Trançando as pernas

Por Endrigo Chiri Braz
Fotos por Alexandre Cappi

— Tarrrrde colega! Como é que vai? Rodando bem?”

— “Visse, tô cansada que só a porra.”

— “Mas que diacho está acontecendo na minha cidade?”, pergunta a roda dianteira da Barra-Forte do Seu Anísio, dono do mercadinho local, que passa a tarde mexendo no dinheiro e fatiando carne.

— “Ôchi, é uma corrida de bicicleta e eu me meti nessa roubada aí. São 350 quilômetros de muita terra, pedra e ladeira, precisa de ver! E minha dona só judia de mim”, responde a roda traseira da Scott da ciclista piauense Alziane Diógenes, bicampeã do MTB 12 horas.

Este estranho encontro aconteceu na sob a cruz da igreja matriz do município de Campos Novos de Cunha, a pouco mais de quatro quilômetros da divisa com o estado do Rio de Janeiro. Os 350 quilômetros a serem vencidos em três dias de prova consistiam num emaranhado de trilhas cascudas nas serras da Mantiqueira e da Bocaina, num vai-e-vem pelos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Os 308 ciclistas, divididos em quartetos e duplas (mistos e masculinos), revezaram-se em 13 etapas que variavam entre 10 e 51,8 quilômetros. Pirambeira e downhill pra todo mundo.


TAPETE DE ALGODÃO: Visual pela manhã na serra Cunha-Parati

Claro que o médico e anjo-da-guarda coletivo, Dr. Clemar Corrêa, teve trabalho. Próximo ao primeiro PC, na cidade de Wenceslau Braz (SP), o competidor Alberto Abreu Machado caiu ao chocar-se com um ciclista que não participava da prova e bateu forte a cabeça, rachando seu capacete. “Ele está apresentando amnésia e vai para São Paulo fazer uma tomografia. Existem dois tipos de amnésia. Na retrógrada o paciente não lembra o que aconteceu minutos antes ao acidente, o que é normal. Na ante-retrógrada ele não lembra das coisas que aconteceram a poucos minutos, repete as perguntas. Essa é problema. O Beto está com as duas”, explicou Clemar, que distribuiu pontos a rodo, ardeu muitos ralados e despachou mais dois para a tomografia durante a prova.

A inovação na 2a edição da competição ficou por conta do acampamento-base, armado em Campos Novos e preenchido com 250 barracas, oficina mecânica e stands dos patrocinadores, onde os competidores e apoios passaram o dia de sábado. Muito descanso, confraternização, troca de histórias e também pedal, já que à tarde rolou uma prova especial de 25 quilômetros, com peso 1 na pontuação (as etapas de sexta-feira tiveram peso 3 e as de domingo, peso 2). Também por essa pausa, o MTB Trip Trail atraiu todos os tipos de competidores: a elite do mountain bike nacional, corredores de aventura, ciclistas amadores, veteranos, escaladores, triatletas e por aí vai. E a troca de experiências e estratégias acabou sendo o grande lance da prova.


SE JOGA: Albert Morgan Jr. despenca no downhill final

ERA NO PC 1 QUE ADILSON CABRAL DE MELO SE DIVERTIA SOZINHO. Seu companheiro de equipe saiu para pedalar o primeiro trecho achando que seria de 14 quilômetros, só que na verdade eram 45 quilômetros. “O Marcelo comprou a bike faz uma semana. Nunca pedalou nem 20 quilômetros. E o pior é que ele vai descobrir isso enquanto pedala e não chega nunca”, ria Adilson. Mas os problemas da equipe estavam longe de começar. A caminho do PC 4, o apoio se perdeu nas sinuosidades da Serra da Mantiqueira e atrasou-se. O ciclista chegou, não encontrou ninguém e optou por continuar o próximo trecho. Pra completar, no trecho 6 Adilson caiu e deslocou o ombro. Fim de prova pra eles. E, antes que eu me esqueça, o nome da equipe era Insanos. Infelizmente, fez sentido.

O comentário geral, independente do histórico esportivo, era um só: a prova estava duríssima. Um dos trechos mais casca, sem dúvida, foi o percurso 9, que largava da cidade de Bom Jesus, sub-distrito de Silveiras (SP). Eram 51 quilômetros de serra fechada, na escuridão plena e com três gélidos rios para atravessar. E foi no PC de largada deste trecho, por volta da meia-noite de sexta-feira, que encontramos com José Dias Neto, 57 anos, da equipe Martini Team. Seu Zé, um jardineiro de Itu (SP) que pedala desde moleque, mas compete há apenas cinco anos, estava devidamente equipado, ansioso e angustiado, traçando um prato de macarrão, frango e salada enquanto esperava sua dupla chegar. Às 10 horas da manhã seguinte, já no acampamento-base, seu Zé estava abatido. Havia acabado de chegar da trilha depois de esperar por seu companheiro até as 5 da madruga e pedalar sob muito frio e neblina. “Foi o pedal mais difícil que fiz nessa vida”, contou ele, com um sorriso de quem sequer cogita em desistir. Sorrido e feito.

Prova de que Seu Zé não estava de frescura é o depoimento de Mário Roma, português radicado no Brasil, que é um dos grandes nomes das provas longas de mountain bike. “Toda a prova se passa num terreno muito pesado. A etapa de 51 quilômetros é a mais dura que já fiz no Brasil”, diz ele, que terminou em segundo na dupla mista, ao lado da Alziane, dona da roda reclamona. Roma gostou da mistura entre o povo da corrida de aventura e o do MTB. “Dá um ar de ecletismo pra prova”.


