Fruta superpoderosa


BENDITO FRUTO: Proteína, ferro, fibras e muitos antioxidantes fazem do açaí a fruta mais nutritiva do Brasil

Por Renata Leão
Fotos por Araquém Alcântara

“EU AMO AÇAÍ. É UMA DAS COISAS QUE MAIS GOSTO DE COMER NO MUNDO”. A frase é do maior astro do surf contemporâneo, o americano Kelly Slater. Assim como ele, o colega de ondas Rob Machado e o skatista brazuca Bob Burnquist, que mora há mais de 15 anos fora do Brasil, experimentaram o açaí. Mas foi só há quatro anos, quando o exótico creme cor-de-uva chegou à Califórnia, que os atletas se viciaram no sabor da fruta agridoce. Não só incorporaram o hábito de tomar a mistura no dia-a-dia, como ajudaram a espalhar a mania pelas quebradas do estado mais animado e esportivo dos Estados Unidos. Hoje, é normal ver garotas saradas tomando açaí nas praias de San Diego, naturebas e iogues de São Francisco pra lá e pra cá com tigelas de açaí nas mãos, ou estudantes de Berkeley se lambuzando com o creme.

Em Sidney, na Austrália, e em Oakland, na Nova Zelândia, mais de cem cafés, restaurantes e casas atraem o povo do surf com cartazes coloridos – e até estereotipados – com ilustrações de índias boazudas e fotos da frutinha brasileira acompanhados de dizeres como: “Acai juice, the brazilian energy” (“Suco de açaí, a energia brasileira”) e “the original brazilian power juice” (O original suco energético brasileiro”). Na Espanha, chamarizes como “Conozca la fruta más de moda en Brasil” atraem curiosos aos cafés e restaurantes que incorporaram o açaí na tigela ao cardápio, principalmente em Madri e em Barcelona. Até em Israel, no Japão e nos Emirados Árabes tem gente vendendo – e tomando – açaí na tigela. Assim como em Luxemburgo, na Holanda, na Bélgica e na Suécia.

A GmbH, empresa alemã fundada em 2002 com o slogan de oferecer um “produto 100% natural, que une prazer, saúde e qualidade de vida”, comercializa, por meio de um representante brasileiro, polpa de açaí congelado em mais de 10 países Europeus. A neozelandesa Nufruits espalha a mania do açaí nas praias da Nova Zelândia, Austrália e também em lugares como Porto Rico, Cingapura, Canadá e Japão. Compram o extrato de açaí compensado e congelado de cooperativas de comunidades ribeirinhas do norte do Brasil, vestem embalagens que gringo adora ver, e levam a mania brasileira para os quatro cantos do mundo.

Mas foi a americana Sambazon – primeira empresa a exportar o produto legalmente e a registrar o açaí no FDA (Food and Drug Administration, que controla o comércio de alimentos e remédios nos Estados Unidos) – quem fez a fruta virar febre entre os atletas cinco estrelas da Califórnia. Tudo graças à política ecologicamente correta que adotaram, à empatia que conquistaram no meio do surf e do skate, e aos negócios bem-sucedidos que têm feito no Brasil. A Sambazon compra açaí de quatro cooperativas paraenses localizadas no baixo Tocantins, numa área de 27 mil hectares. Nesse espaço, que abrange quatro municípios, trabalham 1.540 famílias e cerca de 15 mil pessoas vivem do extrato do açaí. Mais legal que esses números, porém, é o contexto que os envolve: a Sambazon faz questão que toda produção se encaixe num padrão que abrange certificado de origem e conservação do solo, biodiversidade e comércio justo. Ou seja, nada de agrotóxicos, nada de monocultura e nada de exploração de mão-de-obra.


LINHA DE PRODUÇÃO: O açaí é carregado até as canoas

SEU RAIMUNDO, RIBEIRINHO PARAENSE DE 75 ANOS, nunca foi nem quer ir aos Estados Unidos. Mesmo Belém, capital de seu estado, ele só conheceu outro dia, quando ficou doente e precisou fazer exames na cidade. Desde que se conhece por caboclo, ganha a vida vendendo – e comendo – açaí. Assim como a maioria dos nativos do norte Brasileiro, seu Raimundo sempre se alimentou do vinho extraído do açaí. A ele, mistura farinha de mandioca, açúcar, e manda ver no café-da-manhã, no almoço e no jantar. Às vezes transforma o líquido em tempero de peixe ou de arroz. O açaí com a textura de sorvete que virou febre em São Paulo e no Rio há 15 anos, ele só foi conhecer há três anos, quando começou a vender sua colheita de açaí para três surfistas americanos, os donos da Sambazon.

