Um passeio pelo corredor Wakhan


MUNDO À PARTE: Criança wakhi no acampamento-base do Koh-i-Bardar, no nordeste do Afeganistão, em maio de 2005

Por Mark Jenkins
Fotos por Teru Kuwayama

O velho cavaleiro wakhi dá uma profunda tragada em seu cachimbo, fazendo o ópio brilhar escarlate nas trevas, e assopra a fumaça na minha cara. Estamos deitados lado a lado numa cabana que parece uma caverna no extremo nordeste do Afeganistão. As paredes de pedra e o teto de palha pingam alcatrão preto decorrentes de décadas queimando esterco de iaque para aquecer o lugar. Um bode fica batendo seus chifres contra a porta torta. Lá fora, as ovelhas se acotovelam, nervosas, à espera de um lobo que leva uma delas embora. O fogo está quase apagando e todo mundo está dormindo — recostados uns nos outros para se aquecerem, como animais — exceto o cavaleiro e eu. Seus olhos estão fechados. Ele inala e seu rosto duro como um penhasco relaxa, depois exala a fumaça psicoativa. Mais um longo dia se foi. Nossa equipe de oito — três norte-americanos, um guia paquistanês e quatro cavaleiros wakhis — está atravessando a pé o Corredor Wakhan, a antiga e esquecida rota que liga o Afeganistão à China. Marco Polo passou por aqui há 734 anos. E o lugar ainda é tão medieval como naquela época.

Em 2000, Greg Mortenson, 47 anos, e eu tivemos a idéia de fazer a extensão do Corredor Wakhan, o fino braço vestigial do nordeste do Afeganistão que se projeta na direção da China, separando o Tajiquistão do Paquistão. Como fundador da Central Asia Instittute (CAI) — uma organização não-governamental que já construiu mais de 50 escolas nas fronteiras tribais do Paquistão e Afeganistão —, Greg tem muita experiência em navegar pelos territórios politicamente instáveis da região. Planejávamos fazer a viagem na primavera de 2001. Mas então, em 9 de setembro, Ahmed Shah Massoud, comandante da Aliança do Norte, que combatia o Taliban, foi assassinado por homens-bomba da Al Qaeda. Dois dias depois veio o 11 de setembro. Um mês depois, mísseis norte-americanos caíam sobre posições do Taliban. Em seis meses, a guerra no Afeganistão estava praticamente acabada. Mas, na verdade, a guerra nunca acaba no Afeganistão.

O país é um palimpsesto de conquistas. Os persas dominaram a região no século 6 a.C.. Duzentos anos depois veio Alexandre, o Grande. Os hunos brancos vieram no século 4 d.C, os exércitos islâmicos no 7, Gêngis Khan e os mongóis no 12. Foi somente no século 18 que surgiu um império afegão unificado. Então vieram os britânicos e, em 1979, os russos. E agora, os norte-americanos e seus aliados. Em outubro de 2004, o Afeganistão elegeu o presidente Hamid Karzai, mas seu controle mal vai além da capital Kabul.

O interior afegão é controlado por líderes tribais e regionais, como tem sido há séculos, numa complexa rede de poder repleta de alianças instáveis. Nos anos 80, os mujahedeen (“lutadores pela liberdade”) afegãos foram armados e financiados pela CIA para resistir aos russos. Após o fim da ocupação soviética, em 1989, senhores da guerra — líderes regionais apoiados por milícias independentes — entraram em confronto e o país se dividiu numa colcha de retalhos de feudos. Em 1996, o Taliban, uma geração de fundamentalistas islâmicos que havia se cansado das guerras civis, tomou o controle de Kabul. Em seguida, deram abrigo a Osama bin Laden e seus guerreiros da Al Qaeda. Hoje, apesar da presença de 33 mil soldados de coalizão da OTAN, o Afeganistão continua uma zona, violento e perigoso.