BASE: Visual do acampamento em Campos Novos de Cunha

Como a maioria das provas de moutain bike tem circuito demarcado, os bikers sofreram com a navegação por planilhas, especialmente à noite, período em que não estão acostumados a pedalar. Essas foram as duas maiores vantagens dos corredores de aventura: a navegação e o breu. “Uma hora me perdi e tive que empurrar a bike no meio do mato, morro acima. Estava com dois bikers e percebi que eles estavam bem tensos com a situação, que para mim era natural”, conta Marina Verdini, da equipe de corrida de aventura Mitsubishi Francis-Hydrata, segundo lugar no quarteto misto.

Em contrapartida, além da dificuldade técnica dos percursos, pela primeira vez os corredores de aventura foram obrigados a parar no meio da prova para descansar. “Pra gente, que é competitivo, o descanso obrigatório é ruim porque com ele perdemos nossa estratégia de dosagem de sono”, palpita Marina.


FOCO: Seu Zé Dias concentrado para mais um trecho

O Trip Trail serviu também para os aventureiros perceberem que têm muito a evoluir na bike. Muitos ficaram chocados com o desempenho dos carinhosamente chamados “canelas-finas” do MTB. É como disse Silvia Guimarães, a Shubi, da equipe de aventura Atenah, grande representante da força feminina que terminou em terceiro no quarteto misto: “Os caras passam com uma facilidade incrível na subida. Parece que estão de moto”. Nos quartetos mistos, os corredores de aventura dominaram, sendo que a equipe campeã, a Timberland Kailash Trópicos, era formada por dois bikers de ponta e dois aventureiros, o que talvez seja a escalação perfeita para esse tipo de prova.

JÁ NA CATEGORIA MASCULINA, O PEDAL PELA LIDERANÇA PEGOU FOGO ENTRE OS PROFISSIONAIS. A equipe Amazonas, campeã do ano passado na categoria dupla masculina, este ano inscreveu uma dupla e um quarteto, que desde o início assumiram a liderança e impuseram um ritmo alucinante. Amarildo Ferreira, integrante do quarteto, durante a fila para o jantar no acampamento, entrega: “A gente abre a diferença na subida. Na descida e no plano, andamos no mesmo ritmo de todo o mundo”. Mais novos e magros, e acostumados a pedalar o dia inteiro, não lhes falta fôlego. Tanto que uma das estratégias da equipe era despachar três bikers em vez de um para fazer os trechos noturnos – um navegava, outro iluminava e um terceiro competia. Inclusive se deram ao luxo de fazer brincadeira durante a especial do sábado: apostaram 20 reais cada para ver quem dos seis ganhava. Quem faturou a bolada, como previsto, foi Albert Morgan Jr., 25 anos, grande nome da elite do MTB nacional, que infelizmente está deixando de se dedicar exclusivamente ao ciclismo. “Os patrocinadores não dão valor aos atletas, então abandonei a carreira profissional. Estou correndo só porque gosto mesmo”, alfineta Albert, que está trabalhando com terra-planagem em Petrópolis (RJ), onde vive. “É uma pena. Se investissem nesses meninos, eles teriam nível de Olimpíada, como aconteceu com a Jaqueline Mourão”, lamenta Marina.

O intercâmbio foi tão proveitoso que os Amazonas prometeram meter o bedelho nas corridas de aventura. Depois de assistirem ao filme do Ecomotion Pro 2005 no stand da Go Outside, Amarildo, Albert e seus comparsas garantiram que vão montar uma equipe para participar de uma corrida de aventura em 2006. “Mas tem que ser prova curta, de no máximo dois dias”, diz Albert, pensando nas horas de sono que irá perder. Preparo físico não falta, mas, e a navegação, o trekking, o remo e o rapel? “A gente faz um cursinho rápido e tá tranqüilo. Vamos abrir oito horas de vantagem na bike e o resto fazemos passeando”, brinca, falando sério, o ciclista mais rápido de todo o Trip Trail 2006.


MORRO ACIMA: Integrante da equipe Las Pé de Vento venceu mais uma das pirambas

No domingo, a prova foi dividida em três etapas: duas de subida e, pra finalizar, 16 quilômetros de downhill insano pela Trilha do Ouro, saindo da cidade de Cunha (SP) até a Igreja da Penha, em Parati (RJ). Com velocidade máxima de 78 km/h no marcador de Albert, que fez as três etapas por curtição, os seis Amazonas cruzaram a linha de chegada às 8h03 do domingo, com sorriso de orelha a orelha de satisfação, olhos estalados pela adrenalina e lacrimejantes pela velocidade. Seu Zé também não fez feio. Sob o lema “solta a bagaça e deixa o bicho descer que lá embaixo Deus segura”, ele atingiu 73 km/h de velocidade. Cinco minutos depois dos campeões, a equipe Lar Pé de Vento cruzou a linha de chegada. Concorrentes dos Amazonas em todo o calendário de MTB, eles só não deram mais trabalho porque tiveram problemas com o carro de apoio.

E em meio a tantas bikes de raça, os líderes se garantem à bordo de magrelas vira-latas, provando que o melhor motor continua sendo as panturrilhas e o sangue nos olhos. “Nossas bikes são as piores. A minha não vale R$500. Sabe quanto eu paguei no câmbio? Seis reais”, conta o raçudo Anderson Albert Silva, 19 anos, da Lar Pé de Vento, que pedala junto com João, Johnny e Cleyton desde os 9 anos. Os quatros vivem no Lar Nossa Senhora Aparecida, orfanato situado em Parelheiros, São Paulo, e encontraram no pedal o apoio para seguir em frente.

Ano que vem tem mais. E os espertos que sigam a receita do experiente mountain biker Cláudio Palamartchuk ao receber a medalha pelo primeiro lugar na categoria quarteto misto: “Estratégia? Treinamos direto na serralheria. Serra de noite, serra de dia”.


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2006)







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