Antes, seu Raimundo dependia de atravessadores que toda semana passavam em sua casa, no baixo Tocantins, distante meio-dia de barco da capital paraense, para buscar sua produção e vender em Belém. Eles pagavam um preço baixo por ela e tinham o controle do mercado local há gerações. “Um dia três surfistas me fizeram uma proposta estranha: comprariam toda minha safra por 25% a mais que o preço do mercado”, conta. “Em troca, me pediram que transformasse um pedaço das minhas terras em reserva ecológica”.

Assim, seu Raimundo manteria a tal da biodiversidade da floresta, tão prezada por Ryan Black, Jeremy Black e Ed Nichols, os tais surfistas americanos. Eles, que conheceram o açaí em Fernando de Noronha numa viagem de fim-de-ano e se encantaram com a coisa, proporcionaram uma boa mudança no estilo de vida de várias famílias ribeirinhas como a de seu Raimundo. “Como suas vendas se tornaram mais lucrativas, essas pessoas passaram a preservar seu habitat em vez de abandoná-lo em busca de trabalho em cidades próximas como Belém”, conta Travis Baumgardner, surfista americano de 30 anos que se juntou aos outros três e hoje representa a Sambazon no Brasil.

Travis, diferentemente dos outros três sócios, não é californiano. Nasceu e cresceu no Texas e, antes de conhecer o Brasil, achava que por aqui se falava espanhol e que a capital podia ser Buenos Aires. Foi em 1994, depois de se mudar para Santa Bárbara, na Califórnia, para fazer faculdade de Ciências Políticas, que ele começou a ver o mundo um pouco adiante das fronteiras americanas. Em 1996, viajou para Recife num carnaval e aí aconteceu o que acontece com oito em dez gringos que vêm foliar no Brasil: se apaixonou por uma brasileira. Decidiu morar com ela no Rio de Janeiro e transferiu a faculdade para a PUC.

Foi em uma casa de sucos nos arredores da faculdade que ele provou o açaí pela primeira vez. “Me deu um arrepio, uma coisa louca. O que era aquilo? Um milk-shake, uma vitamina, um sorvete?”, lembra Travis. “Aquela fruta acabou virando meu prato predileto no Rio de Janeiro”. Sempre atrasado, o surfista chegava na aula todos os dias com um copo de suco na mão. Um dos professores usou isso como gancho e resolveu dar uma palestra sobre açaí. Explicou que o fruto vinha das regiões alagadas da Amazônia, que era fonte de sustento de centenas de famílias ribeirinhas, que suas árvores se espalham para o Maranhão e até para as Guianas e para a Venezuela, e que ali é consumido com farinha de mandioca e açúcar. O americano, que não sabia que rumo ia dar à vida, achou aquilo tudo interessantíssimo. “Me deu um estalo. Todos os amigos que vinham me visitar ficavam maravilhados com o açaí. Além disso, os Estados Unidos é o maior consumidor de produtos naturais no mundo”, lembra. “Achei que pudesse dar jogo levar o açaí na tigela pra lá”.


DO PÉ: A fruta é retirada diretamente do pé para o seu consumo

UM DIA TRAVIS FOI AO SUPERMERCADO, comprou diversas barras de açaí congelado, embalou em isopores e levou para a casa da família no Texas. Convenceu a mãe e um amigo a investir na idéia e foi em frente. Voltou ao Brasil, foi conhecer a produção no Pará, fez um mapa das cooperativas, registrou o produto no FDA e chegou a exportar um pouco. Depois de um ano e meio, desistiu. Além de não ter experiência alguma com cadeia alimentícia, Travis precisaria investir pesado em embalagem e comercialização e não tinha capital. Isso foi em 1999, mesmo ano em que os três surfistas californianos conheceram o açaí em Fernando de Noronha.

De volta aos Estados Unidos decididos a investir na idéia, os três amigos acharam a história e os números de Travis na Internet. Entraram em contato com ele e ficaram sócios.

“Eles precisavam de uma base e, como eu já tinha mapeado tudo e sabia quais cooperativas tinham capacidade de exportar, fechamos uma parceria”, conta o texano, que passou a representar a Sambazon – abreviatura de “Saving and Managing the Brazilian Amazon”, no Brasil.

Enquanto Travis ralava aqui, Ryan, Jeremy e Ed ralavam lá. Os californianos, que cresceram com os campeões e ídolos mundiais Kelly Slater e Rob Machado, foram fazendo um trabalho de formiguinha. Davam o açaí na tigela para os amigos experimentarem. Se gostassem, pediam que divulgassem usando camisetas da Sambazon, colando adesivos no carro, dizendo que aquela era a melhor larica do mundo. Enquanto Travis organizava as cooperativas, os certificados e a produção sustentável por aqui, os outros três distribuíam a pasta do açaí em bares e em academias do sul da Califórnia. Rapidamente, o sorvete cremoso do Pará começou a superar a venda de shakes protéicos e a fazer o maior sucesso. Até uma tenda em Sundance, o mais importante festival de cinema independente do mundo, eles montaram em 1999. “Além de os meninos serem superbem relacionados com o público jovem da Califórnia, contou o fato de o açaí ser muito saboroso e de os americanos valorizarem o fato de ser um produto orgânico, certificado, que vem da Amazônia”, explica Travis.