Se há uma região do país que escapa a essa regra, é o remoto e esparsamente povoado Corredor Wakhan, que foi poupado da maior parte dos recentes banhos de sangue. Escavado pelos rios Wakhan e Panj, esse vale de 320 km de extensão, grande parte do qual acima da marca dos 3.048 metros de altitude, separa as montanhas Pamir, ao norte, do Kush hindu, ao sul. Por séculos, ele tem sido uma ligação entre a Ásia Central e a China, e um dos trechos da Rota da Seda – a rota de comércio de 6.500 km que liga a Europa ao Extremo Oriente – mais difíceis de atravessar. As fronteiras do Wakhan foram delimitadas em um tratado de 1895 entre a Rússia e a Grã-Bretanha, que vinham lutando pelo controle da Ásia Central por quase um século. Ambos os países enviaram espiões à região, e não poucos deles foram capturados e decapitados. Eventualmente, a Grã-Bretanha e a Rússia concordaram em usar o país inteiro como zona neutra, com o Wakhan assegurando que as fronteiras do império russo nunca tocariam as do Raj britânico.

Só se sabe de um punhado de ocidentais que tenha viajado pelo Corredor Wakhan desde Marco Polo, em 1271. Houve expedições européias esporádicas pela segunda metade do século 19 e começo do 20. Em 1949, quando Mao Zedong completou a tomada da China pelos comunistas, as fronteiras foram fechadas permanentemente, cortando uma rota de caravanas de 2.000 anos de idade e fazendo do corredor uma rua sem saída. Quando os soviéticos invadiram o Afeganistão em 1979, eles ocuparam o Wakhan e fizeram uma estrada para tanques que seguia até metade da extensão do corredor. Hoje, o Wakhan voltou a ser o que foi na maior parte de sua história: um primitivo interior pastoral, lar de cerca de 7.000 wakhis e kirghiz, espalhados por cerca de 40 vilas e acampamentos. Até onde Greg e eu pudemos descobrir, por décadas ninguém fez a travessia completa do Wakhan.


ALTO PARAÍSO: O autor, à esquerda, e Doug Chabot na descida da primeira ascensão dos 6.079 metros do Koh-i-Bardar

QUATRO ANOS DEPOIS, Greg estava tão ocupado com o CAI que não tinha tempo para fazer a travessia – mas estava contente em ajudar a realizá-la. Greg acreditava que a única maneira de entender o Afeganistão, com todas as suas contradições e complexidades, era a imersão total. Ele encontrou um parceiro para mim: Doug Chabot, 41, diretor do Gallatin National Forest Avalanche Center, nos EUA, e um experiente guia de alpinismo. Como planejamos escalar pelo menos um pico virgem no Wakhan, a experiência de Chalbot com avalanches “seria um bom seguro de vida”. Nosso plano era atravessar o Wakhan do oeste para o leste, usando uma van com tração nas quatro rodas até onde conseguíssemos e depois prosseguir a pé ou a cavalo.

A primeira vez que nos reunimos foi no hotel de Greg em Kabul, no final de abril de 2005. Além de Greg e Doug, estava Teru Kuwayama, 35, fotógrafo de Nova York que já havia tirado fotos no Paquistão e no Iraque. Teríamos de confiar nos contatos de Greg com os líderes regionais para assegurar passagem livre pelo Wakhan, mas a principal incerteza era a saída do Afeganistão. Embora tivéssemos vistos para o Tajiquistão e para a China, nenhum de nós sabia qualquer coisa sobre as fronteiras no fim do Wakhan. Poderíamos ser detidos por guardas tajiques e mandados de volta, forçados a refazer nossa viagem de trás para frente. Ou poderíamos ser presos.

