Mulher bala

Por Piti Vieira
Fotos por Sean Leary

ERA A QUARTA VEZ QUE ELA SE POSTAVA ALI, NO PARQUE NACIONAL DE YOSEMITE, na Califórnia, aos pés de um dos monolíticos de granito mais conhecidos do mundo por sua verticalidade e extensão. Olhando para o alto, Roberta Nunes, 33 anos, só pensava no quanto tinha se preparado para enfrentar aquela parede de pedra de mil metros, tida pelos escaladores do mundo inteiro como o maior playground do esporte. “O El Captain é como se fosse uma universidade de escalada”, conta ela. “É difícil, tem riscos, mas por não ser tão selvagem como a Patagônia, dá para aperfeiçoar mais a técnica. Além disso, existe o contato com pessoas do mundo todo, muitas de nível bem elevado, que estão ali para treinar”.

Só que a paranaense não foi aos Estados Unidos apenas para apurar suas técnicas de ascensão e ganhar mais experiência. Roberta buscava um desafio: escalar o El Captain por uma de suas vias, a Lurking Fear, de 900 metros de extensão e grau VI (que necessita de três a seis dias para ser completada) em menos de 24 horas, feito realizado somente pelas americanas até então. Esse tipo de escalada surgiu no próprio Yosemite, 10 anos atrás, e foi batizado de speed climbing. Por tentar reduzir ao máximo o tempo que os escaladores ficam na pedra, requer muito preparo físico, técnico e psicológico devido a sua dificuldade. “Os caras treinam muito para ficar superfortes e aplicam uma estratégia perfeita que vai da roupa (dry fit e goretex) até a comida”.


EL CAPITAN: As vias do monólito, com a Lurking Fear em destaque

SOBE!

Eram 4h30 do dia 29 de setembro de 2005 quando Roberta parou aos pés do El Captain para fazer uma retrospectiva de sua saga até ali. Nove dias antes, ela e seu companheiro de cordada, o americano Sean Leary, 30, tinham feito sua primeira tentativa na Lurking Fear, mas foram expulsos por uma tempestade cabulosa que bateu de frente contra a rocha onde eles estavam, obrigando-os a rapelar 600 metros à noite. Encharcados e com muito frio, os dois chegaram ao solo quebrados, depois de um tenso momento de perigo. “Não fico preocupada em morrer. O medo aparece nessas horas, mas fico tão segura e concentrada que acabo administrando de uma maneira mais rápida o temor”.


PAREDÃO: El Capitan

Na segunda tentativa, o dia estava sem vento e com pouco calor, perfeito para escalar — antes do ataque, a dupla acompanhou bem as informações meteorológicas. Roberta foi a primeira a agarrar a pedra, levando no bolso do anorak [corta vento impermeável] cinco barrinhas energéticas (um concentrado de fibras, carboidratos e proteína), um camelpack com dois litros de água, uma lanterna de cabeça e mais ou menos 5 quilos de equipamento. Enquanto subia, ela ficava pensando somente na perfeição do próximo movimento. “Parecia um transe. Estava cansada, mas não tinha dor, parecia que meu corpo estava ligado no automático”, lembra. Setenta metros atrás — o tamanho das duas cordas que eles levaram — vinha Sean, “jumariando” (subindo com um equipamento que permite ascender pela corda) e limpando a parede das peças de segurança que quem vai à frente deixa.

Roberta começou no esporte há 10 anos e desde 1998 passa seis meses do ano fora do Brasil, dependurada em alguma rocha. No restante do tempo, ela monta base em seu ginásio de escalada em Curitiba de onde sai somente para… escalar, é claro. “A escalada mudou meus valores de vida, além de me modificar fisicamente. Deixei de lado valores materiais como um curso na faculdade para continuar viajando pelo mundo”, admite, sem arrependimento algum. “A sensação que o speed climbing passa é um romper com os limites do corpo. Mas mesmo na correria, dá pra apreciar a vista”.

Quinze horas depois, às 19h30, já no topo da maior pedra de granito do mundo, Roberta Nunes comemorava um de seus maiores feitos — o de ser a única não americana a escalar a Lurking Fear em tão pouco tempo — admirando o magnífico pôr do sol e tomando o último gole de água de seu camelpack. “A sensação era de ter quebrado um mito”, lembra ela, ainda adrenada e quatro quilos mais magra. “Essa história de escalar rápido traz uma sensação de viver muitos anos em poucas horas”.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2005)







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