ele vai estar dormindo.

TIM ZIMMERMANN é editor de aventura do site The Wetass Chronicles (www.wetasschronicles.com).


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2005)







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