O canto do Wakhan onde o Tajiquistão, a China, o Afeganistão e o Paquistão se encontram é um território problemático. No lado da China, o Uigur, uma população de oito milhões de turcos muçulmanos clama por independência. Na Cachemira, o Paquistão e a Índia ainda estão tentando resolver uma disputa de governos e etnias que se arrasta por décadas. Ao norte, a antiga república soviética do Tajiquistão é governada por um regime autoritário e instável, e o país faz parte da rota mundial de ópio (cerca de metade do ópio produzido no Afeganistão é exportado via Tajiquistão).

Greg tentaria se encontrar conosco em dez dias, em Sarhadd, no meio do Wakhan. Ele nos apresentou a Sarfraz Khan, de 50 anos, seu braço-direito. Um homem alto, de pele escura e bigode. Nascido e criado no norte do Paquistão, Sarfraz serviu como soldado na força montanhista de elite; quando estava servindo na Cachemira, foi ferido duas vezes por tropas indianas. Uma bala varou sua palma e paralisou sua mão direita. Ele falava inglês, urdu, farsi, wakhi, burushashki e pashto. Havia passado anos viajando pelo Wakhan como vendedor de iaques. Em uma região onde tudo era impossível, Sarfraz seria o nosso indispensável solucionador de problemas.


CAVALARIA TRIBAL: Oficial que vigia a fronteira na província de Badakhshan

LEVOU TRÊS DIAS para irmos de carro até Faizabad, local da base militar norte-americana mais ao norte. Passamos uma noite ali, depois dirigimos algumas horas para o leste, até Baharak, última cidade em que poderíamos comprar provisões. Doug, com seu bloco a prova-d’água e sua lista precisa, era o encarregado dos suprimentos. Veterano de expedições de alpinismo ao Paquistão, ele sabia o que precisávamos.

Em Baharak ficamos com Sardhar Khan, um líder poderoso na província de Badakhshan. Havíamos sido avisados que precisávamos de sua permissão para passar por seu território e entrar no Wakhan. Khan, 48, é um tajique de baixa estatura com um rosto de madeira enrugada que se diz um ex-senhor da guerra. Um dos mais temidos e respeitados comandantes no Afeganistão, ele passou 15 anos acampando nas montanhas com sua milícia — 10 anos combatendo os russos, 5 combatendo o Taliban —, mas o homem que conheci era cortês e de fala mansa. Ele preparou pessoalmente a mesa para um piquenique em seu pomar e nos contou sobre a escola que havia construído com Greg no ano anterior. Mais de 250 crianças estudariam nela naquela primavera.

No dia seguinte, chegamos à vila de Eshkashem, na entrada do Corredor. Lá, ficamos conhecendo outro guerreiro influente, Wohid Khan, um belo, alto e taciturno tajique com quarenta e poucos anos. Khan nos deu permissão para fazer a travessia, mas não garantiu nossa segurança depois que cruzássemos para o Paquistão. O máximo que podia fazer era nos dar um bilhete que atestasse nossas intenções honradas.


"ESTOU AQUI AQUI PARA OUVIR O SILÊNCIO": Cego pede pelas almas ao longo da estrada para o Wakhan

DE CADA LADO do vale plano e marrom, enormes montanhas brancas erguiam-se como reflexos em um espelho. Os enormes dentes que eram esses picos, com uma língua de terra no meio, nos faziam pensar na boca de um lobo. O vale desaparecia ao longe, estendendo-se até as estepes do oeste da China.

A estrada tosca que os russos haviam aberto sobre a trilha de camelos da Rota da Seda já havia praticamente desaparecido, coberta por deslizamentos de pedras ou apagada por enchentes e avalanches. Nosso Toyota chacoalhava por declives onde tínhamos certeza que capotaríamos. Muitos dos picos em ambos os lados do vale nunca haviam sido escalados. No início dos anos 70, histórias e expedições aos picos de 6.000 metros de altura do Wakhan atiçavam os ânimos. Britânicos, alemães, austríacos, espanhóis, italianos, japoneses — todos vieram escalar nestes lados. Mas a invasão russa de 1979 pôs fim ao alpinismo na região por mais de duas décadas.

