No limite


PRÊMIO: Depois de enfrentar frio, chuva e terreno rochoso, os atletas chegaram à paradisíaca baía de ilha Grande
(Foto: Alexandre Cappi)

Por Fernanda Franco

“Pior é na guerra!” Foi com essa frase, tirada do romance Essa Terra, do escritor baiano Antônio Torres, que o diretor-técnico do Ecomotion Pro 2006, o também baiano Thiago Valois, abriu o briefing da prova na noite anterior à largada. As 54 equipes participantes estavam com o mapa nas mãos, mas ainda não tinham idéia de que essa seria, de longe, a edição mais dura da maior corrida de aventura da América Latina.

Que a prova teria um caráter expedicionário nos seus 558 quilômetros, com trechos longos e menos contato com as equipes de apoio que nos anos anteriores, isso já se sabia. Mas as abruptas diferenças de terreno, altitude e clima proporcionadas pela geografia do Rio de Janeiro tornaram a competição tão difícil quanto bela.

Este ano o evento seria acompanhado de perto por Geoff Hunt, diretor da Adventure Racing World Championship, para que ele avaliasse a possibilidade de o Brasil sediar a final do mundial em 2008. Para que isso aconteça, o Ecomotion do Rio teria que se mostrar desafiante o suficiente para receber os melhores atletas do mundo na decisão do campeonato. Dessa vez não haveria “colher de chá” para nenhuma das 53 equipes (uma delas chegou atrasada à largada e foi desclassificada logo no início) que largaram na noite de 12 de novembro, às 20h, em Resende.


APERTO: Robin Benincasa, vice-campeã com a equipe Merrell, vence uma das fendas auxiliada pelos equipamentos de verticais nas Prateleiras
(Foto: Alexandre Cappi)

Foi no rio Paraíba do Sul, a cerca de 400 metros do nível do mar, que os atletas saíram remando por aproximadamente uma hora até encontrarem suas bikes. A partir daí, começava uma subida rumo ao céu, com escala em Maringá, a 1.300 metros, que só acabaria no pico do maciço das Prateleiras, a 2.548 metros de altitude, no Parque Nacional de Itatiaia – isso depois de 75 quilômetros de bike e outros 30 de trekking em que foi preciso usar até técnicas verticais para vencer fendas e gretas. Tamanha variação de altitude logo nas primeiras 24 horas de prova tira o fôlego, e os atletas tiveram de se desdobrar para não esmorecer logo no começo.

O mau tempo acompanhou o trajeto serra acima. Uma frente fria cobria toda a região, trazendo chuva e vento atípicos para essa época do ano. Durante a noite, a sensação térmica era próxima de zero grau, o que abalou até veteranos como a norte-americana Karen Lundgreen, da Team Sole. “Não trouxemos roupa de frio e chuva, e nossa estratégia foi continuar andando para nos mantermos quentes”, disse.

O começo da prova ainda se mostraria muito mais arrasador para a grande maioria das equipes. A umidade constante e o terreno rochoso do topo do Itatiaia minaram a parte mais importante do corpo dos corredores: os pés. No final do primeiro dia, muitos já colecionavam bolhas, o que causou inúmeras desistências ao longo da prova.

Três equipes gringas formaram um pelotão da frente, alternando-se entre si: a Abarth Teva, do espanhol Antonio de La Rosa, Merrel Wigwan Team, da norte-americana Robin Benycasa, e a Team Sole, do norte-americano Paul Romero. Experientes em provas no Brasil, esses quartetos eram, desde o início, os mais cotados a levar a premiação máxima de US$ 35 mil.

Logo atrás, no segundo pelotão, estavam as brasileiras da Vivo Atenah Salomon, que pela primeira vez num Pro competiam numa formação 100% feminina, a Mitsubishi Francis Hydratta QuasarLontra e a Try On Oskalunga.


INTEGRAÇÃO: O francês Franck Slagues, convidado a integrar à equipe Oskalunga, lidera o pelotão
(Foto: Alexandre Cappi)

DO TOPO DAS PRATELEIRAS, a prova se deslocou para as montanhas da serra da Bocaina, já com pouca chuva, até chegar ao nível do mar, com sol a pino e calor de 30 graus. No oceano, os atletas fariam um longo trecho de canoagem para chegar à ilha Grande, onde enfrentariam um cansativo trekking.

Foi nesse momento que as meninas da Vivo Atenah Salomon deram o pulo do gato – ou melhor, das gatas. Como haviam adiantado para a reportagem da Go Outside na noite anterior à largada, a estratégia era definida: “Vamos tentar chegar fortes e inteiras lá embaixo para remar como um ‘motorzinho’. O remo é um dos nossos pontos fortes”, afirmou, com tranqüilidade, a capitã Silvia Guimarães, a Shubi.

Ela não estava mentindo. Inteiraça, a Atenah chegou muito bem a Mangaratiba para seguir até ilha Grande. Apesar de ter perdido posições ao se embananar num trecho do trekking, a pior colocação da equipe foi o décimo (checar) lugar. Na travessia de remo, as meninas ultrapassaram as equipes Lontra, Bjurfors, Oskalunga e Go Lite/Timberland. “Além de sermos mais leves que uma equipe mista, levamos muito em conta o peso do barco na hora de dividir as mochilas”, conta Shubi.

