Tribos do esporte


HOJE É DIA DE ÍNDIO: No rio Araguaia, os wai wai seguem para a prova de arco e flecha

Texto e fotos por Caio Vilela

O juiz não sabia o que fazer diante do impasse. Atenta a tudo, a torcida já começava a ficar impaciente. De um lado, parte da equipe de futebol feminino exibia chuteiras reluzentes. Do outro, pés desnudos ou protegidos apenas por chinelos aguardavam o apito para começar a partida. Após um breve tumulto, os árbitros determinaram que todas as atletas, sem exceção, deveriam jogar descalças, como mandam as boas regras do fairplay. E lá foram abandonados no canto do campo os calçados novinhos em folha comprados especialmente para o 3º Jogos Indígenas do Pará _um interessantíssimo evento esportivo que reúne diversas aldeias do Estado.

Neste ano, entre os dias 21 e 24 de agosto, cerca de 600 índios de 14 tribos se encontraram em Conceição do Araguaia, a 1120 quilômetros ao sul de Belém, para ver quem são os mais guerreiros em modalidades como arco e flecha, arremesso de lança, lutas corporais, natação, canoagem, corrida de toras, atletismo, futebol, cabo de guerra, entre outras.

O cenário das “batalhas”, patrocinadas pelo governo do Pará, com o apoio da Funai e da iniciativa privada, foi uma arena construída às margens do rio Araguaia, toda enfeitada com um portal em forma de adorno tribal e uma pira de madeira representando as culturas indígenas. Algumas tribos, como os reduzidos matis, vieram de longe para participar pela primeira vez do evento. Viajaram duas horas de táxi aéreo de sua aldeia até a capital amazonense, depois mais quatro dias de barco até Belém e outros 1120 km de ônibus por estradas esburacadas até Conceição do Araguaia.

Apenas um pontinho no mapa das etnias presentes no Pará, eles representam uma minoria cuja cultura se encontra ameaçada de extinção: existem menos de 240 indivíduos no Brasil, todos habitantes da mesma aldeia. Falando sua própria língua e vivendo na região do alto rio Solimões, os matis são caçadores e exímios manipuladores de zarabatana. A habilidade com o objeto lhes garantiu destaque entre os participantes, que puderam admirar uma tradição que talvez esteja com os dias contados. Munidos de suas pontas de lança untadas com o veneno mortal de um colorido sapo encontrado em sua região, os cinco índios matis impressionaram o público com a eficiência no uso do instrumento de caça. Famosos por saberem andar na mata e caçar em completo silêncio, os curiosos representantes dessa tribo têm sua mitologia e adornos ligados à figura da onça pintada.


NA MIRA: O gavião Karit comemora a vitória

Além dos matis, várias atrações e acontecimentos inusitados marcaram as olimpíadas tribais. Conhecidos por sua força e resistência, os numerosos índios gavião, habitantes da região de Bom Jesus do Tocantins, começaram a competição de futebol masculino em clima de “já ganhou”. Favoritos em qualquer campeonato futebolístico indígena, chegaram bem preparados fisicamente e dispostos a vencer. “No Pará, há muitos índios gavião que fizeram carreira jogando em clubes grandes. Meses antes desse campeonato, eles contrataram um técnico profissional para treinar o time”, conta Luís Augusto Oliveira, ex-jogador do Remo e membro da comissão de arbitragem dos Jogos Indígenas.

Mas os deuses não colaboraram, e os craques acabaram desclassificados. Uma zebra como há muito tempo não acontecia no futebol indígena fez o título parar nas mãos dos improváveis índios xikrin. Após uma partida acirrada, cujo placar terminou em 3 a 0, os xikrin venceram seus primos e rivais naturais, os caiapós. Feito histórico para a tribo que, se comparados aos gavião, seria algo como um time da terceira divisão disputar um Campeonato Brasileiro com o Corinthians.

No arco e flecha, a emoção não foi menor. Parecia fácil, mas a distância e a gritaria da multidão atrapalhavam os melhores arqueiros. O alvo, um peixe pintado em uma tela com o corpo dividido em partes que valiam diferentes pontuações, foi atingido com precisão por poucos competidores. Sisudos e esbanjando saúde, arqueiros no auge da idade conseguiram somar um máximo de dez pontos nos três tiros permitidos.


BATALHA FLUVIAL: A disputa de canoagem foi uma das mais concorridas

Mas eis que se sucede uma cena que deixa todos de boca aberta: após assistir aos caçadores experientes de outras tribos, o competidor Karit, um índio gavião de apenas 20 anos, aproximou-se lentamente e armou seu arco como se estivesse escutando apenas o silêncio da mata. Em um lance, arrematou o prêmio com uma flechada de 40 pontos no olho do peixe-alvo. Ovacionado com gritos histéricos da torcida de mais de 5 mil pessoas, ele declarou, com calma xamânica: “Foi fácil. Os outros estavam nervosos por causa do tumulto e não conseguiram acertar”. A arquibancada comemorava num êxtase coletivo _e olha que aquele era apenas o primeiro dia dos jogos.

As competições seguiram com a vitória dos índios wai wai na prova de canoagem. Habitantes das margens do rio Mapuera, eles são familiarizadíssimos com as canoas tradicionais e levaram o título com folga à frente dos adversários.

Alguns esportes como as lutas corporais, a corrida em que é preciso carregar uma tora de 100 quilos (tradição da tribo gavião) e o ronkrã, espécie de jogos com bastões de madeira semelhante ao hóquei, foram exibidos em caráter demonstrativo por fazer parte da cultura de apenas algumas etnias.

Mas o encontro de tribos não ficou apenas nos eventos esportivos. Oficinas culturais, reuniões com as lideranças, exibição de vídeos, apresentação de danças, venda de artesanato, pinturas corporais, exposições fotográficas e palestras ajudaram a completar a festa. "Mais que competir, os índios vieram de suas aldeias para confraternizar e fortalecer seus núcleos através desses encontros”, afirmou Marcos Terena, organizador da festa e representante dos povos indígenas brasileiros na ONU.

Em setembro de 2007, acontecerá a próxima edição nacional dos Jogos Indígenas, na cidade de Santarém, também no Pará, que deve reunir mais de 60 tribos de todo o país às margens do rio Tapajós, um dos mais belos da Amazônia. Outro programa de índio pra lá de sensacional.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2006)







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