Naquela primeira noite no Wakhan, dormimos em um khun, uma tradicional casa wakhi com teto de madeira quadrado e tapetes afegãos vermelhos espalhados em uma plataforma elevada. Os wakhis, uma tribo de gente dura e magra, têm antigas raízes iranianas e têm vivido no Wakhan por no mínimo mil anos. Eles falam wakhi, um antigo dialeto persa, e fazem parte da seita muçulmana ismaeli. Agricultores e pastores de subsistência, eles usam iaques para arar o solo arenoso e plantar batatas, trigo, cevada e lentilha.

No dia seguinte, prosseguimos vale acima na van que ia raspando o chão — nosso teimoso camelo moderno. O vale era tão profundo e as montanhas ao lado eram tão altas, que não conseguíamos ver os picos além da primeira fileira. Procurávamos uma abertura no paredão à esquerda. Não precisávamos ter nos preocupado. Ela ficou evidente quando a encontramos — uma fissura em forma de V com um queda-d’água de quase 100 metros de altura desabando sobre as pedras. Paramos em um pasto próximo à cachoeira, a 3.000 metros de altitude. Aquele seria nosso acampamento-base. Arrastamos nossas mochilas e equipamentos, e Sarfraz foi com a van até Faizabad para apanhar Greg e levá-lo até onde estávamos. Tínhamos uma semana para escalar a montanha.

NESSE DIA DOUG E EU FIZEMOS O RECONHECIMENTO acima da queda-d’água, seguindo uma trilha montanha acima até a neve. Além, avistamos uma região selvagem e cheia de pontas, completamente branca. Não dava para ver Koh-i-Bardar — a “Montanha da Entrada”, em wakhi, e o pico que pretendíamos escalar — mas sabíamos que ele estava lá, em algum lugar. Naquela noite, Doug e eu decidimos tentar alcançar o pico, sem apoio, enquanto Teru esperaria no acampamento com Sher Ali.

Partimos logo no início da manhã seguinte, tão cheios de energia que mal conseguíamos acompanhar o ritmo de nossas pernas. Ao meio-dia estávamos atravessando paisagens cobertas de neve, passando por baixo de espigões de granito. Às 12h15, estávamos atolados. No espaço de 15 minutos, a temperatura havia subido o bastante para que a crista de neve de 1,2 metro ficasse fofa a ponto de não sustentar mais nosso peso. De repente, estávamos chafurdando até o peito, quebrando pedaços da crosta na tentativa de nos arrastar de volta à superfície. “Hora de acampar”, disse Doug. “Ou tá á a fim de ir nadando até a montanha?”

Subimos na plataforma e passamos o resto da tarde comendo, cochilando e tomando sol. Acordamos às quatro da manhã do dia seguinte e às 10 armamos acampamento a 4.876 metros de altitude na geleira Purwakshan. Largamos nossas mochilas e fizemos um rápido reconhecimento na base da Koh-i-bardar para encontrar nossa rota: uma ravina íngreme que subia até um espinhaço afiado que seguia até o cume. Fomos e voltamos, e ao meio-dia armamos nossa tenda antes de virarmos náufragos no mar de neve novamente. “Vamos ter que fazer a escalada toda de noite”, disse Doug.

Doug já era um dos melhores parceiros que eu já havia tido. Veloz, divertido, conseguia dormir em qualquer lugar, nunca reclamava e, o mais importante, amava as montanhas. Era a epítome da parcimônia — carregava seu equipamento essencial e leve, e mais nada. Exceto seu café extra-forte, claro. Tomamos remédio para dormir às 6 da tarde, acordamos às 11 da noite e estávamos escalando a geleira antes da meia-noite. Caminhamos rapidamente pela geleira com ajuda de crampons, encontramos a ravina certa, subimos em linha reta, engatinhamos pelo espinhaço e fomos alternando a dianteira até o pico de 6.078 metros de altitude do Koh-i-Bardar. Era 6h45 da manhã, 48 horas desde que deixamos o acampamento base. De pé sobre o bloco do cume, vimos o mundo inteiro sob nós — denteado, rosa pálido, casto. Era a primeira escalada no Wakhan desde 1977.