Correr somente entre mulheres parece trazer mais vantagens que apenas a questão do peso. A equipe das quatro moças, todas muito amigas, deu um show de estratégia e dinâmica de grupo nos marmanjos. “Durante todo o tempo pensamos em equipe. As mais fortes, por exemplo, levavam mais peso, para poupar as outras”, conta Fernanda Maciel. “Éramos um corpo só. Interpretávamos as necessidades do grupo, mudando a estratégia rapidamente para melhorar a performance”, explica Cristina de Carvalho.


RUMO AO CÉU: Duas equipes unem forças para enfrentar o longo trekking no Parque Nacional de Itatiaia
(Foto: Alexandre Cappi)

“Pedalamos juntas, corremos e sofremos juntas”, diz a espevitada Fernandinha. “Quando a equipe se dispersava, gritava para que se juntasse. Se uma queria fazer xixi, perguntava se as outras também queriam, para otimizar o tempo. Era ‘um, dois, três e já’!”

Além de fisicamente fortes, as atletas são agilizadas. No perrengue no alto da serra, após bater cabeça durante a noite, no frio e com chuva, para achar uma trilha, elas localizaram uma casinha abandonada. Não tiveram dúvida: invadiram o lugar, usaram o fogão a lenha, tiraram a roupa molhada do corpo e dormiram por quatro horas. Até esse momento nenhuma outra equipe havia se dado ao “luxo” de descansar tanto tempo. Entre se desgastar no frio em busca de uma trilha escondida ou poupar forças, elas escolheram a segunda opção – que mais tarde se revelou acertadíssima. Detalhe feminino: ao saírem da casinha, fizeram questão de deixar de presente para o dono um boné e dez reais.

Outro ponto a favor na performance das garotas foi o cuidado com o corpo. Diferentemente dos competidores “machos”, elas trataram dos pés, tomaram banho quente, fizeram até café-da-manhã na ilha e dormiram na tal casinha. “Isso tudo nos deu força para partir pra cima das outras equipes”, conta Shubi.

Disputando posições com a Atenah, ainda na ilha Grande, a galera da Lontra saiu 20 minutos antes para o segundo trekking. Descansadas e animadas, as meninas logo avistaram a concorrência e combinaram de partir para o ataque. Passaram a Lontra num trote forte, sorridentes e com o astral nas alturas – marca registrada do quarteto durante a prova. “Depois da prova, a Marina, da Lontra, me disse que passamos tão empolgadas que eles até desistiram de tentar nos buscar”, conta Shubi.

Nunca mais a Lontra ficaria na frente da Atenah. Embaladas pela ultrapassagem, a equipe feminina encontrou os espanhóis da Buff, os neozelandeses e norte-americanos da Go Lite e os suecos da Bjurfors. Espantados com o gás das meninas, os gringos aplaudiram a cena, gritando: “The running girls!” (“As garotas corredoras!”).


TOPO: Abarth Teva e Team Sole caminham juntas ao topo das Prateleiras
(Foto: Alexandre Cappi)

Controlar os pequenos e habituais atritos também foi moleza para elas. “É normal termos momentos de mau humor. Às vezes você precisa extravasar as emoções. Somos muito íntimas e podemos quebrar protocolos umas com as outras”, relembra Cris. “Fizemos um pacto de não retrucar o mau humor alheio. Desse jeito, eliminamos discussões desnecessárias e evitamos desgastes.”

Depois de 117 horas e 17 minutos de esforço físico, a Vivo Atenah Salomon aportou no cais de Paraty na quarta colocação, 18 horas atrás do primeiro colocado, a Team Sole. A vice-liderança ficou com a Merrel, e o terceiro lugar com a Abarth Teva. Liderando o segundo pelotão composto pela Go Lite/Timberland, Lontra, Bjurfors e Oskalunga, o quarteto feminino superou todos os concorrentes brasileiros. Valeu, mulherada!

Torre de Babel

Graças à boa reputação que o Ecomotion Pro adquiriu no cenário mundial, bons atletas gringos juntaram-se a equipes nacionais e, pela primeira vez na história da prova, presenciou-se uma “torre de Babel” nos times.

Apesar de a língua inglesa ser o elo entre os atletas, valia tudo para facilitar a comunicação: mímica, interpretação, tradução. De acordo com os participantes, a linguagem própria da corrida vai muito além da fala.


SINTONIA PERFEITA: no remo garantiu às meninas várias posições
(Foto: Bernardo Rodriguez)

Segundo Franck Slagues, 31, francês convidado para integrar a equipe Try On Oskalunga, o grande segredo da harmonia é ter um objetivo claro e definido para a equipe. “A meta da equipe passou a ser a minha também”, diz ele. “Deixamos os egos de cada um de lado, e o restante fluiu facilmente. Mantive-me focado o tempo todo e posso dizer que foi uma ótima experiência. Viramos amigos.”

Para Guilherme Pahl, navegador da Oskalunga, misturar as nacionalidades foi uma ótima escolha. “O Franck tem um astral ótimo e superou bem as crises da equipe, principalmente no começo, quando ficamos para trás por causa de alguns erros de navegação.”

A EcoLivre, formada por corredores entre 21 e 23 anos, não perdeu tempo e convidou o experiente navegador finlandês Iiro Kakko, de 45, para completar o time. “Para nós, foi uma honra correr com ele. O Iiro tem um estilo próprio de navegar”, conta João Bellini Jr.. “Ele foi importantíssimo, pois estávamos com dificuldade no remo e, mesmo assim, conseguimos terminar a prova.” Iiro curtiu a

competição, mas confessa que essa talvez tenha sido sua última prova de aventura. “Acho que está na hora de me aposentar”, afirma o finlandês. Tomara que ele esteja errado.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2006)







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