O skatista Bob Burnquist, que tem uma horta orgânica em sua casa e é conhecido por defender uma alimentação saudável, também é amigo de Ryan, Jeremy e Ed. Ele aderiu rapidinho ao açaí da Sambazon. “O açaí dos meninos é extremamente saudável e saboroso. É mais concentrado, feito com um xarope de guaraná orgânico, sem açúcar refinado”, conta ele, que passou a divulgar o produto brasileiro em campeonatos de skate. “Há uma tendência forte em ‘esverdear’ esses campeonatos, substituindo a junkie food por alimentos mais saudáveis como o açaí”.

De maio de 2000 – quando começaram a vender o açaí Sambazon nos Estados Unidos – ao fim daquele mesmo ano, os quatro garotos venderam US$ 134 mil. De lá pra cá, triplicaram as vendas. Hoje, têm uma demanda muito maior do que a capacidade industrial do Pará, onde trabalham com quatro cooperativas. Por isso, nesse mês, eles inauguram em Santana, no Amapá, uma fábrica própria. O açaí é exportado em barras congeladas para São Clemente, na Califórnia, e industrializado (misturado ao xarope de guaraná) e embalado lá mesmo, onde trabalham 25 pessoas. No escritório do Rio de Janeiro, além de Travis, trabalham sete pessoas. E a fábrica no Amapá vai empregar 100 funcionários. “A safra do açaí vai de agosto a dezembro.

Na entressafra, os produtores precisam de alternativas. Por isso estamos procurando outras empresas que queiram trabalhar com cacau e cupuaçu, por exemplo. Essas cooperativas com as quais trabalhamos têm plena condição de produzir isso”, explica Travis. Ele, que mora no Rio de Janeiro, pratica ioga todos os dias e surfa sempre que dá, acredita que a Sambazon é o reflexo de toda uma geração que, espalhada pelos quatro cantos do mundo, pensa – e age – de maneira mais saudável e consciente. “O mercado mundial de alimentos naturais e ecologicamente corretos movimenta US$ 26,5 bilhões de dólares por ano. Esse dinheiro está sendo gasto em saúde, meio-ambiente e responsabilidade social. Tem coisa melhor que comprar algo sabendo que é orgânico, renovável e fruto de um comércio justo e responsável”?


EM CANOAS: O açaí é levado de canoas para a fábrica, onde é moído e congelado


O ARROZ-COM-FEIJÃO QUE VIROU MOCOTÓ

Há 15 anos, ninguém em São Paulo e no Rio de Janeiro conhecia o açaí. No máximo, a pessoa já tinha ouvido falar e sabia que era uma fruta típica da Amazônia, originária do Pará e 100% brasileira. Base da alimentação de milhares de caboclos do norte do Brasil, o extrato do açaí, conhecido entre os locais por vinho, é degustado por eles desde sempre com farinha de mandioca e arroz. Até hoje, muitos caboclos não sabem que o açaí pode ser tomado assim, parecendo o sorvete que virou lugar-comum no sudeste brasileiro.

Quem lançou essa moda, diz a lenda mais contada e cotada pelos comerciantes de açaí paulistanos e cariocas, foram os paraenses Hélio Gracie, patriarca da família Gracie, e Carlos Gracie, seu irmão, o criador da famosa dieta Gracie, difundida e praticada por lutadores de jiu-jitsu de todo o planeta. Eles, que se mudaram de Belém para o Rio de Janeiro em 1925, trouxeram consigo o açaí, fundamental para sua dieta. Como o fruto oxida muito rápido, 24 horas depois de colhido, teve de ser congelado, o que alterou muito o sabor do caldo. Por causa dessa mudança de gosto, os irmãos fizeram vários experimentos até chegar na mistura do xarope de guaraná. Assim, a mania foi se alastrando entre os lutadores de jiu-jitsu, chegou ao povo do surf, e veio para São Paulo pelas mãos de Wagner Mota, lutador de jiu-jitsu e fundador do Poderoso Açaí, o primeiro point de venda de açaí na cidade.

Nota da Redação: A reportagem da Go Oustside ouviu diversos comerciantes de açaí e essa é a versão mais contada entre eles. Mas há controvérsias porque, claro, cada um quer vender seu peixe.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de novembro de 2005)







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