TERRA NÔMADE: Cavaleiro kirghiz na comunidade de Urtobill, no extremo leste do corredor Wakhan

DEPOIS QUE SARFRAZ E GREG se juntaram a nós no acampamento base, seguimos de carro pelo corredor. Naquela noite, Greg e eu, ambos com insônia, ficamos conversando sobre nossa visão do Afeganistão. “Os Estados Unidos dispararam 88 mísseis no Afeganistão em 2001”, ele disse. “Eu poderia construir 40 escolas pelo custo de um deles. Os talibans ainda estão aqui, só esperando os americanos irem embora. Você pode matar um guerreiro, mas ao menos que eduque as crianças, elas vão se tornar os próximos recrutas”.

Greg enrolou seu rosto com seu cachecol, ficando parecido com um afegão na luz de velas. Ele não iria com a gente pelo resto do vale. Há cerca de 550 famílias wakhis na parte oeste do Wakhan, e ele e Sarfaz haviam identificado 21 vilas que precisavam de escolas. “Educar as meninas, em particular, é essencial”, continuou. “Se você educa uma menina até o nível da quinta série, a mortalidade infantil cai, a taxa de natalidade diminui e a qualidade de vida da vila inteira, contando da saúde até a felicidade, aumenta. Antes de um jovem ir para a jihad, a guerra santa, ele precisa da permissão da mãe. E mães que tiveram educação dizem não”. Perguntei a ele como as vilas pagam por sua metade do custo de construir e manter uma escola. “Muitas vezes ele trocam mão-de-obra pelo dinheiro”, explicou Greg, “Mas a maior parte da grana das vilas afegãs fora do Wakhan vem do cultivo de papoula. Essas vilas são completamente dependentes dessa fonte de renda. Eliminar o cultivo de ópio só vai causar mais pobreza e mais desespero, que por sua vez vai causar mais mortes e mais guerras”.

SARHADD, A CERCA DE METADE do caminho pelo corredor Wakhan, fica no fim da estrada. A partir daí, só se viaja a pé ou a cavalo. Faltavam 130 km até o Tajiquistão. Em uma manhã gelada, Sarfraz, Doug, Teru e eu deixamos Sarhadd com quatro cavalos de raça e quatro peões wakhis. Por dois dias seguimos pelas sombras de imensos desfiladeiros, pulando pedregulhos, contornando riachos e imaginando Marco Polo fazendo a mesma coisa. Subimos duas pequenas passagens para chegar ao assentamento de Langar, no alto Wakhan.

De lá, caminhamos até Bazai Gonbad, um cemitério kirghiz composto de uma dúzia de mausoléus com cúpulas cor de giz. Além de Bazai Gonbad, o Wakhan se abre dramaticamente. O vale está a uma altitude grande demais para agricultura — 3.650 metros —, por isso o leste do Wakhan é habitado principalmente por nômades kirghiz. No geral, os kirghiz são mais ricos e saudáveis que os wakhis, embora desde que as fronteiras foram fechadas, em 1949, tem havido uma relação simbiôntica entre os dois povos. Os wakhis precisam dos animais e os karghiz precisam dos grãos, então eles fazem permutas.

Viajamos a cavalo por mais dois dias pelo alto Wakhan, parando em acampamentos dos kirghiz pelo caminho. Passamos nossa última noite no Wakhan em Urtobill, uma comunidade formada por quatro grupos familiare que haviam juntado seus recursos e comprado painéis solares chineses, um carro a bateria, uma TV e um vídeo. Naquela noite, nos sentamos com eles dentro do utok, a casa comunal kirghiz, e assistimos sua única fita: um documentário de 1975 chamado Os Kirghiz do Afeganistão.

No dia seguinte, galopamos até a fronteira do Tajiquistão, marcada com uma cerca de arame-farpado embaraçada e meio caída. Não havia ninguém lá, só mais terreno marrom vazio. Era o fim da linha para Sarfraz. Nos abraçamos, e depois Doug, Teru e eu entramos andando no Tajiquistão. Seguimos uma antiga trilha de tanque ao longo da cerca, passando por duas altas torres de vigia

abandonadas. Quinze quilômetros depois, ainda não tínhamos visto ninguém. No alto do morro à nossa esquerda, havia outra torre de vigia, alguns tanques enterrados e alguns prédios, mas o lugar parecia deserto, então prosseguimos.

Uns quinhentos metros além, ouvimos um estouro e um zunido. “É um tiro”, disse Doug. Ouvim morro abaixo na nossa direção. Levantamos as mãos. Em segundos o policial nos alcançou, gritando em russo e agitando seu rifle na nossa cara. “Dokumenty! Dokumenty!” Lentamente, pegamos nossos passaportes e os entregamos, junto com o bilhete de Wohid Khan. “Wohid Khan, Wohid Khan”, gritamos em coro. O nome pareceu ser familiar. Ele nos levou marchando até a base. Todos os prédios estavam abandonados, exceto um. Fomos levados para dentro. Duas horas depois outro policial chegou. “Bem-vindos ao Tajiquistão”, ele disse com um sorriso. Ele não falava inglês, por isso o interrogatório levou um tempão. Éramos da Al Qaeda? Do Taliban? Da CIA? Éramos traficantes de drogas? Respondemos não para todas as perguntas. O que éramos, então? Turistas que atravessaram todo o Wakhan a pé? Isso.

Decidiram revistar nossas mochilas e ficou evidente que estavam decepcionados. Nada de armas, drogas ou documentos secretos. Já que éramos mesmo três turistas americanos idiotas, eles podiam relaxar. Naquela noite, nossos interrogadores nos deixaram dormir nas suas camas, enquanto eles se deitaram no chão duro do escritório. Eu estava tão excitado que não consegui dormir. “Conseguimos, caras,” sussurrei. “Atravessamos o Wakhan!”


NA MÃO: Soldados tadjiques e dois aldeões esperam por gasolina extra no meio do nada

LEVOU CINCO DIAS para resolver a burocracia. Fomos transferidos para o norte, atravessando o Tajiquistão — em carros velhos que ficavam sem gasolina — de base militar em base militar, de interrogatório em interrogatório. Éramos colocados em quartos aquecidos com pequenas porções de artemísia em brasa, com pôsteres de garotas russas nas paredes. Nos serviam pratos de carne iguais às que Marco Polo comeu e nos tratavam como dignitários em visita, depois diziam que seríamos presos. Jogamos vôlei com soldados entediados, depois nos acusavam de sermos perigosos espiões.

No Afeganistão, a notícia de interrogadores norte-americanos torturando prisioneiros muçulmanos e jogando o Corão na privada gerou protestos antiamericanos por todo o país. Greg foi pego no tumulto quando saía do Wakhan. Ainda assim, ele conseguiu arranjar um telefone via satélite e ligar para a embaixada dos EUA em Kabul, informando-os sobre três norte-americanos errantes. Fomos soltos sob custódia de oficiais da embaixada dos EUA, que nos levaram de carro até a capital do Tajiquistão, Dushanbe. No instante que as portas dos Land Cruisers a prova de balas se fecharam, estávamos em casa. Do lado de fora era Tajiquistão; dentro, era América. Seguimos até um hotel luxuoso, ouvindo Van Morrison, comendo batatas Pringles e tomando Coca-cola.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2006)







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